Correio da Cidadania

O ritual dos corpos

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O Rio de Janeiro se tornou templo de um dos maiores rituais dos corpos. Corpos jovens, bem criados em berços de ouro, exceto alguns de ventres da periferia. São os mais perfeitos e belos corpos do planeta, esculpidos com sonho, arte e movimento. Os corpos dos deuses e deusas, com suas milícias de anjos servidores, recebem as devidas honras celestiais: para o repouso, uma cidade de luxuosos templos, um verdadeiro paraíso na terra; para o rito de adoração, suntuosos altares, com luzes e incenso.

 

Diante deles, o Estado humildemente se prostra, oferecendo o fruto do trabalho e do sacrifício de milhões de trabalhadores e trabalhadoras. Milhares de corpos romeiros chegam de todas as partes do Planeta para o mais solene e grandioso ritual dos corpos.

 

Para uma miríade de corpos de deuses, o sacrifício de uma miríade de corpos humanos. As vítimas já foram providenciadas por sacerdotes da casta neoliberal: são os corpos que perambulam pelas ruas ameaçando o esplendor e o requinte da cerimônia: corpos sem força e beleza, esfarrapados com roupas esfarrapadas, sujos e pesarosos, ofuscando o colorido da procissão de corpos romeiros, que percorreram terra e céus não ao encontro de corpos desfigurados, mas para se prostrarem diante de corpos perfeitos em graça e beleza.

 

Também são destinados ao sacrifício todos os corpos humanos que ameaçam profanar os corpos dos deuses e nobres romeiros: são corpos jovens, capturados na arena do tráfico, obra dos mesmos construtores do paraíso dos deuses e deusas. Corpos sujos e violados profanam a cidade sagrada, onde circulam corpos sagrados.

 

O Pan ritualiza uma sociedade de classes, naturalizando a divisão entre os corpos: aos corpos dos deuses e romeiros, toda segurança, beleza e esplendor do templo Cidade Maravilhosa; aos corpos dos jovens destinados ao sacrifício, a insegurança das favelas, o controle dos albergues, a tortura das prisões e a escuridão do cemitério. A uns, toda honra e louvação; a outros, toda injúria e condenação. Aos marqueteiros do Sistema, toda competência e técnica de ocultar a conexão entre os fatos: entre a dança dos corpos dos deuses e o sacrifício macabro de corpos humanos, e toda arte de anunciar aos jovens do mundo inteiro a ilusão de um paraíso de vencedores.

 

Só olhares proféticos percebem a conexão dos fatos, dando-se conta de que o Pan, ao perverter em mercadoria o esporte, uma das dimensões importantes de nossa humanização, e ao ostentar luxo e opulência, cercados de sangue, perde totalmente sua legitimidade de ser celebração da fraternidade entre os povos. Só corações sensíveis e mentes lúcidas podem se dar conta de que os corpos sacrificados abalam os fundamentos do paraíso dos vencedores, onde não se pode celebrar o ritual cristão da oferta do Corpo de Cristo, pão partilhado para a vida do mundo.

 

 

Ir. Gloria Josefina Viero, religiosa das Servas de Maria Reparadoras, teóloga, trabalha na Conferência dos Religiosos do Brasil - Regional Rio.

 

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