Um porta-aviões encalhado na cidade

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João Sette Whitaker Ferreira
14/08/2007

 

“Essa aterrissagem em Cumbica não resultaria em tragédia. Há espaço de pista e área de escape”. A afirmação, feita por um piloto ao jornal O Globo (21/07), é a mais importante informação para quemquer discutir a pertinência de manter ou não o aeroporto de Congonhas em funcionamento. É preocupante que se norteie tal discussão por uma pesquisa de opinião pública, como a realizada pela Folha de S.Paulo.

 

Independentemente da opinião dos paulistanos, e quaisquer que tenham sido as causas do acidente, se o avião da TAM tivesse pousado em Cumbica, vidas talvez tivessem sido preservadas. As instruçõesrecentemente feitas aos pilotos de seus aviões a partir das primeiras análises da caixa pretapara que alterem os procedimentos de pouso quando com pane no reverso deixam crer que um dos fatores tenha mesmo sido falha mecânica. Se fosse em Cumbica, tal falha teria as mesmas conseqüências?

 

Aeroportos imersos em densas malhas urbanas, como Hong Kong, Bangkok ou Beijing, já foram desativados. Mas aqui se optou pela loucura de transformar Congonhas no maior centro de conexõesrede aérea do país, em grande parte como resultado da competição desenfreada entre as empresas.

 

Na época de sua construção, quando os aviões eram à hélice, tais aeroportos estavam longe da cidade. Em Congonhas, construído na década de 30, não há nenhum grande equívoco urbanístico no fato da cidade tê-lo “cercado”. Ela cresceu, e isso era inexorável, embora no nosso caso com exagerada liberdade para o mercado imobiliário. Sim, as regras de urbanização poderiam ser mais rígidas, inclusive evitando-se a construção de um posto de gasolina no eixo da pista. Mas o erro urbanístico foi o de manter o aeroporto no meio da cidade e, mais ainda, torná-lo anos depois o de maior tráfego do país.

 

Cercado por avenidas e prédios, ele não tem como ampliar suas pistas sem arcar com desapropriações milionárias e mudanças complicadas da malha viária. Com o tempo e a modernização tecnológica dos aviões, elas se tornaram curtas e delicadas para pouso, face ao tamanho e potência dos jatos comerciais. A tão alardeada “segurança” passou a depender apenas da tecnologia e da nossa fé de que máquinas, sistemas de pouso e engenharia de pista são realmente capazes de fazer decolar e frear aviões nesse curto espaço. A segurança supostamente existe, mas se houver problema, a situação é limítrofe. Exatamente como num porta-aviões. Só que nesses, os riscos fazem parte da guerra. Em Congonhas, em tempos de paz, incontáveis passageiros já sentiram a sensação de insegurança: desvios para Guarulhos, arremetidas, impactos e até derrapagens, como a da véspera da tragédia.

 

Mesmo com notas oficiais sobre a confiabilidade da tecnologia e a normalidade de tais eventos, eles levantavam dúvidas, até para os leigos: é normal um aeroporto “seguro” passar tanta insegurança a seus usuários? Se a tecnologia de um moderno Airbus lhe permite frear sem reversores, mesmo na chuva, mesmo sem as ranhuras na pista, porque o ruído emitido por esse equipamento, indicando o quanto ele parece ser necessário, é tão mais intenso nos pousos em Congonhas do que em Cumbica? Se em Guarulhos a área de aproximação da pista deve manter-se vazia por “segurança” (embora já comece a ser ocupada por habitações informais), porque em Congonhas ela pode ser sinalizada por cones fincados entre prédios e avenidas?

 

Até poucas décadas atrás, grandes jatos usavam Viracopos, e Cumbica foi construído mais próximo de São Paulo justamente para dar à cidade um aeroporto capaz de recebê-los. Então, o que aconteceu, de uns tempos para cá, para que Congonhas, que deveria ser secundário, tenha se tornado o mais importante do país?

 

Aconteceu que a maioria das passagens internas vendidas hoje em dia são de viagens corporativas. Leu-se que o trafego aéreo brasileiro cresceu no último o dobro da média mundial, e que nos últimos três anos, aumentou 44% o fluxo de passageiros em Congonhas. Para os homens de negócios, políticos, funcionários de grandes empresas e demais passageiros que embarcam em São Paulo na pressa de suas atividades profissionais, deslocar-se para Guarulhos é absolutamente inviável. Se no Rio um ônibus do Galeão para o centro custa R$ 3,50, em São Paulo ele sai por R$ 27,00 para ir a Cumbica. Os pontos de embarque são poucos, face à imensidão da cidade. De táxi, a viagem sai entre R$ 60,00 e 100,00. A probabilidade de se ficar preso no tráfego infernal da Marginal Tietê é enorme - isso se esta não alagar em dia de chuva. O projeto já velho de um metrô leve para Cumbica nunca saiu do papel.

 

Diante disso, a pressão dos clientes para embarcar em Congonhas e a competição desenfreada das companhias para responder à demanda do maior centro econômico do país fizeram desse porta-aviões urbano o ponto de embarque preferencial.

 

Consequentemente, as conexões de vôos de outras cidades também passaram para lá. Como se fosse natural, nas primeiras discussões sobre medidas para o aeroporto, antes da tragédia, as propostas iam apenas no sentido de otimizá-lo ainda mais: aproveitar áreas ociosas, aumentar áreas de check-in. Graças à “segurança” das tecnologias modernas, nada se falou sobre a pertinência da sua existência. Segundo a imprensa, a retomada do uso da pista antes da realização do “grooving” deu-se por pressão do lobby das companhias. A ANAC não aceitava, na defesa das empresas (não devia regulamentá-las?), discutir uma diminuição do número de vôos.

 

Se uma cidade como a de São Paulo quer ter um aeroporto condizente com sua importância, terá de arcar com a construção de uma infra-estrutura de transporte realmente adequada para garantir, assim como ocorre em todas as grandes cidades do mundo, um deslocamento ágil e barato até seu aeroporto internacional. As empresas, por conta dos vôos desviados para Guarulhos, já mantém ônibus gratuitos para seus passageiros. Porque não organizar uma rede adequada, multiplicando os pontos de embarque e check-in adiantado? Um metrô aéreo leve poderia levar passageiros a Cumbica, saindo do centro, em cerca de 20 minutos. Os investimentos para isso devem ser federais, mas também estaduais e municipais, pois essa é uma questão metropolitana.

 

As medidas apresentadas pelo Governo Federal são positivas pelo menos em uma coisa: reduzem enfim, drasticamente, o exagerado e inviável fluxo do aeroporto de Congonhas. Ele poderia talvez serpara pequenos aviões de trajetos regionais. O ideal, entretanto, seria simplesmentetransformar seu belo prédio em museu, suas pistas em parques e áreas para habitações de interessesocial que a cidade tanto carece. Duzentas vidas foi um preço muito caro para provar que Congonhas não pode mais estar lá.

 

 

João Sette Whitaker Ferreira, arquiteto-urbanista e economista, mestre em Ciência Política e doutor em Urbanismo, é professor de planejamento urbano da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

 

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