Correio da Cidadania

O casamento do príncipe e a celebração da desigualdade

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Nunca o casamento de um príncipe foi acompanhado por tantos plebeus embevecidos quanto o do príncipe inglês William na última sexta-feira. Arrebatados pela ostentação das cerimônias, a riqueza das roupas e a simpatia do jovem casal, muitos desses plebeus em Londres e pelo mundo afora não se deram conta de que a sobrevivência de monarquias e de seus rituais representa uma das limitações significativas das transformações democráticas na Europa. O aclamado casamento do príncipe William demonstra que, no Velho Continente orgulhoso de ter abolido os privilégios de nascimento e instituído a igualdade de todos perante a lei, ainda há famílias que são mais iguais do que as outras e ainda existem chefes de Estado que herdam tronos seculares pelo simples acaso de nascerem em berços privilegiados.

 

A demolição da estrutura medieval de estamentos, com suas desigualdades reconhecidas nas leis e nos costumes, iniciou a construção de regimes democráticos modernos e a expansão do capitalismo na Europa. Foi particularmente importante a revogação da sujeição da gleba, que vinculava os camponeses aos feudos e a seus senhores num regime servil e opressor. As grandes revoluções democráticas burguesas, como a francesa, foram feitas sob as bandeiras das lutas pela abolição dos privilégios de sangue e pela liberdade e igualdade.

 

É claro que essa igualdade era e continua sendo essencialmente jurídica, preservando a desigualdade econômica, que se renovou e aprofundou. A própria igualdade jurídica consagrada nas novas constituições sofreu durante muito tempo restrições, como a do direito de voto, que excluía as mulheres e discriminava os homens que não alcançassem determinados níveis de renda ou de instrução. Foi necessária uma luta prolongada dos trabalhadores e das mulheres para que o direito de voto se universalizasse e as liberdades de organização partidária e sindical se estendessem.

 

Em alguns países europeus, onde a luta democrática impelida pela participação dos camponeses e dos trabalhadores urbanos avançou mais, outra desigualdade jurídica importante, a das monarquias com seus chefes de Estados hereditários e vitalícios, saídos de famílias nobres, foi eliminada pela proclamação de regimes republicanos, com chefes de Estado e de governo temporários e eleitos.

 

Houve países europeus, no entanto, em que as burguesias locais preferiram chegar a um pacto com a nobreza territorial, preservando as monarquias e freando a democratização e a ameaça dos trabalhadores. Com o passar dos anos e a consolidação do predomínio burguês, os privilégios da nobreza foram sendo restringidos e os reis e rainhas obrigados a reinar cada vez menos. Ainda assim, nesses países em que as monarquias foram mantidas e o Poder Legislativo chegou a ser dividido entre uma Câmara dos Comuns eleita e uma Câmara dos Lordes nomeada, como no Reino Unido da Grã-Bretanha, os soberanos reais continuaram desempenhando uma função política e cultural muito importante para a estabilização das novas desigualdades burguesas e imperiais. O casamento festivo e aclamado do príncipe William é uma demonstração da importância dessa influência ideológica conservadora e antidemocrática das casas reais.

 

Os monarcas europeus, para sobreviver ao avanço do capitalismo e das lutas democráticas dos trabalhadores (até mesmo para resistir aos escândalos que abalaram de tempos em tempos suas famílias, lembrando que elas não são excepcionais nem detêm qualidades natas para exercer as funções estatais que monopolizam) tiveram que fazer concessões a seus súditos plebeus, admitindo, por exemplo, o casamento de príncipes herdeiros com noivas milionárias, mas plebeias. Essas noivas, é verdade, logo foram agraciadas com títulos de nobreza e integradas, com maior ou menor êxito, nas tradições seculares de suas novas famílias.

 

Outro expediente dos soberanos europeus que se tornou comum foi a outorga de títulos de nobreza a intelectuais de renome, a desportistas famosos ou a cantores de grande popularidade. Na Grã-Bretanha, após o desgaste sofrido pela coroa por causa dos maus tratos infligidos à princesa Diana, a rainha-mãe decidiu festejar o aniversário de sua coroação com uma concorrida apresentação nos jardins reais de alguns dos artistas mais consagrados da música pop internacional.

 

Não se pode desconhecer que esses esforços, com a repercussão multiplicada pela cobertura favorável da mídia capitalista mundial, surtiram efeitos, como evidencia o sucesso da festa britânica da última sexta-feira. Num momento em que as grandes potências capitalistas invocam com insistência a defesa da democracia para justificar suas intervenções interesseiras e armadas nos assuntos internos de nações mais débeis, milhões de pessoas foram induzidas a aclamar um casamento que simboliza, contraditoriamente, a continuidade de uma desigualdade antidemocrática e pré-moderna.

 

As famílias trabalhadoras, que penam diariamente para garantir sua subsistência, precisam, em face de comemorações manipuladas como esta do casamento do príncipe William, abrir os olhos e as mentes para não desempenharem o papel de vítimas tolas que batem palmas para sua própria opressão e pobreza.

 

Duarte Pereira, 72 anos, é jornalista e escritor.

 

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Comentários   

0 #1 O casamento do príncipeMarluce Souza 03-05-2011 13:45
A construção das idéias de Duarte Pereira é perfeita. Pena que este artigo não chegue à grande maioria dos jovens que se prostam diante de uma TV para assistirem à união de um nobre com uma plebéia. Pessoas que acreditam que isso modificará a organização social do mundo. Verdadeiramente estão aplaudindo ao espetáculo das contradições e do fortalecimento das diferenças sociais que deixam na miséria uma enormidade de seres humanos. Fico pensando: por que será que ninguem se junta, desta mesma forma, para lutar por uma saúde de qualidade e uma educação que possa transformar nossos jovens em adultos politizados, profissionalizados e emancipados. Nesse sentido a figura do belo príncipe e da sedutora princesa deveria ser referência. E, nesse sentido, as famílias brasileiras, vítimas das contradições do capital, são as responsáveis por permanecer alimentando o sonho de cinderela na cabeça de suas filhas, que sofrem pela pobreza, pela frustação, e por se perceberem responsáveis pela sua própria condição de "não-princesas". É a dor extremada e destruidora da construção do ser humano. A idéia de nobreza já deveria estar apenas nos museus.
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