Correio da Cidadania

O voto de minerva e o fim da tragédia (2)

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O gênero literário da tragédia, certamente um dos mais significativos legados culturais dos gregos antigos para a cultura ocidental, baseia sua dramaticidade, de modo geral, no choque pontual, mas devastador, entre duas posições antagônicas extremadas. Não é de se admirar, portanto, que uma das mais célebres obras trágicas, Eumênides de Ésquilo, situe sua ação em um julgamento.

 

Mas, se em outras tragédias, como a Antígona de Sófocles, o embate entre visões de mundo se desenvolve até as últimas e mais insustentáveis consequências, com repercussões de gravidade irreversível e arrebatadora, Eumênides nos apresenta um desfecho otimista e conciliador.

 

O conflito tratado na peça é o debate entre as Erínias, deusas incansáveis da vingança e símbolo das forças do direito formal, e Apolo, personificação do direito pautado segundo uma noção substancial do justo, e não apenas por regras formais. O objeto do debate é a condenação ou absolvição de Orestes, acusado de ter cometido matricídio para vingar o homicídio do pai, assassinado pela esposa e seu amante ao regressar da Guerra de Tróia.

 

Como conciliar os mandamentos sagrados que simultaneamente obrigam ao respeito filial e à vingança do sangue paterno? As Erínias clamavam pela condenação do jovem; Apolo, em conformidade com sua ética de consequências, propugnava pela absolvição de Orestes. Como se vê, os fatos eram incontroversos: o filho matara a mãe. Toda a questão se centrava na avaliação dos aspectos jurídicos do problema.

 

O impasse é resolvido com o voto decisivo da deusa Palas Atena. Sua decisão, que viria a ser imortalizada na expressão "voto de Minerva", promove a reconciliação das forças cósmicas e o prosseguimento coerente da vida por meio da absolvição do réu e da concomitante glorificação das Erínias como Eumênides, doravante não mais forças punitivas selvagens e violentas, e sim potências divinas pacificadoras.

 

Se Hegel enxergou na Oresteia, graças à solução harmônica promovida pelo voto de Minerva, um aspecto sintomático do precoce ocaso da tragédia grega, a decisão sobre o cabimento dos embargos infringentes no caso do "mensalão", também deixada para o desempate por meio do voto final, aponta para a oportunidade de se situar a questão no âmbito da filosofia da história. Repete-se o dilema entre legalidade e afetividade, outrora resolvido por meio da ação de Atena entre a normatividade formal das Erínias e o amor lúcido de Apolo, de modo que sua justa imparcialidade conduzisse à síntese hegeliana ao promover a reconciliação simbolizada na transmutação das Erínias em Eumênides.

 

No plano hermenêutico, tem-se que o exemplo de Atena deveria pautar o ideal de imparcialidade atribuído à atuação do juiz. Com efeito, ao expor marcadamente a polarização entre as teses de aceitação e rejeição do recurso, o julgamento do STF parece refletir de maneira descabidamente subjetiva uma cisão entre os discursos extremos daqueles que exigem o imediato cumprimento das penas com base em uma pretensa justiça apolínea e daqueles outros que, aferrados à legalidade estrita, vislumbram na verdade a oportunidade para, se não a absolvição, ao menos a protelação dos efeitos da condenação.

 

A hermenêutica tradicional, contudo, carece da radicalidade necessária para operar o direito de maneira transformadora, por conta da centralidade que confere à pretensão de construir uma metodologia de interpretação das normas por meio de cânones que em nada mais se comunicam com a dinâmica que se estabelece a cada dia entre as inúmeras variáveis da vida humana, conformando-se com o vão esforço de garantir o mito da segurança jurídica.

 

Resulta deste quadro a ideologia do julgador que declara não poder se deixar afetar pelo clamor popular no momento da decisão. Com isso, o juiz dá as costas ao aspecto afetivo ou emocional do julgamento em favor de sua concepção do que seria a melhor interpretação do texto normativo e renuncia a qualquer possibilidade de construir, à maneira de Atena, novas compreensões do justo.

 

O simples ato interpretativo é desprovido de qualquer potencial pacificador, pois não propicia a composição entre as partes em disputa. O bom julgamento de Atena é possível graças à sensibilidade da deusa, atributo que não é devido a uma idealização de sua feminilidade, mas à sua condição de patrona das artes guerreiras. Atena é a medida, a reflexão e a legalidade, mas também é a valentia guerreira e o entendimento da mutabilidade da vida. Todos estes aspectos encontram sua síntese no espírito substancial livre da pólis.

 

Ao julgador que se escora na hermenêutica tradicional falta o pathos, o sofrimento no ato de julgar do guerreiro, uma vez que ele se encontra ilusoriamente confirmado pela fixidez da norma e pelo tecnicismo da interpretação. Renuncia-se, portanto, a catalisar por meio da função julgadora a síntese hegeliana entre forças contrapostas e a condenar de maneira inequívoca, no momento único do julgamento, não apenas a corrupção do caso em comento, mas a corrupção como uma prática disseminada e encarnada em nossa sociedade, já condenada de forma contundente pelo povo no plano emocional.

 

Leia também O voto de Minerva porá fim à tragédia?

 

Ari Marcelo Solon, professor associado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Artigo escrito com a colaboração de Leonardo Passinato e Silva.

Comentários   

0 #1 RE: O voto de minerva e o fim da tragédia (2)Ednay de Cerqueira 20-09-2013 14:20
Tragédia mesmo são os nossos conterrâneos admitirem tantos mandos, desmandos, corrupções, formação de quadrilhas, peculato, desrespeitos à Carta Magna, como se fossem atos normalíssimos de homens de Bem seguindo a marola do PT.
Dessa forma ... quem poderá nos socorrer?
Se quem foi julgado e condenado estão fora da prisão, e aqueles que estão na prisão não perdem seus mandatos políticos?
Assim , nenhum país aguenta por muito tempo... Pode explodir uma revolução sem proporções. Aí sim, estaremos todos os nacionais feridos de morte sem condições de uma ressurreição, independente de qualquer setor proposto para ação., seja, social, político, econômico, religioso, moral, ético, enfim...tantos outros princípios básicos de cidadania..
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