Correio da Cidadania

Algo de novo no reino das Universidades Federais?

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São muitas vezes surpreendentes os caminhos que levam a movimentos coletivos como as greves. Quem poderia prever que depois de sete anos sem qualquer greve nacional unificada as Instituições Federais de Ensino Superior viveriam uma nova greve nacional, e com tanta força que recebeu em poucos dias a adesão dos(as) docentes de 44 instituições, incluindo praticamente todas as que foram criadas nesses últimos anos e a maior parte das grandes federais mais antigas, como a UFRJ, UFF, UNIRIO e UFRRJ (para ficar no exemplo das do Rio de Janeiro)?

 

Quem poderia dizer que nas novas instituições e nos novos campi das antigas, fruto do tão propagandeado processo de expansão formatado pelas regras do REUNI, surgiriam os setores docentes e discentes mais mobilizados para esse enfrentamento? Como imaginar que até naquelas instituições em que surgiu e implantou-se uma representação docente de caráter oficialista – o PROIFES –, cujo objetivo evidente é conter as lutas da categoria, fossem ressurgir movimentos autônomos das(os) docentes, convocando assembléias, contrariando direções pelegas e construindo também lá a mobilização (e ao que parece, em breve, a greve)? Quem apostaria que nas Instituições Federais de Ensino Superior, que por certo forneceram muitos votos ao atual governo federal na expectativa de manutenção da política de expansão e dos reajustes salariais anuais, tão forte e resoluta fosse a adesão a um movimento acusado pelo governo e os governistas de ser fruto de uma mera manipulação política de setores oposicionistas? A dinâmica dos conflitos sociais nos reserva surpresas, mas não nos dispensa de compreendê-las. Por que uma greve tão forte emergiu nestes últimos dias?

 

Para entendê-lo, é necessário reconhecer que a pauta do movimento, curta e direta, representa de fato uma forte insatisfação. A pauta: uma reestruturação da carreira docente e a melhoria das condições de trabalho. Sobre a carreira, a questão é simples: após 25 anos de aprovação do Plano Único que passou a reger a carreira docente, em 1987, sucessivas políticas salariais para a Universidade depreciaram e desestruturaram a carreira.

 

O que se reivindica é, basicamente, uma única linha de vencimento nos contracheques (com a incorporação das gratificações e o entendimento do percentual de titulação como parte do vencimento), com 13 níveis, steps (percentuais entre os níveis) de 5%, acesso interno à carreira ao nível de Professor Titular, com paridade entre ativos e aposentados e isonomia entre professores(as) da carreira do magistério superior e da carreira de ensino básico, técnico e tecnológico.

 

O piso para professor com jornada de 20 horas no início da carreira seria de R$ 2.329,35 (um salário mínimo do DIEESE, calculado com base nas necessidades mínimas de um trabalhador e sua família, conforme dita a Constituição). O governo acena com uma carreira mais desequilibrada em termos salariais, com um piso baixíssimo e promoções atreladas a critérios produtivistas, visando diferenciar um pequeno contingente melhor remunerado (por projetos e pela atuação em pós-graduações) e uma imensa maioria de docentes sobrecarregados com a elevação da carga de trabalho em salas de aulas de graduação. Já quanto às condições de trabalho, cinco anos após o início do REUNI, as instituições federais criaram centenas de novos cursos e ampliaram em dezenas de milhares as suas vagas de ingresso discente.

 

O governo, entretanto, não garantiu até agora nem mesmo o relativamente (à ampliação das matrículas) pequeno número de concursos públicos para docentes com o qual se comprometeu em 2007. As obras de expansão carecem de verbas para sua complementação, gerando ausência de laboratórios, bibliotecas e salas de aula nas novas unidades, assim como superlotação nas antigas. Some-se a isso a enorme deficiência no campo da assistência estudantil, cada vez mais necessária na medida em que, entre os novos estudantes, tendem ingressar contingentes cada vez maiores de trabalhadores(as) e filhos(as) de trabalhadores(as), sem condições de arcar com os custos de transporte, moradia, alimentação e material didático minimamente necessários para a vida universitária.

 

A greve pode ter colhido a muitos(as) de surpresa, mas está longe de ser um fenômeno de difícil explicação. Professores e professoras (e estudantes que aderem ao movimento em muitas universidades) optaram por esse instrumento de luta porque estão conscientes de sua necessidade diante da deterioração de sua carreira e das condições de trabalho. E perceberam que ou freiam agora o desmonte, ou serão arrastados ao fundo do poço em poucos anos.

 

Greve?

 

Tão logo a greve foi anunciada, surgiram de imediato combatentes anti-greve no interior das universidades. Seus argumentos não são novos para quem já viveu outros processos grevistas. Vale rebatê-los apenas para relembrar aspectos do passado recente das lutas em defesa da Universidade Pública que podem escapar àqueles(as) que  a elas se integraram nos últimos anos.

 

Greves paralisam só as graduações e prejudicam apenas os estudantes de graduação? Tal argumento foi usado principalmente a partir dos anos 2000, quando a pressão das agências financiadoras/avaliadoras sobre as pós-graduações para cumprirem metas produtivistas gerou um núcleo de docentes que assumiu internamente (ou como membros de comitês das agências) o papel de feitores da produtividade coletiva, alardeando o pânico dos prazos e metas ante qualquer rumor de questionamento.

 

As greves tradicionalmente pararam aulas de graduações e pós e podem continuar a fazê-lo. Prejudicam os estudantes? Momentaneamente prejudicam estudantes, professores e técnico-administrativos que as fazem, é óbvio, mas significam justamente o sacrifício de um calendário regular de atividades (com os prejuízos materiais e pessoais que isso pode representar) em nome de um projeto maior de Universidade Pública.

 

Assim evitamos a cobrança das mensalidades, com a greve de 1982; garantimos os direitos dos professores precariamente contratados ao longo da ditadura, com as greves da primeira metade dos anos 1980; conquistamos a isonomia entre instituições fundacionais e autárquicas e a carreira docente, com a greve de 1987; descongelamos as vagas para concursos docentes, com a greve de 2001; barramos ou derrubamos diversas propostas e práticas desastrosas para o caráter público e a qualidade do trabalho universitário (projeto GERES; propostas de “regulamentação” da autonomia; efeitos da reforma do Estado; carreira de “emprego público”; gratificações produtivistas, quebras de isonomia e paridade etc.); e preservamos minimamente os salários (que ainda assim perderam muito do seu valor de compra ao longo dos anos).

 

Estivemos longe de fazer greves meramente corporativistas, pois sempre pautamos a garantia da qualidade do trabalho de ensino, pesquisa e extensão nas universidades, o que foi sempre reconhecido pelos(as) estudantes, muitas vezes com greves conjuntas, como a que já ocorre agora em diversas universidades. Seriam os(as) estudantes tolos(as), que apóiam algo que lhes prejudica tanto assim? Ou o discurso que os vitimiza em relação à greve é apenas uma artimanha de desqualificação do movimento e da consciência estudantil?

 

Desqualificar as mobilizações de trabalhadores e de estudantes, qualificando-as como produto de minorias e forças “estranhas” (partidos, sindicatos, intenções políticas oposicionistas) ao corpo social – universitário neste caso –, é, aliás, uma das estratégias recorrentes nos argumentos anti-greve dos setores conservadores. Um recurso retórico em tudo congruente com a longa trajetória de desqualificação da população trabalhadora pelo discurso das classes dominantes, que no Brasil sempre apontaram as “ideologias alienígenas” (anarquistas, comunistas, sindicalistas, ou o que seja) como responsáveis pelas perturbações à ordem, através da “manipulação” de grupos tomados como “massas de manobra”, enquanto a maioria do “povo” – “ordeiro e pacífico” (claro!) – assistiu a tudo indiferente, quando não “bestializado”.

 

Teriam tanta força nas Universidades Federais dois ou três partidos de oposição de esquerda ao governo, que juntos somaram cerca de 1% na última eleição, para manipularem segundo seus interesses políticos dezenas de milhares de docentes? São as(os) docentes universitárias(os) tão parvos assim? E as(os) estudantes também? Se o Sindicato Nacional é tão carente de representatividade, por que reúne um contingente tão significativo de associados em suas sessões sindicais? Por que assembléias supostamente “ilegítimas” reúnem cada uma centenas de professores(as), que trocam informações, avaliam a situação, discutem e se posicionam coletivamente?

 

Por certo que o questionamento à legitimidade vem sempre acompanhado de tentativas de profecias auto-realizáveis: “não vou à assembléia porque ela é ilegítima e tem pouca participação” (e não indo, contribui-se para fazer menor a participação e assim argüir sua legitimidade). O que vem muitas vezes acompanhado de uma fala ainda mais auto-centrada de questionamento dos espaços coletivos de deliberação, não por cercearem a palavra, mas por aprovarem posturas contrárias às do indivíduo que questiona: “Já fui muito, mas desisti, pois o espaço é antidemocrático, já que toda vez que falei contra a greve perdi as votações”.

 

Há argumentos mais falaciosos, como o de que as greves não geram resultado algum ou que esvaziam a universidade dificultando o debate e a mobilização, ou ainda que docentes recebem seus salários quando fazem greve. Difícil tomá-los como simples fruto de diferentes visões políticas, pois falseiam a realidade. A história das greves docentes está sendo cada vez mais pesquisada e diversos trabalhos acadêmicos já fizeram o balanço e avaliaram a importância desses movimentos nas últimas três décadas. Um quadro sintético dos resultados das greves nas Instituições Federais pode ser consultado em http://www.sedufsm.org.br/index.php?secao=greve. As greves sempre potencializaram o debate – interno às Universidade e público – sobre as políticas para o ensino superior no país e parar a atividade universitária é o único meio de garantir mobilizações multitudinárias nas ruas.

 

Que debate sobre o ensino superior estão fazendo os anti-greve em suas aulas cotidianas? De que mobilizações em defesa da Universidade Pública estão participando enquanto dão suas aulas? Já quanto aos salários, não seria absurdo que o direito de greve fosse respeitado e os salários pagos, mas todos(as) se lembram de como em diversas greves que ultrapassaram um mês de duração os salários foram cortados (cuidado! O governo corta os salários de todo mundo, inclusive dos(as) que continuam dando aulas!), como na greve de 2001, em que dois meses foram sucessivamente cortados e só pagos depois que as mobilizações da greve arrancaram decisões judiciais favoráveis em meio a “guerras de liminares”.

 

Não é difícil entender as motivações dos(as) que se propõem a furar uma greve (fura-greves pode ser um “conceito nativo” com conotação negativa, como pelego, mas é compartilhado por todos os estudiosos dos fenômenos grevistas nas Ciências Humanas e Sociais, porque corresponde ao que expressa). Em alguns casos, acomodam-se a – e reproduzem – determinadas situações de poder; em outros, estão por demais enredados em mecanismos de apropriação privada de recursos através da Universidade Pública (como cursos pagos e consultorias); algumas vezes apenas estão aferrados à defesa do governo de “seu” partido. Outras vezes, um pouco de tudo isso está presente.

 

Fazer a greve

 

As respostas mais significativas aos anti-greve sempre foram construídas pelos próprios movimentos e seus resultados objetivos. Não se trata de docentes que não aprenderam com as lições do passado, mas de deliberada retomada de argumentos desgastados para marcar posição e construir a rede de reverberação interna às arengas conservadoras tradicionais dos governos e da mídia. No entanto, greves fortes e participativas, como está se desenhando desde o começo, atropelam sem maiores problemas tais tentativas de deslegitimação da luta coletiva.

 

Não há como prever os resultados finais da greve, mas desde já se podem perceber algumas conquistas significativas. Docentes e estudantes que ingressaram nos últimos tempos nas universidades participam ativamente de um movimento coletivo e sentem-se parte de uma comunidade universitária que pode sim atuar unida em torno de pautas comuns. No reino do individualismo, da concorrência e do produtivismo, ouve-se um coro de vozes falando como uma só, fazendo ecoar cantos de solidariedade, dignidade, coletividade e consciência de classe.

 

Nessa toada – de uma greve apoiada pela maioria da categoria, dada a justiça de suas reivindicações, e que ganha do apoio à adesão dos estudantes pelo aspecto da defesa da Universidade Pública e da qualidade do ensino –, estamos diante da construção de um movimento suficientemente forte para gerar repercussão pública, apoio social e, com essas condições, dobrar o governo e garantir ganhos efetivos. Transformar esse potencial em realidade é o que nos cabe a partir de agora.

 

Nota:

 

O Reuni é um programa de expansão, instituído em 2007 por decreto pelo governo Lula da Silva, que previa (mas não garantia) um pequeno aporte de novos recursos para investimentos nas universidades federais e alguns concursos para novos docentes em troca da expansão de vagas/matrículas/cursos para estudantes em até o dobro das existentes, cumprimento de metas de produtividade (elevação da relação professor-aluno e do percentual de formados entre os ingressantes) e a conversão dos novos cursos superiores num modelo de formação mais rápida, em dois ou três anos e sem habilitação profissional precisa.

 

Marcelo Badaró Mattos é professor do departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF)

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