Correio da Cidadania

‘Repassar empréstimo às elétricas para o consumidor parece atitude de ditadura’

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 Há alguns dias, o governo anunciou um empréstimo de 12 bilhões de reais para as distribuidoras de energia em dificuldades, escancarando a dura crise nas três pontas do setor elétrico: geração, transmissão e distribuição. Este empréstimo foi ainda anunciado sob a ênfase de que quem pagaria a maior parte da conta seria o consumidor, a partir de 2015 - logo após as eleições, portanto.

Para o engenheiro Roberto D’Araújo, ex-membro do Conselho Administrativo de Furnas e fundador da ONG Ilumina, nosso novo entrevistado para esclarecer um pouco mais da crise e trapalhadas desse complexo setor da economia, as dificuldades atuais das distribuidoras vêm de erros acumulados há vários anos. A começar pela história mentirosa e mal contada de que a nossa tarifa elétrica é pouco competitiva, o que fez com que o governo, num “ato de voluntarismo”, e sob pressão dos grandes consumidores, baixasse a MP 579, “com vários erros nas notas técnicas, inclusive de nomenclatura. Em vez de fazer leilão, queria obrigar as usinas que estavam em final de concessão a vender energia para compensar a energia cara que há no Brasil inteiro”.

Os resultados da empreitada não chegaram, no entanto, nem perto do esperado, reforçando uma “lambança” geral em um setor outrora tranquilo, onde a tarifa brasileira era 80% mais barata que a atual.  Segundo ressalta D’Araújo,  “empresas como Cesp, Cemig e Copel fizeram uma conta. Como já sabiam que o sistema brasileiro está em desequilíbrio, sendo provável que acontecesse uma situação de falta de água nos reservatórios (não por falta de chuva, mas por não estarmos investindo o suficiente), disseram ‘não queremos’. Viram que, no período em que ficariam descontratadas, não aceitariam a renovação das concessões, perceberam que iam ganhar mais dinheiro. Assim, temos hoje a bizarrice de usinas hidrelétricas da Copel, Cesp e Cemig vendendo energia ao preço de térmicas. Foi isso que o governo conseguiu”.

As distribuidoras são, assim, na visão de D’Araújo, apenas a ponta de uma engrenagem que foi bastante deturpada ao longo dos governos FHC, Lula e Dilma, pois devem hoje comprar energia no mercado livre, onde o preço é o da usina mais cara.

 Tantos desmandos no setor são ainda os grandes responsáveis pela conjuntura que pode resultar em mais apagões e racionamento de energia, e “culpar são Pedro é conversa fiada” . Para D’Araújo, o problema brasileiro foi que “gastamos água demais. Por quê? Porque, nos tempos de Dilma na Casa Civil e no Ministério de Minas e Energia, fizeram-se leilões nos quais não era definido que tipo de usina se queria. Eram leilões genéricos, onde todas as usinas podiam concorrer. A maioria das usinas que ganharam era de térmicas a óleo combustível, as mais caras que existem. Enchemo-nos de térmicas a óleo combustível e, evidentemente, para não aumentar a tarifa nos últimos 5 ou 6 anos, elas não foram ligadas (...) e quem gerou no lugar das térmicas foram as hidráulicas”.

 Finalmente, quanto ao repasse para os consumidores do empréstimo às distribuidoras, parece tratar-se, para o engenheiro, de atitude de ditadura. “Porque eu não reconheço que o Estado brasileiro possa me obrigar a pagar uma dívida deste ano no ano que vem, ainda por cima impondo que a dívida advirá de empréstimo bancário, com juros. Só mesmo no Brasil”.

A seguir a entrevista completa.

Correio da Cidadania: A crise do setor elétrico é a cada dia mais clara, em suas 3 pontas, geração, transmissão e distribuição. Começando pelo último episódio, na ponta da distribuição, em que o governo anunciou um empréstimo de 12 bilhões de reais para as distribuidoras em dificuldades (dos quais 4 bilhões  sairão da conta do Tesouro), qual a sua opinião? Estas empresas, privadas em sua maioria, estão de fato em dificuldades?

 

Roberto D’Araújo: Tudo no setor elétrico é extremamente complexo. De modo que tudo carece de uma explicação sobre o passado e os erros acumulados.

 

Em 2003, ao contrário do que tinha sido pregado na campanha, o governo Lula descontratou as estatais. Ou seja, elas tinham um preço mais baixo do que usinas privadas, mesmo assim perderam os contratos, o mercado tinha caído, ficaram descontratadas e, como a maioria absoluta das usinas são hidrelétricas, elas continuaram tendo de gerar energia e liquidá-la no mercado livre. Ganhavam de 4 a 8 reais o megawatt/hora (MW/h). Ocorreu uma verdadeira bolsa-megawatt no período de 2003 a 2007.

 

Em 2004, o governo realizou um leilão da energia existente, para durar 8 anos. Evidentemente, como o mercado estava em baixa, os preços não foram tão baixos como no mercado livre, mas ficaram bem abaixo dos preços praticados antes, que já estavam abaixo dos preços praticados pelas usinas das distribuidoras privadas. Esse contrato terminou em 2012. O que o governo tinha de fazer? Ao terminar o contrato, deveria fazer um novo leilão de energia existente para que as distribuidoras não ficassem descontratadas. Pela legislação, a distribuidora tem de ficar 100% contratada. Aliás, 103%, numa colher de chá que deram às distribuidoras. Elas podem nos cobrar 103%, para garantir que não haverá falta de energia.

 

Correio da Cidadania: Neste sentido, qual a relação desse contexto de dificuldades com a medida provisória que determinou a renovação de concessões no setor elétrico em troca do corte de tarifas, a MP 579?

 

Roberto D’Araújo: Como mencionei há pouco, não foi feito leilão algum. Ao invés disso, o governo, num ato de voluntarismo, inventou a MP 579, com vários erros nas notas técnicas, inclusive de nomenclatura. Em vez de fazer leilão, queria obrigar as usinas que estavam em final de concessão a vender energia para compensar a energia cara que há no Brasil inteiro. Inventou essa MP, e  publicou as tarifas por usina. Ou seja, o Brasil tem mais uma jabuticaba: nenhum país do mundo tem tarifa por usina. Tem tarifa por empresa. Se uma empresa tem só uma usina, ainda assim é tarifa da empresa, não da usina, porque ela tem de pagar salários de funcionários, cobrir custos de administração etc. Mas o Brasil inventou uma coisa nova. As usinas atingidas pela MP têm as tarifas delas. Só podem receber dinheiro para pagar operação e manutenção do seu terreno, das turbinas, transformadores, geradores, subestação; sem ter absolutamente nada a ver com o resto da empresa.

 

Sendo assim, a usina de Furnas recebe agora R$ 9/MWh, o que não paga nem um centavo do salário do presidente da empresa. Então, trata-se de uma usina que ainda é administrada por Furnas, mas onde ela não é mais uma concessionária no sentido amplo. É apenas uma administradora de mão-de-obra e manutenção. Tem de pagar funcionários para tomar conta de tudo. O ativo não é dela, mas da União.

 

O governo fez essa jogada pra tentar baixar a tarifa por pressão dos grandes consumidores, do setor eletro-intensivo. É bom lembrar que o Dr. Gerdau é um dos conselheiros da presidente Dilma. Isso gerou uma pressão fortíssima, com a invenção da história de que o problema da competitividade brasileira reside no preço da energia elétrica. Uma mentira, porque, se a competitividade da indústria dependesse só da energia, e se isso fosse uma verdade internacional, Itália e Japão teriam as indústrias completamente falidas. Ambos têm tarifas até mais altas, no caso da Itália, 60% mais alta que no Brasil.

 

Assim, por conta de mentiras pagas na mídia, o governo se omitiu, apoiou a ideia e inventaram essa história. Então, as usinas foram recapturadas pela União, e agora geram com uma tarifa ridícula, que não existe em lugar algum do mundo. Acontece que outras empresas fizeram contas. As empresas da Cesp, Cemig e Copel , como já sabiam que o sistema brasileiro está em desequilíbrio, sendo provável que acontecesse uma situação de falta de água nos reservatórios (não por falta de chuva, mas por não estarmos investindo o suficiente), disseram “não queremos”. Fizeram a conta e viram que, no período em que ficariam descontratadas, não aceitando a renovação das concessões, iam ganhar mais dinheiro.

 

Assim, temos hoje a bizarrice de usinas hidrelétricas da Copel, Cesp e Cemig vendendo energia ao preço de térmicas. Foi isso que o governo conseguiu. Mas as distribuidoras não têm culpa. Se tivesse havido leilão, as usinas não estariam descontratadas. Se o governo não tivesse descontratado as estatais lá em 2003, um projeto do governo FHC; se, depois de termos discutido no Instituto da Cidadania que iríamos cancelar essa descontratação, por conta da queda do mercado, o governo Lula não tivesse simplesmente rasgado essa promessa, não estaríamos em tal situação.

 

Portanto, mesmo aqueles contratos antigos, descontratados, seriam mais baratos. Hoje, ou as distribuidoras ficam descontratadas, pelo modelo implantado pelo FHC, que Lula e Dilma nada mudaram, ou seja, têm de comprar no mercado livre. E no mercado livre o preço é o da usina mais cara. Quer dizer, nesse caso, a distribuidora não tem culpa.

 

É uma lambança geral, que transformou o setor elétrico, outrora tranqüilo, onde a tarifa era 80% mais barata que a atual. Adotaram um modelo que nenhum país com base hidrelétrica, com as  nossas características, adotou.  Algo que foi feito só para imitar o modelo inglês. E agora estamos nessa situação.

 

Correio da Cidadania: E qual o impacto desta medida provisória na própria capacidade geradora do país e, especialmente, nas estatais do setor?

 

Roberto D’Araújo: Ainda não sabemos direito. Mas imagine o seguinte: temos aqui no Brasil quatro grandes estatais na geração. Furnas, Eletronorte, Chesf e Eletrosul. O governo FHC conseguiu vender as usinas da Eletrosul para o grupo Tractebel, belga, em 1998. O que ela vê, a respeito do que ocorre com as outras três aqui citadas, que tiveram de aceitar a manobra de receber alguns trocados pela energia gerada em suas usinas? Da noite para o dia, a receita da Eletrobrás caiu 70%, algo sem paralelo algum no mundo. Editam um decreto que, de repente, faz a receita de uma estatal, do governo, cair 70%. A Tractebel, por exemplo, ao assistir à situação da Eletrobrás, pode pensar: “eu sou você amanhã”. O que vai acontecer?

 

Vamos ver se o governo vai ter a coragem, se for reeleito, de enfrentar a Tractebel, do grupo Suez, e tomar suas usinas, obrigando-as a vender energia por uma cocada e uma mariola, isto é, pelos 8 ou 9 reais. Não compra nem lanche.

 

Este é um impacto enorme.

 

O outro impacto é que, com esse tipo de orçamento, as empresas deixam de ter a responsabilidade empresarial supervisora. Antigamente, Furnas, por exemplo (onde estive sentado no conselho de administração), trocou todos os geradores de suas usinas – isto foi em 2005. Alguém pediu pra trocar? Não. Ela simplesmente fez um exame de seus geradores, de usinas que vinham desde 1957, e decidiu trocá-los. Empresarialmente, tomou a decisão, investiu 200 milhões e trocou os geradores. Isto é, os geradores das usinas de Furnas são novos.

 

Ou seja, uma empresa não investe só no momento de construção da usina, mas também ao longo do tempo. Esse tipo de ação não vai acontecer mais. Se precisar trocar um transformador, vai ser necessário abrir um processo na Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica). Porque um transformador novo deixa de ser um ativo da União e passa a ser ativo da empresa que toma conta da usina. Desse modo, imagine a confusão que será separar peça por peça que precisar ser trocada.

 

Outra coisa: no caso de ocorrer uma falha, a responsabilidade pode ser discutida na justiça. Porque, não havendo mais a relação empresarial naquela usina e naquela unidade de produção, não se pode responsabilizar quem não trocou o transformador a tempo.

 

Portanto, estamos no pior dos mundos. Temos algo que não existe em lugar algum do planeta. No final das contas, o  efeito nas tarifas foi pífio, pois, na verdade, somente 20% das usinas estavam sob a MP 579 e, com a saída da Copel, Cesp e Cemig, ainda menos usinas foram afetadas pela medida. Ademais, a tarifa não depende só de hidroeletricidade, depende também das térmicas, de modo que, mesmo que se entregasse a energia de graça, o impacto seria muito pequeno.

 

Correio da Cidadania: Quanto à ponta de transmissão, por sua vez, em que medida está afetando os episódios de esgotamento no setor?

 

Roberto D’Araújo: Em termos da MP 579, o caso da transmissão é ainda menos compreensível. Porque se pegarmos os dados da Aneel de um ano antes da MP, a transmissão, dentro de uma conta média, tem mais ou menos 5,7% do custo da energia. Mexer numa parcela tão baixa, evidentemente, não vai surtir muito efeito.

 

No caso da transmissão, é a mesma coisa que na geração. Muitas linhas passaram a ter, agora, custos de operação e manutenção extremamente baixos, o que coloca em risco o sistema. Em termos de evolução do custo de geração, apesar de ter havido tantos leilões, com autoridades de governo se vangloriando dos deságios, os dados mostram que os custos por quilômetro sempre aumentaram no Brasil. São praticamente o dobro do que eram no passado. O que coloca sob questão tudo aquilo que se dizia sobre as estatais, que eram caras, ineficientes...

 

Se nos debruçarmos sobre os dados, veremos que era tudo mentira. A tarifa era barata porque o sistema era de serviço pelo custo. À medida que os ativos vão se depreciando, vai se retirando o custo do consumidor. Por isso as tarifas em 1995 eram 80% mais baixas. Na realidade, uma parte das usinas já tinha sido amortizada. Portanto, contaram uma grande lorota. Algum dia, alguém que tiver paciência de contar a história direitinho ficará impressionado com o que houve no Brasil.

 

Correio da Cidadania: O que pensa do fato anunciado de que este empréstimo às distribuidoras será repassado às tarifas pagas pelos consumidores em 2015, após, portanto, as eleições?

 

Roberto D’Araújo: Parece uma atitude de ditadura, não é? Porque eu não reconheço que o Estado brasileiro possa me obrigar a pagar uma dívida deste ano no ano que vem, ainda por cima impondo que a dívida advirá de empréstimo bancário, com juros. Só mesmo no Brasil. Não sou jurista, não consigo avaliar, mas acredito que alguém possa contestar.

 

Como o Estado se arvora o direito de jogar uma dívida, que não é dele, mas do consumidor, para o ano que vem? Como percebeu que não tem mais dinheiro no Tesouro, que já esgotou com o empréstimo que fez, pega dinheiro de fundos que tinham outras finalidades para pagar o buraco que ele mesmo criou nas distribuidoras. Quer dizer que agora os bancos vão ganhar dinheiro no setor elétrico, já que o Tesouro não tem? Fala-se que até o BNDES pode entrar com dinheiro...

 

Correio da Cidadania: Qual é o impacto real da falta de chuvas em todas estas dificuldades que está enfrentando o setor?

 

Roberto D’Araújo: Não vamos negar a falta de chuva. Mas não estamos sem chuva há anos, como o setor elétrico está acostumado a enfrentar.

 

Olhando o histórico brasileiro, veremos vários períodos onde ocorreram dois anos seguidos de chuva. E nos registros históricos do setor elétrico, temos cinco anos de seca, lá na década de 50. Não estou dizendo que temos de enfrentar tal situação, mas o modelo precisa considerar que ela pode ocorrer. O que acontece no Brasil é uma seca iniciada em novembro passado. Tivemos um ano seco em 2012, mas nenhuma tragédia. Ficou 13% abaixo da média. Para se ter uma ideia, esses anos secos de que falei, por exemplo 1970-71, tiveram 40% da média de afluências. Essa é uma situação grave. Em 2012, choveu 87% da média; 2013 foi um ano médio e, no final, começou a seca. Na realidade, temos 4 ou 5 meses de seca, o que não justifica a situação atual.

 

Por que estamos com os reservatórios vazios? O reservatório é igual caixa d’água. Fica vazio se não entrar água ou se houver gasto excessivo. O problema brasileiro foi que gastamos água demais. Por quê? Porque fizeram-se leilões nos quais não era definido que tipo de usina se queria. Eram leilões genéricos, onde todas as usinas podiam concorrer. A maioria das usinas que ganharam era de térmicas a óleo combustível, as mais caras que existem. Enchemo-nos de térmicas a óleo combustível e, evidentemente, para não aumentar a tarifa nos últimos 5 ou 6 anos, elas não foram ligadas. Como a usina, ao ganhar o leilão, tem contabilizada uma oferta de energia, quem gerou no lugar das térmicas foram as hidráulicas.

 

Portanto, as térmicas caras do Brasil promovem um efeito contrário do pensado pelas pessoas. Não complementam a hidroeletricidade. Junto do objetivo de segurar a tarifa, esvaziam-se as hidroelétricas. E quanto mais usina térmica, mais se exige que as hidroelétricas gerem energia no lugar delas. A razão do esvaziamento dos reservatórios está aí.

 

Um dado impressionante: em 2000, tínhamos 83% do sistema formado por usinas hidráulicas. Elas geravam 90% da energia consumida, ou seja, mais que sua proporção no sistema. Tal proporção foi caindo, não fomos construindo hidráulicas como no passado. Em 2012, a proporção chegou a 68%. E quanto de energia elas geram? Algo como 88%, praticamente 90%.

 

Assim, com menos usinas hidráulicas, que precisam se manter gerando quase 90% da energia do país, um dia a caixa d’água se esvazia. Portanto, é conversa fiada culpar são Pedro. Ele não deu tanta água, mas nós fizemos de tudo para chegar ao ponto de começar um período seco despreparados.

 

Correio da Cidadania: Há risco de um racionamento e apagões mais profundos no país, a seguir este estado de coisas?

 

Roberto D’Araújo: Claro que sim. A diferença entre as declarações do governo e de outros analistas é a seguinte: o governo só considera racionamento quando os reservatórios ficarem completamente secos, sem uma gota d’água, coisa que não ocorrerá de modo algum, pois, antes de se chegar a tal ponto, as turbinas não funcionam. Quando começa a baixar a altura dos reservatórios, é preciso começar a desligá-las. Quando há muito pouca água, aumenta a quantidade de detritos nos reservatórios. Assim, estima-se que, ao se chegar ao nível de 10%, já teremos racionamento. Essa hipótese de esperar chegar a zero é otimista e irresponsável.

 

Uma outra questão é que o governo pensa ser possível – com o janeiro, fevereiro e março seco que tivemos – mudar a história. Se for olhar no histórico, quando o início do ano é seco, geralmente o resto do ano é seco também. É assim em 80% dos casos; somente em 20% dos casos a hidrologia muda. Portanto, estão apostando no cavalo azarão.

 

Dessa forma, o risco de racionamento é muito alto. Não entendo como o governo não começa uma campanha de racionalização do consumo. Aliás, entendo... é ano eleitoral e ele não quer admitir a possibilidade do racionamento. Quanto mais se adia, pior. Cada MW/h que eu, você e qualquer brasileiro poderíamos economizar nos custa 822 reais. Não vejo qual o grande mal de começar uma campanha de incentivo e desconto na tarifa para as pessoas diminuírem seu consumo. Se não tiver racionamento, ótimo, consumimos menos.

 

Não há razão alguma, a não ser a recusa em admitir a falência do setor elétrico e os motivos eleitorais, de não se começar uma campanha de redução de consumo.

 

Correio da Cidadania: O que mais poderia ter evitado um tal aguçamento na crise do setor? Investimentos alternativos em energia eólica e solar, por exemplo, caso tivessem sido feitos em proporção suficiente, amenizariam a situação, evitando que se apelasse às caras e poluentes termelétricas?

 

Roberto D’Araújo: Claro. Ainda mais num país que se diz a 7ª economia do mundo e com tanta insolação como o Brasil. A Alemanha, com cerca de 30% da insolação brasileira, apoiou um sistema de colocar placas nos telhados das casas, dando desconto a elas na conta. Além de gerar a energia que consomem, têm desconto quando consomem a energia da rede. Ou seja, há um incentivo em colocar placa solar. O Brasil não tem regra alguma, incentivo algum. Assim ninguém coloca. Poderíamos ter pequenos investidores em energia solar e isso já ajudaria muito.

 

Já as eólicas no Brasil são um caso muito triste. Não existe país no mundo onde as eólicas têm um beneficio tão grande como no Brasil. Nossa geografia e hidrologia fazem com que exista uma não coincidência: venta mais quando não tem água. Quando tem água, venta menos. É o ideal, porque, no período de baixa hidroeletricidade, teria a energia das eólicas e se guardaria a energia em reservatórios.

 

Mas, como eu disse, o governo resolveu fazer leilões genéricos. O governo brasileiro acredita que o mercado resolve. E quando as eólicas participaram dos leilões iniciais, genéricos, perderam. O Brasil só acordou para as eólicas há pouco tempo. Enquanto a China tem uns 30 mil MW de eólicas, o Brasil tem uns 3 mil. Não dá pra nada. O efeito que poderiam ter no sistema é minimizado pelo baixo investimento recebido até aqui.

 

Agora, o governo percebeu e investe. Faz leilões de eólicas separadamente, sem concorrer com outras usinas. Parece que está conseguindo, porém, muito tarde.

 

Correio da Cidadania: E como grandes e polêmicos empreendimentos, como Belo Monte e os do Rio Madeira, entram nesse debate, a seu ver?

 

Roberto D’Araújo: O governo, como conversamos, parece que só pensa nas grandes hidrelétricas, grandes projetos, grandes empreiteiras. Ele coloca as estatais como parceiras minoritárias, para assumir custos que ninguém entende direito... Quer dizer, praticamente assumem os prejuízos para que o projeto dê certo. Essa conta deveria ser transparente.

 

No entanto, o Brasil está muito mal, porque não acompanha o que acontece no resto do mundo. Grandes hidrelétricas são feitas pelo mundo? Claro que sim. Quem faz, por exemplo? O Canadá. O país está fazendo uma grande usina em seu norte, chamada La Romaine, de 1.500 MW. Eles foram pra lá sem projeto. Não foram dizendo “vamos fazer a usina aqui, alagar aqui...”. Não. Foram conversar com a comunidade indígena, saber o que ela precisava, qual projeto seria bom para aquela região. Foram ver se precisava de eclusa, de reflorestamento, de transporte fluvial, enfim, se precisava desenvolver qualquer coisa. Ou seja, transforma-se o projeto de uma hidrelétrica em projeto regional. É assim que se deve construir hidrelétrica.

 

Porém, não é assim no Brasil. Chega-se com o projeto praticamente pronto, com vários aspectos desconsiderados, a não ser após o início das obras. E vários assuntos não são resolvidos. Aquela população, já meio abandonada, vê o Estado brasileiro chegar com uma grande obra, pegar a energia do rio, que mal ou bem lhes dá sustento, e levá-la para outro lugar, outra realidade, industrial e urbana. Aí começa a resistência.

 

E estão fazendo falta. Belo Monte e Rio Madeira estão fazendo falta. Mas não se fazem mais usinas no mundo desse modo. Estamos com uma visão militarista, de ter de aceitar as usinas de qualquer maneira. Não vão conseguir.

 

Correio da Cidadania: Em algumas palavras, como define a condução do setor elétrico pelo governo Dilma, inclusive relativamente aos seus antecessores Lula e FHC, e como acha que a presidente chegará às eleições?

 

Roberto D’Araújo: Conheci a Dilma pessoalmente e considero um erro que ela seja considerada especialista em setor elétrico. Não é especialista. Penso o seguinte: ela não quer admitir as besteiras que fez por uma questão eleitoral.

 

Comparando com os antecessores, é a mesma coisa. Há uma visão equivocada de que o Lula fez uma grande modificação no modelo do FHC. Não mudou quase nada. A única coisa que fez foi exigir das distribuidoras contratarem 100% da energia. Mas o FHC já tinha chegado a tal conclusão. Inicialmente, ele achava que as distribuidoras podiam ficar com 15% de descontratação. Depois, percebeu que não dava e baixou para 5%. O Lula implantou a contratação de 100%. Porém, ao mesmo tempo, a expansão do mercado livre, nos moldes do FHC, exatamente como ele imaginou, com a mesma formação de preço, com as mesmas distorções imaginadas antes do racionamento, foi mantido pelo Lula.

 

Na verdade, se o mercado livre quiser homenagear seu criador, homenageie  o Lula, pois foi sob Lula que o mercado livre deslanchou. Com todos os avisos que demos em 2002, sobre todas as deficiências do mercado livre, no qual uma empresa pode falir, como agora, ao ter que  comprar energia por 822 reais. Ou então, ficar bilionária, ao estar apta a comprar energia por 4 reais.

 

Leia Também: ‘Voltar a debater racionamento é uma vergonha, face aos bilhões de reais gastos com os grandes consumidores’.

 

 

 

Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.

 

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