‘Os dirigentes do PT estão de um lado e a presidente de outro. E isso é muito grave’

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Gabriel Brito e Valéria Nader, da Redação
30/07/2013

 

 

Após ultrapassar uma década no poder central, começam a ser feitos os primeiros balanços históricos do PT enquanto partido do poder, potencializados pelas eleições internas de novembro, repletas de chapas e teses que simbolizam uma forte disputa pela hegemonia interna.

 

Em meio a tal reordenamento partidário e à crise política ensejada pelas vigorosas manifestações de junho, o Correio da Cidadania entrevistou a cientista política e professora aposentada da USP Maria Victoria Benevides, uma histórica militante do Partido dos Trabalhadores, que mostrou grande apreensão com o atual momento do partido e principalmente a situação de isolamento em que se encontra a presidente Dilma.

 

“Se há vazio de poder, alguém o preenche. Que a presidente está fraca diante disso tudo não restam dúvidas”, disse Maria Victoria, que também criticou os próprios caciques do partido em relação à forma como trataram Dilma nos últimos tempos. Sobre Lula e seu chamado à ‘refundação’ do PT, fez uma simples síntese: “o que ele falou é muito importante. Precisa de mudança, o partido precisa voltar para as bases, aos movimentos sociais etc. Mas nós estamos dizendo isso desde que ele tomou posse”.

 

Enquanto descreve a perplexidade com que o partido, outrora grande frequentador e agitador das ruas, lida com as manifestações, Benevides destaca a urgência de se cerrarem fileiras em torno de Dilma, cujo mandato “não pode terminar em fracasso total”.

 

“Se o PT quiser sobreviver como um partido nascido da luta dos trabalhadores e realmente comprometido com as mudanças sociais necessárias, tem de cortar na carne e fazer mudanças radicais”, resume, porém, sem a certeza de que lideranças internas, “aquelas com poder de decisão”, estejam realmente dispostas a uma guinada progressista.

 

A entrevista completa com Maria Vitória Benevides pode ser lida a seguir.

 

Correio da Cidadania: Como você sente o atual momento do país, após as grandes e intensas manifestações país afora no mês de junho? Qual o sentido e perspectivas para os quais apontam estas manifestações?

 

Maria Victoria Benevides: Essas manifestações mostraram algo que já tínhamos, de certa maneira, esquecido. Os poderes constituídos, principalmente aqueles de carne e osso que disputam eleições, têm medo de uma coisa: das pesquisas com queda de popularidade e do povo na rua.

 

Estamos a um ano das campanhas eleitorais para a sucessão presidencial, de governos estaduais, Câmaras etc., de modo que tais manifestações vieram no momento certo, no sentido de fazer uma pressão que teve resultados, embora sempre com uma ambiguidade. Não temos certeza se é pra valer, mas elas tiveram resultado por terem dado um choque na calmaria de expectativas do governo, parlamentares e sua ampla base de apoio.

 

As manifestações pressionaram os governos de todo o país – no caso de São Paulo tanto prefeitura como governo do estado, além do Rio e outros, chegando ao governo federal – no sentido de fazerem aprovar alguns projetos de lei, alguns há décadas na gaveta, além também de forçarem uma maior tomada de decisões – através de projetos, propostas no âmbito de políticas públicas, de transportes, economia...

 

A presidente Dilma saiu da defensiva e apareceu com uma proposta de grande alcance, que não seguiu o caminho de aprovação; depois recuou, trocou etc. O importante é que ela lançou um debate importantíssimo, no caso, a participação popular e a cidadania ativa, à medida que propõe realização de consultas populares, plebiscitos, referendo... E os demais governos também tomaram algumas decisões no sentido de atenderem a pressão popular.

 

Eu digo que já tínhamos “esquecido” de certas coisas porque muita gente escreveu e debateu o assunto com um pouco de perplexidade e surpresa, quando temos de lembrar que em momentos importantíssimos da nossa história contemporânea o povo foi para a rua. Pensando só do regime militar pra cá, houve povo na rua na luta pela anistia, pelas eleições diretas, pelo Fora Collor... E antes de 1964 havia um movimento social bastante efervescente. A grande diferença é que eram setores organizados, com lideranças, ou seja, integrados à política.

 

A novidade das manifestações, eu diria, é a de ter uma agenda muito heterogênea, e quase numa posição de descartar a política. Não pela política em si, porque na realidade ir pra rua, se manifestar, pressionar e levar cartazes são atos políticos. Mas pelo descrédito dos partidos, que em pessoas de carne e osso acaba contaminando a própria ideia da política como possibilidade de transformação, de expressão, de liberdade, de defesa da igualdade, da diversidade etc.

 

Eu vi as manifestações, portanto, com entusiasmo, pois sou defensora da participação popular, da cidadania ativa, das formas de democracia direta, mas vi também com apreensão, porque estou plenamente convencida de que fora da política não há salvação. A única alternativa à ação política é a violência.

 

Porém, temos de entender que tipo de política queremos. Eu quero política baseada nos princípios republicanos, democráticos, sob a premissa de que é possível fazê-la com ética.

 

Correio da Cidadania: A reboque dessas manifestações, foi convocada a greve geral de 11 julho de 2013. Como avaliou a oportunidade dessa convocação, bem como os resultados dela advindos, em termos da participação das centrais sindicais (mais governistas e de oposição), da classe trabalhadora e da juventude operária?

 

Maria Victoria Benevides: É um movimento bastante diverso do movimento sindical efervescente da época do João Goulart, por exemplo, pois na época era muito mais unificado, enquanto hoje temos centrais rivais, com interesses político-partidários opostos. Mas o que vejo é uma situação bem diferente das manifestações de rua, que eram desorganizadas no sentido de terem liderança e militância orgânica por trás. A coisa começou com o MPL, mas é um movimento pequeno, que não poderia ficar responsável por toda a amplidão dessas manifestações.

 

E o movimento sindical é até mais organizado que outros movimentos partidários. É bastante organizado até pelos aspectos compulsórios, como o imposto sindical, benefícios às categorias por sindicalização... São coisas diferentes, mas mostram que o movimento sindical não quis perder a oportunidade. Os sindicatos agiram política e legitimamente.

 

No entanto, sua mobilização foi outra coisa. Não foi a manifestação da juventude e de grupos altamente heterogêneos que foram antes às ruas, a partir do estopim do aumento da passagem, mas também por aquilo que vi num cartaz: “513 anos + 20 centavos”. É muita coisa em jogo no momento. É uma reivindicação por um grupo de direitos que sempre estiveram em falta. Ou seja, nossa cidadania continua ainda restrita.

 

Portanto, acho muito importantes os pontos colocados pelas ruas. E os sindicatos tinham obrigação de se manifestar. Mas são forças, de certa maneira, oficiais, pois estão vinculadas à legislação do Ministério do Trabalho. Por outro lado, são organizações de bases mais sólidas, diferentemente do movimento de massa na rua.

 

Correio da Cidadania: Como tem enxergado o atual governo nesta recente conjuntura?

 

Maria Victoria Benevides: Eu acho que o governo ficou muito temeroso das consequências, principalmente no momento no qual a política econômica está revelando dificuldades que já vinham desde o ano passado, mas que se agudizaram justamente na fase dessa efervescência.

 

Assim, toda a discussão sobre medidas do Ministério da Fazenda, medidas que contrariam tanto aqueles que defendem o custeio pra políticas públicas como aqueles sempre favorecidos – o grande capital e o empresariado, que estão bastante aborrecidos com algumas decisões da presidente –, configura uma situação bem delicada.

 

Acho que o governo está tentando acertar, mas vejo o quadro com muita apreensão. Não sei como a base aliada será recosturada num ambiente de todos quererem se aproveitar do movimento, visando conquistas eleitorais. A situação para o governo, em função da queda das boas notícias, da emergência de uma política econômica que foi vigorosa e positiva, mas que se arrasta agora, é de um temor muito grande, a respeito de perder apoio no Congresso.

 

E a chamada grande imprensa está aproveitando o momento. A internet está cheia de blogs e correntes atacando o governo, o Congresso, por exemplo. Só acho que não atacam como deveriam o poder judiciário, que sempre me pareceu o pior de todos.

 

Correio da Cidadania: Seria exagerado pensar que estamos diante de um vazio de poder, com uma presidente refém de sua base no Congresso, especialmente do PMDB, afastada do PT e também sem o respaldo da base popular do partido?

Maria Victoria Benevides: Justamente. Acho que o temor vem mais da perda de base popular. Quando falo em perda da popularidade, ela é vertical, não é uma coisa que sobe ou desce dois pontos, algo dentro da margem de erro. Foi uma queda vertiginosa. Portanto, é claro que os políticos fisiológicos de sempre (infelizmente, uma base aliada que está mais pra “desaliada”), com o governo perdendo crédito e a presidente perdendo popularidade, vão cobrar caro pelo possível apoio. E estão tocando suas alianças nos estados e grandes municípios.

 

Não chegaria a falar em vazio de poder. Primeiro porque não existe. Se há vazio de poder, alguém o preenche. Mas que a presidente está fraca diante disso tudo não restam dúvidas. As propostas que têm aparecido de mudança ministerial etc. estão sendo empurradas com a barriga. Diminuir radicalmente o número de ministérios é uma loucura.

 

Outro dia, comparava o governo Dilma com o governo JK, que foi de desenvolvimento acelerado, mudança de capital para Brasília, efervescência entre os militares, e vi que ele tinha 13 ministros. E foi o máximo possível. Acho que articular um governo com tantos ministérios é complicado... E o pior de tudo é um fator, que não é típico somente da política brasileira, mas do mundo todo: nesse período eleitoral, vários ministros estão preocupados com suas campanhas pessoais pra cargos eletivos, colocando-as na frente do trabalho que deveriam desempenhar governo.

 

Correio da Cidadania: O PT, por sua vez, tem sido objeto de uma série de balanços históricos, com distintos vieses, após uma década no poder central do país. Como você enxerga o partido hoje, ao que parece, uma força descendente, mas ainda disputando o cenário político na dianteira?

 

Maria Victoria Benevides: Ah! O PT precisa de um choque; um choque de coragem, de ética, de eficiência, de vergonha na cara... Precisa, realmente, de um choque. Porque está perdendo muito apoio dentre aqueles que sempre foram militantes. Não falo nem por mim, mas vejo na faculdade, por exemplo. Alguns anos atrás, quando dava aulas específicas sobre os partidos políticos, perguntava aos alunos quem era filiado ou simpatizante de partido. Metade da classe levantava o braço e quase tudo era PT. Agora, no último semestre que dei aula – me aposentei ao fazer 70 anos –, fiz a mesma pergunta. Só duas alunas levantaram o braço. Uma do PSOL e outra do PSTU. De modo que fica visível que o PT perdeu muito espaço entre os estudantes e dentro da universidade.

 

Portanto, acho que, se o PT quiser sobreviver como um partido nascido da luta dos trabalhadores e realmente comprometido com as mudanças sociais necessárias, no sentido de corrigir injustiças, e até mesmo pra continuar as políticas sociais do governo Lula, tem de cortar na carne e fazer mudanças radicais.

 

Porém, não sei mais o que o PT está pensando. Me refiro aos que têm poder de decisão no partido. Não sei como os dirigentes estão enfrentando a pressão por uma reforma política. Acho que eles estão de um lado e a presidente de outro. E isso é muito grave.

 

Correio da Cidadania: Sendo assim, como viu a ausência de Dilma da recente reunião do PT? Teria algum significado mais simbólico ou seria um sinal de uma governante acuada?

 

Maria Victoria Benevides: Acredito que a ausência se deu pela forma como ela foi tão atacada pelo partido – de uma maneira muito deselegante. Por mais que eu faça críticas, tenho o maior respeito pela presidente Dilma. Não só por sua correção e seriedade, mas também pela figura histórica que é. E acho que se chegou a um nível absolutamente indefensável de desrespeito e críticas injustas.

 

Desse modo, a coisa começa pelo próprio partido, que é o dela e a elegeu. Isso teria de ser repensado. Uma coisa é criticar um chá de cadeira, uma não recepção em Brasília... Outra coisa bem diferente é uma base de críticas sobre pontos importantes da história do partido – e importantes num governo que se diz republicano e democrático.

 

Vejo a Dilma numa posição frágil, mas acho que a posição do partido deve ser de apoiá-la e defendê-la.

 

Correio da Cidadania: Como você analisa as posturas e análises do partido diante das manifestações de junho, face à premente necessidade de todas as forças políticas do país de disputarem as ruas?

Maria Victoria Benevides: O PT, evidentemente, não podia fazer críticas sobre algo que sempre defendeu. A maior parte do partido e de seus militantes sempre foi de militantes de rua. Mas acho que a reação do partido foi diferente de outras épocas. Até porque está no poder. Por exemplo, aqui na prefeitura de São Paulo, com o estopim da passagem: a postura foi de precaução. Ao mesmo tempo entendendo os reclamos da cidadania na rua e a situação financeira que foi deixada pelos sucessivos governos tucanos na prefeitura. Coisas que o Fernando Haddad tem procurado mostrar.

 

Portanto, o partido que está no poder fica numa posição delicada, mas claro que deve reconhecer a legitimidade das manifestações, apontando, como tem feito, que fazer manifestações denunciando políticos não pode ser uma maneira de jogar a criança junto com a água do banho. Não é porque se denunciam políticos, partidos e grupos que se pode jogar fora a ação política como possibilidade de transformação.

 

Correio da Cidadania: Em novembro, realizam-se eleições internas, e foi apresentado um grande número de chapas e teses, contrariando certo monolitismo, ou prostração, dentro do partido nos últimos anos. O que este movimento interno pode significar, em sua opinião?

 

Maria Victoria Benevides: Esse movimento interno é legítimo e muito bem vindo. Eu mesma tenho participado muito pouco, mas das últimas vezes que o fiz foi ligada a um desses grupos, no caso o Mensagem ao Partido. É legítimo, necessário e oportuno que isso ocorra no atual momento.

 

Correio da Cidadania: O que pensa sobre as atuais movimentações de Lula, que tem dado recados claros quanto à necessidade de ‘profunda reformulação’ no partido e até mesmo convocado grupos e movimentos atrelados ao PT para saírem às ruas e ‘enfrentarem a direita’?

 

Maria Victoria Benevides: O que ele falou é muito importante. Precisa de mudança, o partido precisa voltar para as bases, aos movimentos sociais etc. Mas nós estamos dizendo isso desde que ele tomou posse. Porque de certa maneira os movimentos sociais ficaram esquecidos, principalmente em seu primeiro mandato. E agora ele fala em voltar ao trabalho de base.

 

Sempre defendi que o partido precisa ter como prioridade a formação política. A educação política tem um papel pedagógico muito grande. E isso vinha sendo deixado de lado. Creio que o Lula chamou o PT a uma nova vida partidária.

 

Correio da Cidadania: Mas diante dos compromissos assumidos pelos governos Lula e Dilma com o grande capital nacional e transnacional, ainda seria crível uma inflexão progressista no partido?



Maria Victoria Benevides: Eu acho que essa guinada encontrará resistências internas. Mas acredito nela. E, afinal, eu tenho de acreditar, se não, vou acreditar em que, meu Deus?

 

Correio da Cidadania: Por fim, como você imagina que caminhará o governo Dilma daqui até o fim do mandato?


Maria Victoria Benevides: Com dificuldades. Além de dificuldades, apreensões. Por isso digo que a primeira obrigação do partido, agora, é cerrar fileiras em torno deste governo. Esse governo não pode acabar em fracasso total. É uma derrota acachapante. Acho que vai se recuperar. Torço por isso, mas também vejo como algo difícil.

 

 

Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.

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