‘Rio pacificado é um blefe’

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Gabriel Brito e Valéria Nader, da Redação
17/11/2011

 

 

No último dia 31 de outubro, o país foi surpreendido com o anúncio do deputado estadual e pré-candidato à prefeitura do Rio, Marcelo Freixo, de que deixava o Brasil, a convite da Anistia Internacional, para passar um período na Europa e se ver temporariamente livre das incontáveis ameaças de morte que sofre das milícias cariocas.


Para tratar do assunto e falar sobre algumas polêmicas levantadas, o Correio da Cidadania entrevistou outro parlamentar do PSOL, o deputado federal Chico Alencar. A conversa ocorreu no dia 8 de novembro, logo após a morte do cinegrafista da Bandeirantes Gelson Domingos, na favela de Antares, antes, portanto, do retorno de Freixo ao Brasil, dia 16 de novembro, e também antes da operação militar de ‘retomada’ estatal na Rocinha, no dia 14 de novembro, fato cujo contexto e significado mais amplos foram abordados pelo parlamentar.

 

Alencar esclareceu que, na verdade, seu correligionário pretende apenas divulgar sua luta e martírio pelos direitos humanos, mostrando um Rio de Janeiro que não entrou nas cenas de Fernando Meirelles no filme oficial da candidatura carioca às Olimpíadas que sediará em 2016. Aproveitando o ensejo, assinala que a luta de Freixo se dá igualmente contra o “Estado Olímpico de Exceção”, cada vez mais perpetrado em nome dos grandes eventos e negócios que terá pela frente a Cidade Maravilhosa.

 

Chico Alencar também rebate com veemência as correntes que acusaram o deputado que vive sob escolta desde 2008 de praticar um golpe de marketing ou coisa parecida, sugerindo que troquem de vida com Freixo e enfrentem as milícias, uma forma de poder “pré-republicana”, que “ofende à própria dinâmica capitalista, já que milícia é máfia e mata”. Por tabela, Alencar não colocaria mancha alguma na suposta aproximação de Freixo com a mídia conservadora e outras figuras públicas, tal como apontaram alguns setores. Faz ainda questão de salientar que '"a cobrança não é individual, por mais proteção ao Marcelo, mas por uma ação efetiva do Estado contra as áreas dominadas pelo poder despótico, absolutista e criminoso das milícias".

 

Além do mais, Alencar ressalta a gritante conivência de Eduardo Paes e Sergio Cabral com tais máfias. “Os parlamentares presos e cassados no Rio sempre foram aliados de Paes e Cabral. Isso é uma situação escandalosa, absurda, e o silêncio deles é revelador. Eles não têm o que dizer porque até aqui foram cúmplices dessa situação intolerável e inaceitável. As milícias também possuem currais eleitorais, dos quais tanto o governador como o prefeito são beneficiários”.  Quanto às famosas e aclamadas UPPs, as Unidades de Polícia Pacificadora, o parlamentar destaca que só estão se dirigindo para áreas do narcotráfico, deixando de lado as áreas de milícia, que hoje são maiores territorialmente que as do narcotráfico. Constituem, ademais, as UPPs o braço armado do Estado, faltando o essencial complemento social.

 

A entrevista completa pode ser lida a seguir.

 

Correio da Cidadania: O que você teria a dizer sobre o pedido de exílio de Marcelo Freixo, amparado pela Anistia Internacional e por tempo determinado, com base nas seguidas ameaças que sofre há anos dos milicianos e seus comparsas?

 

Chico Alencar: Não foi bem um pedido de exílio, e sim a aceitação de um convite da Anistia Internacional, que aconteceu agora por uma situação de absoluta tensão, vivida em sua própria família, pois as ameaças que ele sofre desde 2008 cresceram muito. Só neste mês de outubro chegaram a sete. E não houve nenhum retorno da Secretaria de Segurança do Estado, do ponto de vista da investigação e apuração da origem de tais ameaças e um combate direto às milícias, que estão espalhadas pela cidade com essa omissão cúmplice da atuação e expansão das milícias.

 

Outro fator que o levou a sair do país é a necessidade de respirar um pouco, pois ele vive sob escolta desde 2008, trocando o carro blindado para pistola por outro blindado para fuzil, o que leva a um nível de estresse muito grande.

 

Portanto, por um lado, saiu pra respirar, ter um pouco mais de liberdade e tranqüilidade. Por outro lado, aceitou o convite da Anistia pra divulgar mundialmente que essa história de Rio pacificado é um blefe. É mentira, pois, na verdade, ainda há muitos problemas na Cidade Maravilhosa que sediará Copa e Olimpíadas. O discurso oficial se choca com a realidade.

 

Correio da Cidadania: E quanto ao governo de Sergio Cabral e à prefeitura de Eduardo Paes, como ficam posicionados nessa história? Por que até agora só mostram indiferença ao tema?

 

Chico Alencar: A repercussão das ameaças e a saída temporária do Marcelo do país são também uma cobrança aos governos, especialmente o estadual, responsável pela segurança pública. O Marcelo ainda lembra que ele especificamente pode ter proteção e escolta constantemente, e convite para passar um tempo no exterior. Mas e as milhares de pessoas que vivem oprimidas nas áreas de milícias, que, se não pagarem a taxa de “proteção”, são expulsas da área, se não aceitarem comprar os “serviços” que as milícias oferecem – como bujão de gás, sinal clandestino de TV a cabo, transporte alternativo, com todo seu despotismo mercantil -, podem até ser mortas?

 

Portanto, a cobrança não é individual, por mais proteção ao Marcelo, mas por uma ação efetiva do Estado contra as áreas dominadas pelo poder despótico, absolutista e criminoso das milícias. A quem os governos, estadual e municipal, sabem exatamente onde estão, até porque em épocas eleitorais vão conviver com seus chefes, que também possuem currais eleitorais, dos quais tanto o governador como o prefeito são beneficiários.

 

Os parlamentares presos e cassados no Rio, deputados estaduais e vereadores, sempre foram aliados políticos de Paes e Cabral. Isso é uma situação escandalosa, absurda, e o silêncio deles é revelador. Eles não têm o que dizer porque até aqui foram cúmplices dessa situação intolerável e inaceitável. Agora, esperamos uma postura mais proativa deles contra as milícias.

 

Destaque-se: as badaladas UPPs só vão para as áreas do narcotráfico e, aqui e ali, fazem uma tomada do território. Claro que falta um complemento social, pois são mais um braço armado do Estado e só isso é absolutamente insuficiente. Mas mesmo assim chegam lá. Já nas áreas de milícia, que hoje são maiores territorialmente que as áreas do narcotráfico, não há UPP, a não ser uma única, na favela do Batan, localizada na zona oeste. É pequena, mas foi onde os jornalistas do jornal O Dia, que faziam uma reportagem investigativa, foram presos e torturados pela milícia local. Aí, pela repercussão do caso, o governo teve de agir.

 

Aliás, este é outro episódio tratado no filme Tropa de Elite 2, todo baseado na realidade, como é o caso do próprio deputado e professor Fraga, inspirado no Marcelo Freixo. Pra gente ver onde estamos, o secretário de Segurança Pública do governo Garotinho, Marcelo Itagiba, disse recentemente que o filme é “pura ficção... De qualquer forma, creio que, a partir de agora, com a cruzada do Freixo no exterior, alguma coisa mude um pouco.

 

E faço uma ressalva: o secretário de Segurança do estado, o José Mariano Beltrame, já foi detectado pela inteligência da Polícia Civil, em conversas entre milicianos, como alguém a ser eliminado, assim como a chefe de Polícia Civil, a delegada Martha Rocha. Isso por serem pessoas que não têm comprometimento com as milícias. Mas o sistema ao qual eles servem têm...

 

Correio da Cidadania: Ouve-se, de fato, com freqüência a respeito de um andamento positivo para a questão da segurança pública no Rio de Janeiro, na medida em que se estabeleceram, entre outras, as citadas Unidades de Polícia Pacificadora em várias das favelas cariocas. O que teria a acrescentar sobre esta idéia que tem sido forjada sobre a segurança pública e os direitos humanos, tais como se dão, efetivamente, no Rio de Janeiro nos dias atuais, especialmente considerando as imposições ditadas pela Copa e pelas Olimpíadas?

 

Chico Alencar: Na verdade, está se criando o Estado de Exceção. E mais: também está se criando uma área privilegiada da cidade, uma espécie de cinturão nas áreas onde se desenvolverão os jogos, uma cidade que exclui os pobres, nega os direitos sociais, suspende os direitos humanos, impõe projetos urbanísticos retirando pessoas de suas casas, produzindo uma “cidade ideal”, mas só para privilegiados. Uma cidade de fachada, para estrangeiro ver. Isso tudo indica que o propalado legado social não vai existir.

 

Até aqui, tudo tem caminhado muito mal, inclusive com gastos abusivos de dinheiro público. Gasta-se um bilhão de reais para reformar o Maracanã, que já havia sido reformado para o Pan 2007, enquanto os servidores públicos de áreas essenciais, como bancários, trabalhadores da educação, da saúde, os bombeiros, estão cada vez pior. Além disso, outros investimentos, em transporte de massa sobre trilhos, projetos rodoviários, articulados, vias expressas, não dão perspectiva de oferecer bons serviços à população após os grandes eventos.

 

Correio da Cidadania: O que pensa de algumas reações da opinião pública, sugerindo um certo ‘estrategismo’ na atitude de Freixo, uma vez que já gozava de forte aparato de segurança e retornou rapidamente, inclusive no sentido de concorrer à prefeitura?

 

Chico Alencar: Quem considerar marketing que troque de lugar com ele, vá ter uma atuação forte e desabrida contra as milícias pra ver o que acontece. Experimente viver sob constantes ameaças, inclusive contra seus filhos, receba informação de que numa conversa os milicianos tratavam do trajeto do filho, em tal lugar, dia e hora, pra ver se é fácil, suportável.

 

Quem fala isso é de uma insensibilidade total e, objetivamente, acaba se aliando ao banditismo. É evidente que se deve, sim, repercutir essas coisas. O que protege alguém no Brasil é a publicidade, a denúncia das ameaças, além da solidariedade, a mais geral e irrestrita. Isso vale bastante para os líderes rurais, camponeses, mortos freqüentemente. É isso que o Marcelo muito corretamente está fazendo. Mas ele não abre mão de sua função, assim como nós do PSOL tampouco abrimos mão de sua pré-candidatura à prefeitura da cidade. Claro que ele tem todo direito de não se candidatar. Mas ele não dá sinal de que vai recuar.

 

Ele tem, sim, bastante proteção individual, do que não temos reclamações. No entanto, o problema é que o governo não faz o ataque às fontes de reprodução econômica das milícias. Por isso, e já está comprovado, elas se expandem, não só no Rio de Janeiro, mas pelo Brasil também. Há pelo menos 12 estados onde essa forma de poder paralelo está se implantando. Isso é gravíssimo, corrói os fundamentos da República. E a denúncia do Marcelo é nesse sentido. Ele cobra, com seu gesto e sua ida temporária ao exterior, uma ação e pressão até internacional para que o processo de expansão das milícias seja enfrentado.

 

Fora isso, destaco o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, com quem falei e se disse solidário ao Marcelo, dizendo-se pronto para atender ao pedido do governo estadual de articular uma ofensiva contra as milícias. Mas pela federação brasileira ele não pode agir, precisa da solicitação do governo estadual. Este, mentirosamente, diz que está tudo bem, algo que a realidade não corrobora.

 

Correio da Cidadania: E o que pensa das acusações que têm sido feitas a Marcelo Freixo, relativas à aproximação com setores da mídia conservadora e figuras que pouco teriam a ver com a luta humanista e anticapitalista?

 

Chico Alencar: Tomara que a mídia conservadora, de direita, e qualquer figura pública, assumam essa luta humanista, pelos direitos humanos. É bom porque amplia nossa força. Se for um combate ao despotismo criminoso das milícias, ótimo. Se sair no Jornal Nacional e as Organizações Globo assumirem o combate às milícias, acho muito bom, pois seria uma organização, que em geral reproduz a ideologia dominante, mostrando uma fissura, mostrando que não vale tudo.

 

Isso não quer dizer que estejamos recuando um milímetro no discurso, na prática. Até porque as milícias são algo pré-republicano, muito atrasado, que tem a ver com o coronelismo, com as formas mais retrógradas de ação política. O mínimo de modernidade não incorpora essa truculência como algo normal. Portanto, tais setores são importantes nessas denúncias. Milícia é máfia e ofende até a dinâmica capitalista. O problema é que máfia mata, e isso não podemos aceitar.

 

Correio da Cidadania: Você mencionou há pouco que o PSOL não abre mão da candidatura de Freixo nas próximas eleições municipais. Diante do quadro que está instaurado, não será temerário para um partido que prega o socialismo lutar pela via institucional em um local como o Rio - onde sequer é possível fazer campanha em certos locais sem a permissão da milícia, e onde os altos círculos de poder têm notórias ligações com o crime organizado e com grupos econômicos poderosos?

 

Chico Alencar: Considero fundamental combinar a ação institucional, inclusive nos espaços da democracia formal burguesa, com a luta social, as formas de organização popular, para além dos marcos restritivos da institucionalidade. Há movimentos sociais vivos, embora com muitas debilidades, dentro daquela má tradição brasileira de pequena organização popular, pouca cidadania horizontal, mas toda campanha e disputa eleitoral são espaços também de estímulo a tais lutas sociais, à organização dos “de baixo”, como dizia o Florestan Fernandes, e servem para colocar questões que o próprio sistema não pode responder.

 

Lembro da belíssima campanha do Plínio à presidência, maior presença institucional não há. Ele colocava a questão do limite da propriedade rural, Belo Monte, dívida pública que come metade do orçamento, isto é, temáticas que ninguém mais colocava. No Rio, o Marcelo Freixo representa uma candidatura coletiva das forças que o apóiam, é contra o Estado Olímpico de Exceção, a cidade para poucos, o projeto autoritário e vertical de gestão urbana e contra a hegemonia absurda que hoje reúne pelo menos 15 partidos em torno do atual prefeito e candidato à reeleição.

 

Eduardo Paes tem que ser contestado nas ruas e urnas. Lembrando que PT, PC do B, PSB, todos, já se definiram como aliados do atual prefeito, ligado ao atual governador.

 

Correio da Cidadania: Os fatos ocorridos com Freixo poderão ter uma repercussão mais positiva ou mais negativa neste propósito, em sua avaliação?

 

Chico Alencar: Bom, vale dizer que o convite da Anistia já existia e ele achou que o momento, com a família sob grande tensão, com gravações e informações de ameaças aos filhos, era de respirar um pouco. Já estive com ele várias vezes, conheço até alguns seguranças, e viver 24 horas por dia sob escolta é terrível. Mas não está exilado, vai voltar logo. Foi fazer uma missão no exterior, ganhar um pouco de oxigênio e já está de volta à luta. Depois, esperamos que sua segurança esteja reforçada e, afinal, chegue o relato da Secretaria de Segurança Pública sobre a investigação das 27 ameaças de morte que já chegaram até ele.

 

Acredito que ele volta com mais força. Apesar de alguns dizerem que foi marketing, isso não tem muita credibilidade. Houve um ato na OAB em solidariedade e um jornalista informou que a Secretaria de Segurança dissera que não havia ameaça nenhuma contra ele. Na hora, ele respondeu que, no mesmo dia, o secretário de Segurança informou que estavam averiguando as ameaças. Ou seja, as contradições do governo estadual ficaram mais expostas. Não há credibilidade para quem diga que foi jogada política. Na verdade, expôs-se com mais força a tolerância dos governos Paes e Cabral, para ser generoso na avaliação, com a expansão das milícias pelo Rio de Janeiro.

 

Correio da Cidadania: Com as atuais alianças políticas, que no final das contas envolvem em suas pontas tanto as milícias e seus currais eleitorais como o PT, não fica difícil de imaginar ações efetivas do governo federal, tal como você relatou ter ouvido do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo?

 

Chico Alencar: Sim, mas falo de ação pontual. Para mim, a palavra do ministro da Justiça vai no sentido de que tratamos da gravidade do assunto. Mas depende de solicitação do governo Cabral. Assim como no caso da juíza Patrícia Accioli, quando o governo não pediu nada; logo depois de dois meses, o óbito. E já se sabia que aconteceria, aquilo foi ação policial, de agentes fardados.

 

Correio da Cidadania: Que relação poderíamos fazer desse episódio, que envolve um deputado que se exila em plena ‘democracia’, com o momento que vivemos na nação em nível federal, especialmente tomados os atuais moldes regressivos adotados para aprovar a dita ‘Comissão da Verdade’?

Chico Alencar: Primeiro, revela que nossa democracia não é tão democrática assim, na medida em que direitos elementares, como o direito à vida, para pessoas que combatem o latifúndio no campo ou as milícias e poderes paralelos nas cidades, não é assegurado. Um atentado à mais elementar democracia. Estamos ainda com cenários do século 19, mesmo nos centros urbanos. Quanto à Comissão da Verdade, são enormes as resistências a que apure efetivamente quem, em nome do Estado brasileiro, prendeu, torturou, matou, sumiu com corpos - será muito difícil sem uma forte mobilização da sociedade. Da forma como está, será uma Comissão faz de conta. Igual a nossa democracia, na qual os direitos humanos para grandes parcelas da população são um faz de conta.

 

 

Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.

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