Por que a burguesia canonizou Nelson Mandela?

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Renato Nucci Jr.
12/12/2013

 

 

Após a sua morte, o líder sul-africano Nelson Mandela foi canonizado e convertido, pelas classes dominantes, em um ícone do pacifismo. Essa transformação feita por gente que no fundo de sua alma devem odiá-lo atende a alguns interesses.

 

Acima de tudo, pretende-se esvaziar o papel revolucionário de Mandela. Os líderes políticos burgueses que hoje derramam lágrimas de crocodilo por Madiba, como era carinhosamente chamado por seu povo, querem apagar da memória de milhões de pessoas em todo o mundo o seu exemplo como político e revolucionário. Querem esconder o seu passado de líder da luta anticolonialista.

 

Membro do Partido Comunista da África do Sul até 1962 e do Congresso Nacional Africano (CNA), Mandela nunca abdicou da violência como forma de enfrentar o terrorismo de Estado do regime de apartheid. Na década de 1940, ele surgia no interior do CNA como um crítico das táticas pacifistas de luta, empregadas por uma geração anterior de dirigentes.

 

A partir da década de 1960, após o massacre de Shaperville, quando a polícia racista abre fogo e assassina dezenas de pessoas em um protesto, Mandela anuncia que chegara o momento de responder ao terrorismo de Estado dos africâneres com a violência revolucionária. Em 1961, o CNA e o Partido Comunista criam o MK (Umkhonto we Sizwe, em zulu, ou Lança da Nação), o braço armado da luta antirracista. A causa da prisão de Mandela por longos 27 anos se deve ao fato dele ter sido detido em 11 de julho de 1963, em um sítio que funcionava como quartel general do MK.

 

Na década de 1980, concomitante a uma grave crise da economia da África do Sul, cujo domínio cabia exclusivamente à elite branca, correspondia um movimento espontâneo das massas negras cujas proezas e sacrifícios desafiavam, com mobilizações permanentes, o regime racista. Vendo as bases internas de seu poder erodir, e constatando o isolamento internacional cada vez mais crescente de seu odioso regime, o Partido Nacional, representante da minoria branca, decide entabular secretamente negociações com Mandela e outros dirigentes do CNA presos. Mandela, porém, deixou claro que o CNA não abdicaria da violência enquanto a pequena elite branca detivesse o controle absoluto do Estado.

 

A necessidade de uma saída negociada para o fim do regime de apartheid se acelera, para o governo sul-africano, com a derrota do seu exército pelas tropas angolanas e cubanas na batalha de Cuito Cuanavale, em 1988. A derrota também obrigou o regime racista a garantir a independência da Namíbia, então província da África do Sul.

 

As negociações para o fim do regime de apartheid, contudo, ocorrem em um contexto paradoxal, marcado pela crise e dissolução dos regimes socialistas do leste europeu e pelo fim da União Soviética. O capitalismo neoliberal aparece, no cenário mundial, como uma força triunfante. E os Estados Unidos, àquela altura, surgem como os grandes vitoriosos da Guerra Fria. Nesse contexto, o CNA e outras forças políticas e sociais que lutaram contra o regime de apartheid, como a forte central sindical Cosatu e o Partido Comunista, foram emparedados por um novo cenário internacional adverso. Sobressaiu-se no interior dessas forças políticas, como demonstra Analúcia Danilevicz Pereira, em seu livro A Revolução Sul-Africana (Unesp, 1972), um setor do CNA cuja perspectiva política era a da luta pela libertação nacional: democracia, bem-estar social e inserção dos negros no sistema. Perderam espaço, com isso, setores colocados à esquerda, cuja perspectiva é a da revolução social.

 

O resultado desse acordo entre CNA e o Partido Nacional foi o de garantir direitos civis antes negados aos negros, incluindo a possibilidade de estes chegarem ao controle dos aparelhos de Estado, como ocorreu em 1994, com a eleição de Mandela para presidente. Porém, manteve-se a pequena elite branca africâner como o verdadeiro bloco dominante no poder. Além de manter o controle sobre a economia, a elite branca foi agraciada com uma transição que ocorreu sem punições aos crimes inomináveis por ela praticados, apesar do massacre suportado pela população negra com as vergonhosas leis segregacionistas.

 

Esse desfecho também foi possível pelo surgimento no interior da comunidade negra, com estímulo dos africâneres, de uma burguesia e pequena-burguesia negra, a quem não interessava uma radicalização do fim do regime de apartheid, no sentido de assentar as bases de um regime socialista. Ela cumpriu o papel de conter politicamente, no interior do movimento de libertação dos negros, os seus setores mais radicais.

 

Esse histórico nos serve para compreender o esforço empreendido por dirigentes políticos burgueses em canonizar Mandela. Madiba se torna aos olhos das elites ocidentais um ícone do pacifismo e da tolerância, pelo fato do seu governo, fruto dos acordos que puseram fim ao regime de apartheid, não ter mexido nos interesses econômicos e políticos que sustentaram o regime racista por décadas. Tampouco puniram os responsáveis por décadas de violência e genocídio contra a população negra.

 

De cidadãos de segunda classe, a esta foi garantida os mesmos direitos e deveres de um branco da elite africâner. Os aspectos mais odiosos do regime segregacionista desapareceram, as massas conheceram uma melhoria relativa em suas condições de vida, mas as bases materiais que sustentaram o regime de apartheid, o controle dos meios de produção pela pequena elite africâner, mantiveram-se intactas. Varreu-se do cenário político a discriminação racial, cuja consequência óbvia era a permanente instabilidade política e social, ameaçada no horizonte por uma revolução social. O fim do regime de apartheid propiciou a implantação de um regime burguês clássico, baseado na igualdade jurídica entre todas as pessoas, principal ferramenta ideológica usada pelo Estado capitalista para apagar as diferenças entre as classes sociais.

 

Tivessem Mandela e o CNA optado pela perspectiva de uma revolução social que transferisse todo o poder à maioria do povo, expropriando política e economicamente a minoria branca, além de punir exemplarmente todos os responsáveis pela dor e sofrimento causado à população negra, hoje ele estaria sendo execrado como mais um ditador terceiro-mundista. E sua morte, ao invés de lamentada, seria saudada pelos grandes meios de comunicação mundiais.

 

Assim, a campanha em curso desencadeada mundialmente pelos governos e ideólogos da burguesia para canonizar Mandela, transformando-o em um profeta do pacifismo e da tolerância, pretende ensinar aos povos do mundo como seria o meio correto de se lutar. Tudo deve ser feito sem apelo à violência, com diálogo e respeito. Os rancores devem ser esquecidos e é necessário olhar sempre em frente. É preciso esquecer o que passou. Para tanto, desvirtua-se o papel histórico de Madiba, visando claramente mostrar aos povos dominados e explorados a maneira mais adequada de se lutar contra as injustiças.

 

Sua trajetória, de líder revolucionário a político conciliador, é apresentada de modo simplista, sem que condições históricas, como uma correlação de força dada, sejam levadas em conta. Toda essa campanha, que busca transformar Mandela de um leão africano em um gatinho inofensivo, pretende no fundo mostrar que a saída para as classes dominadas não é a de lutar frontalmente contra o capitalismo e o imperialismo para derrotá-los, mas de buscar a conciliação de classe como saída para os seus problemas.

 

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Renato Nucci Jr. é membro da organização comunista Arma da Crítica.

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