Correio da Cidadania

Um espectro ronda a esquerda palaciana: o black bloc

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Ao qualificar estridentemente os black blocs de "fascistas" (o que não são), a presidenta Dilma Rousseff tenta justificar a postura autoritária do seu governo, de estimular enrijecimentos repressivos e penais. Omite, contudo, que eles estão ocupando um espaço aberto pela domesticação da esquerda tradicional, que hoje nem sequer pronuncia mais a palavra revolução -tão cooptada está pelo capitalismo e tamanha é sua obsessão em se mostrar inofensiva para os inimigos de outrora, visando manter e aumentar cada vez mais suas boquinhas na democracia burguesa.

 

Para quem aspira apenas a gerenciar o capitalismo pelo máximo possível de mandatos, os black blocs não passam de um empecilho, e como tal são tratados. Chama a polícia!

 

Para quem não abdicou dos ideais revolucionários em troca de um poder ilusório e subalterno, eles se constituem, isto sim, numa dura acusação: suas ações, algumas das quais desatinadas, são consequência de nossa incapacidade de engajar os jovens num combate mais consequente à desigualdade, injustiças e crimes que caracterizam a dominação burguesa. Nostra maxima culpa!

 

Faz um bom tempo que a esquerda brasileira alterna fases de legalismo exagerado com acessos, geralmente curtos, de radicalismo.

 

Em 1935, Moscou ordenou um putsch contra a ditadura de Getúlio Vargas e o PCB, obedientemente, lançou-se à Intentona, de péssimas consequências. Aí, como gato escaldado, tornou-se refratário a ações mais extremadas ao longo das décadas seguintes.

Sua tibieza face ao golpe de 1964, contudo, mexeu com os brios dos comunistas. Houve luta interna, um sem-número de cisões e o PCB burocratizado deixou de ser a força hegemônica da esquerda. Como consequência, a decretação do AI-5 levou muitos agrupamentos resultantes da pulverização do partidão a aderirem à luta armada, que se tornou a principal (praticamente única)  forma de resistência à ditadura.

 

A trágica derrota dos guerrilheiros devolveu a bola para o campo da luta pacífica. E, com a chegada de Lula à Presidência da República, a revolução praticamente foi excluída dos planos e até dos discursos da esquerda chapa branca, cada vez mais inflada por oportunistas atraídos pela migalhas do poder.

 

Restava a esperança de que algum pequeno partido de esquerda repetisse a trajetória do PT, mas sem descaracterizar-se no meio do caminho. Era o sonho do PSOL, do PSTU, do PCO...

 

No más! Salta aos olhos que tal brecha histórica deixou de existir, não só em função do formidável aparato de comunicação de que hoje a burguesia dispõe, como também porque o PT conseguiu dilapidar o patrimônio moral acumulado pela esquerda durante a resistência à ditadura.

 

Na redemocratização de 1985, éramos respeitados por nosso heroísmo e tidos como uma reserva moral, uma alternativa à podridão capitalista; foi o que alavancou o crescimento petista. Os 11 anos do PT  no poder, contudo, corroeram tal conceito, favorecendo a disseminação da descrença na política e nos políticos (os quais voltaram a ser encarados, indistintamente, como farinha do mesmo saco).

 

Pouco importa o quanto se consiga mudar as sentenças do mensalão, o mal já está feito. Os petistas e seus aliados se preocuparam demais em salvar pessoas, quando o que importava mesmo era salvar a imagem dos revolucionários, não deixando que o cidadão comum passasse a desprezá-los como desprezam os políticos convencionais.

 

Faltou a percepção de que a sanha reacionária não visava destruir o Zé Dirceu e o José Genoíno atuais, mas sim o símbolo do movimento estudantil de 1968 e o símbolo da guerrilha do Araguaia, pouco importando que um e outro já não fossem mais os homens que eram naquele passado distante.

 

Tratava-se de um daqueles episódios nos quais as individualidades (até por terem cometido erros bisonhos) deveriam ser sacrificadas em nome da causa. Não o foram, e a indústria cultural deitou e rolou com a oportunidade única, concedida de mão beijada, de ficar desmoralizando a esquerda e seus mitos por oito anos a fio. Sabe-se lá até quando continuará capitalizando esta incrível lambança... O certo é que, quanto mais os condenados espernearem, mais ibope assegurarão para o espetáculo. O show nunca termina.

 

Por essa e outras, hoje praticamente inexiste o voto idealista; as eleições voltaram a ser decididas pelo voto interesseiro (que amiúde chega a ser mendicante)  e pelo voto útil. São os trunfos com que o PT conta para tentar quebrar o recorde do PRI: sete décadas de permanência estéril no poder, findos os quais os trabalhadores mexicanos continuavam tão explorados, humilhados e ofendidos como antes.

Os mascarados jamais conseguirão igualar a truculência dos fardados

Dilma mostra muita insensibilidade política ao acusar os black blocs de não serem "democráticos", exatamente num momento em que o desencanto com a democracia brasileira é generalizado e os três Poderes parecem estar numa competição de quem se desmoraliza mais no menor espaço de tempo.

 

Quem ainda conserva um mínimo de capacidade crítica constata a cada momento ser o econômico o único poder que realmente conta: em torno dele gravitam os satelizados Executivo, Legislativo e Judiciário, arrotando independência em relação às miudezas, mas submetendo-se caninamente à voz do dono nas questões que afetam os interesses maiores do grande capital.

 

Então, com a esquerda palaciana se distanciando cada vez mais do campo revolucionário e alguns partidos bem intencionados desperdiçando esforços em eleições nas quais patinam sem saírem do lugar, a esperança que resta (como augurava há meio século o fundamental Herbert Marcuse) são os contingentes à margem do jogo de cartas marcadas do sistema: os indignados que se mobilizam por meio das redes sociais e vêm sacudindo a pasmaceira da política brasileira.

 

Alguns já mostram uma surpreendente maturidade política, elegendo objetivos e alvos com muito discernimento, conscientes de que lhes cabe conquistarem corações e mentes, sem fornecerem pretextos para que a imprensa canalha os difame. É o caso do Movimento Passe Livre e dos organizadores de escrachos contra os monstros impunes da ditadura militar.

 

Os black blocs partem para o confronto físico com os efetivos policiais e para ações que a nossa excelentíssima presidenta coloca todas no mesmo saco de "vandalismo", como se destruir instalações bancárias fosse algo tão negativo quanto a atividade que nelas se desenvolve. Dilma deveria reler Brecht: "O que importa o roubo de um banco, comparado à fundação de um banco?".

 

No entanto, os mascarados jamais conseguirão igualar a truculência dos fardados. E - lição que aprendemos amargamente nos anos de chumbo!- os jagunços do sistema eram descartáveis e facilmente substituíveis, enquanto nós nos enfraquecíamos a cada baixa sofrida, perdendo companheiros de valor inestimável.

 

Enfim, as batalhas campais com a repressão tendem a terminar mal para o lado dos black blocs, além de conduzi-los à prisão. Devem ser evitadas tanto quanto possível, o que não implica cruzarem os braços diante das agressões bestiais que os PMs amiúde desfecham sobre os manifestantes. Quando os agentes do Estado se comportam como hordas de linchadores, é lícito, sim, defender-se deles.

 

Quanto à destruição de bens, mesmo que justificada, nunca vai transparecer como tal para o grande público, já que a imprensa burguesa a apresentará da pior forma possível, fazendo a cabeça dos videotas. Com mais humor e menos furor, o recado poderia ser passado sem chocar o homem comum, nem facilitar tanto a vilificação por parte da mídia.

 

A atuação dos black blocs, no seu todo, deveria ser melhor dosada, pois os excessos só favorecem o inimigo. Confio em que eles saberão extrair as lições dos últimos episódios, efetuando as correções táticas que se impõem.

 

E respeito a determinação com que combatem o capitalismo, exibindo um espírito de luta há muito inexistente em tantos esquerdistas que os vituperam, preocupados apenas com os transtornos que poderão trazer à Copa das Maracutaias e à próxima temporada de caça aos votos.

 

Dos primeiros, podemos esperar que amadureçam. Os segundos, em sua maioria, já apodreceram.

 

Celso Lungaretti é jornalista, escritor e ex-preso político. Página na web: http://naufrago-da-utopia.blogspot.com

Comentários   

0 #1 Guardadas as proporçõesWendell Setubal 08-11-2013 15:56
O texto contém alguns equívocos. O principal é, ao se referir ao período da ditadura, dizer que a luta armada foi a principal ou única forma de resistência. Nada contra os militaristas. Estavam equivocados e alguns pagaram caro (minha primeira mulher foi da Var Palmares e foi presa e torturada; seu irmão foi assassinado, no que recém se chamou de Massacre de Quintino, que o jornal O Globo noticiou, domingo retrasado, devido a uma apuração do fato pela Comissão da Verdade da OAB RJ). A questão é se havia outra forma de resistência, que era a da luta de massa, nas condições difíceis pós-AI5, tendo como eixo a luta pelas liberdades democráticas. Esse foi o centro da tática do PCB, com todos os seus equívocos, da AP, do PCdoB, até embarcar na aventura do Araguaia, e da PO, embora preferisse, em vez de liberdades democráticas, luta pela liberdade de manifestação e expressão. A crítica ao militarismo era a de não fazer trabalho de massa e sim partir para um confronto direto com o inimigo, SEM as massas, transformadas em torcedoras, como se estivessem num hipotético Maracanã, "torcendo" pela esquerda. Foram as lutas democráticas, do Movimento Estudantil e outros, que minaram a ditadura, culminando na eleição de 74, em que ela foi derrotada nas principais capitais. Não foi um final à portuguesa, como a Revolução dos Cravos, mas quantas vezes teremos de jogar no campo do adversário? Não se trata, pois, de pacifistas e não pacifistas, mas quem faz trabalho de massa e quem opta pelo vanguardismo. Nesse sentido, os Black Blocs são herdeiros do militarismo, em comum o blanquismo das ações divorciadas das massas. Qual o trabalho de base dos Blacks Blocs? Ou só aparecem quando ALGUÉM previamente convocou e criou condições para aquela manifestação? Citei o blanquismo porque além dos Black Blocs existem, no movimento, grupos que também partem pro confronto, alguns mascarados, que a mídia generaliza chamando a todos de blocs, quando não são. O articulista acha que vão evoluir, enquanto a esquerda social-democrata estaria apodrecendo. Concordo com a avaliação sobre o lulopetismo, mas acho que os Blocs não estão interessados na opinião das massas, porque valorizam a ação dos pequenos grupos. Estamos condenados a "optar" ou pela social-democracia lulista ou pelo radicalismo Black Bloc? Tal como nos anos 60, ou luta armada ou partidão? Acho que não, a realidade é mais rica, embora mais cinzenta que o brilho "heroico" dos Blocs.
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