Administração de medidas assistencialistas é modo de ‘personificar o capital’

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Demétrio Cherobini
24/09/2010

 

No Brasil contemporâneo, os períodos que antecedem as eleições são dominados por uma série de clichês que já podem ser considerados típicos de tais ocasiões especiais: salvo raríssimas exceções, os candidatos, em todos os níveis, prometem lutar por mais emprego, segurança, saúde e educação.

 

No que toca à concorrência pelo poder Executivo, a situação, tanto em nível federal quanto estadual, esforça-se para convencer a sociedade de que nunca o país ou o Estado estiveram tão bem. A oposição, como é de se esperar, procura demonstrar o contrário, e usa, para isso, por vezes, os discursos e estratégias mais torpes, como escândalos, sensacionalismos e, não raro, as armações mais cínicas e deslavadas. Nessas horas, é bom prestar atenção não somente naquilo que é dito, mas principalmente no silêncio compartilhado acerca de temas fundamentais. Por exemplo: quem controla o que é produzido no país? Qual o melhor modo de distribuir entre as pessoas aquilo que elas mesmas produzem? Vivemos realmente na melhor forma de democracia ou podemos aperfeiçoar as coisas de modo a repartir cada vez mais entre a população o poder de decisão sobre os processos sociais, econômicos, políticos e culturais que afetam e determinam a sua vida?

 

Embora jamais coloquem em pauta assuntos importantes como esses, cada um dos partidos que domina o noticiário político pretende fazer-nos crer que o seu projeto, cuja retórica gravita invariavelmente em torno dos típicos clichês, é diferente e melhor que o dos seus concorrentes. Será mesmo que são diferentes? Não podemos pensar que, apesar de algumas singelas nuances a respeito de questões secundárias ou mesmo marginais, o silêncio sobre problemas centrais seja algo que os unifique e os identifique? E um retumbante calar não pode ser considerado algo muito mais revelador sobre a essência de um partido do que aquilo que é manifestado em seu discurso? Vale a pena considerar tal possibilidade, pois deixar de propor um debate sobre um problema que atinge a todos contribui para que esse mesmo problema se perpetue sem ser solucionado. Nesse sentido, calar sobre certa questão pode significar a preservação de um determinado status quo.

 

No processo eleitoral brasileiro atual, uma candidatura parece despontar entre as demais: Dilma Roussef, do PT, ameaça vencer a disputa já no primeiro turno. A princípio, um fato nada extraordinário, visto que recebe o apoio de um presidente que, por encabeçar um projeto extremamente hábil de conciliação social, acumula recordes de aprovação. Mas o que é interessante notar aqui é que, se oferecermos a qualquer militante petista as tradicionais categorias de análise por meio das quais se costuma definir o espectro político de uma sociedade numa conjuntura histórica específica e lhe perguntarmos onde está situado o seu partido, ele responderá sem titubeios: na esquerda. Na esquerda? Isto mesmo. O Partido dos Trabalhadores insiste em se recobrir com uma "aura" de acordo com essa legenda, de tal forma que o presidente da República chegou a afirmar, há algum tempo atrás, que "a próxima eleição não terá candidato de direita", querendo significar com isso que, por causa da sua tremenda popularidade, todos tentariam se identificar com ele, evitando conseqüentemente o rótulo ‘direita’, sob o risco de fracasso no pleito deste ano.

 

Em suma: é o partido da estrela fulgurante, do pavilhão vermelho, do quase mítico jargão "dos Trabalhadores" - símbolos historicamente associados ao socialismo - e que se envaidece de ter "transformado o país" por haver elevado a "qualidade de vida" dos segmentos menos favorecidos da população. Mas será mesmo que alguns reais a mais no bolso e um aumento de consumo propiciado por "bolsas" de diferentes tipos podem ser parâmetros utilizados para definir uma política como sendo de esquerda e distingui-la assim, substancialmente, das dos seus principais opositores?

 

É para nos orientarmos em relação a essa dúvida que devemos consultar a obra de István Mészáros, um dos mais destacados pensadores marxistas da atualidade. Em seu clássico Para além do capital: rumo a uma teoria da transição (Boitempo Editorial: São Paulo, 2002), ele estabelece que "o padrão de avaliação das realizações socialistas continua a ser a contribuição que as medidas e políticas adotadas possam dar à constituição e à consolidação de um modo de controle social global e de auto-administração substantivamente democráticos (isto é, verdadeiramente não-hierárquicos em seu modo de operação em todas as esferas)", ((p. 861)).

 

Isso significa precisamente o seguinte: socialismo não tem a ver com cem reais a mais na conta bancária ou com quantidade de coisas consumidas, e sim com a realização de uma forma de organização social e política em que todos os indivíduos – os verdadeiros sujeitos que diariamente produzem a riqueza que a humanidade consome - tenham a condição de decidir acerca dos rumos da atividade produtiva. Em outras palavras: que possam regular conscientemente o metabolismo social humano de uma forma não antagônica, não predatória, não destrutiva, e verdadeiramente sustentável.

 

Para além do capital é uma defesa intransigente e sem concessões dessa proposta alternativa. Mészáros trata, do início ao fim do livro, da questão das mediações. O que vem a ser isso? A atividade social humana é sempre mediada. No seu processo de vida, no seu movimento constitutivo, no seu vir-a-ser, homens e mulheres constroem os meios necessários para satisfazer as suas necessidades. A mediação mais fundamental de todas é a atividade produtiva. É através dela que os indivíduos, em conjunto, estabelecem o intercâmbio com a natureza, extraem dela os elementos que precisam, modificam-nos conforme o seu desejo, dando à luz assim criações das mais variadas. Nesse contexto, o capital também é uma mediação, constituída igualmente pelo trabalho, mas uma mediação terrivelmente problemática. O que define o capital é exatamente o fato de ele entrar em conflito com os sujeitos da atividade produtiva, subjugando-os e extraindo deles muito mais do que aquilo que de fato necessitariam para a satisfação das suas necessidades – isto é, o trabalho excedente. O capital, diz Mészáros, é uma forma de mediação antagônica, e esse antagonismo consiste no exercício de um controle hierárquico, fetichista, perdulário e, hoje mais do que nunca, destrutivo sobre o metabolismo social.

 

É plenamente adequado, portanto, definir o capital como mediação. Mas, se queremos ser ainda mais precisos, devemos dizer que ele é, em realidade, um sistema de mediações. Dentro dessa complexa estrutura, uma das mediações mais importantes é o Estado. Por meio, dentre outras coisas, do Estado, o capital se auto-organiza, afasta temporariamente as suas crises, seus limites relativos, sejam eles internos ou externos. Em outras palavras: o capital controla o metabolismo social humano e usa, para tal fim, como meio, o Estado. É completamente equivocado, pois, de acordo com a teoria de Mészáros, acreditar que o Estado pode controlar o capital. O que ocorre é exatamente o contrário. Ao longo de sua história, verifica-se que o capital utilizou, de maneira cada vez mais crescente, esse meio para deslocar as suas contradições, e até mesmo aquilo que se costuma chamar de neoliberalismo só pôde ser implementado por intermédio de maciças e profundas ações estatais.

 

Em virtude de sua própria dinâmica interna, o capital, enquanto sistema de mediações "de segunda ordem" que controla e subjuga as mediações primárias da atividade produtiva, passou por um longo processo histórico de ascendência até chegar ao ponto de se tornar hegemônico por todo o globo. Durante sua ascensão, podia solucionar as suas crises inerentes por meio de um processo expansivo, impondo sua forma de sociabilidade a novos povos e nações. Contudo, uma vez conquistado o planeta inteiro, o capital encontra limitações acerbas que o impedem de se expandir e, portanto, deslocar suas contradições.

 

Nesse momento, o sistema vê desenvolvidas plenamente certas tendências que já trazia em seu bojo, e que, assim realizadas, começam a comprometer sua própria viabilidade. O capital se choca, desse modo, com os seus limites absolutos, isto é, limites que não podem ser transcendidos; não se modifica radicalmente a estrutura de relações sociais que lhe dão sustentação. É exatamente então que tem início aquilo que Mészáros chama de crise estrutural do sistema do capital, um período histórico onde a única maneira encontrada pela ordem vigente para continuar existindo é fomentar uma forma de produção essencialmente destrutiva, isto é, tendo a destrutividade – elemento intrínseco ao capital desde os seus primórdios, mas que até então não era dominante - como "motor" da dinâmica social. A destrutividade do capital se expressa sob vários aspectos: na precarização do trabalho, na degradação ambiental, na obsolescência planejada – mercadorias produzidas propositalmente para, num curtíssimo espaço de tempo, se tornarem obsoletas, a fim de que outras mercadorias sejam fabricadas para substituí-las – e no "complexo militar-industrial", setor chave da economia mundial atual, onde as mercadorias – artefatos bélicos etc. - se destroem imediatamente no ato mesmo do seu consumo.

 

Ora, é exatamente a crise estrutural do sistema do capital, em razão de sua imensa e cada vez mais abrangente destrutividade – que invade até mesmo as relações sociais mais comezinhas -, que confronta a humanidade com a necessidade de elaborar uma alternativa radical ao atual estado de coisas. Para Mészáros, essa alternativa tem nome: socialismo. E isto depende, justamente, da criação de novas formas de mediações materiais, que superem de uma vez por todas o sistema de mediações do capital e permitam à humanidade regular de um modo consciente e não antagônico o seu metabolismo com a natureza. A ofensiva socialista de que o filósofo fala é a estratégia para, transcendendo-se a ação política tradicional situada dentro dos limites do parlamento e do Estado burguês, levar a efeito tais mediações materiais com a correspondente forma de consciência e de valores que a ordem alternativa requer.

 

Um projeto político-social de esquerda exige, portanto, que orientemos nossas ações com vistas a irmos para além do capital. Para além das mistificações ideológicas que querem nos manter paralisados e entorpecidos com mais e mais consumo, para além das mediações práticas antagônicas e destrutivas que controlam hierarquicamente o metabolismo social humano. Este é o padrão para definir um projeto qualitativamente diferente, verdadeiramente alternativo (e não a maior posse por parte dos trabalhadores das múltiplas formas de expressão do capital - por exemplo: mercadorias ou dinheiro).

 

Ora, o Partido dos Trabalhadores, que uma vez até tocou nesses assuntos, mas que hoje cala sobre tudo isso, tem em conta que, mais do que ninguém, representa a esquerda no plano da política brasileira. Faz aliança com antigos inimigos (quem sabe por achar que agora estejam mais à esquerda...), zomba dos adversários, dizendo que não terão coragem de se auto-definir como sendo de "direita", e realiza uma espécie de chantagem intelectual contra os militantes dos pequenos partidos socialistas, afirmando que criticar o governo federal é fazer o jogo da "direita". Enfim, estão completamente satisfeitos e envaidecidos por administrarem medidas assistencialistas para os trabalhadores e se converterem assim naquilo que Mészáros, na esteira de Marx, chama de "personificações do capital".

 

É bem verdade que isso tem de ser analisado como expressão das contradições sociais objetivas específicas da realidade brasileira, principalmente da fragmentação existente no seio da própria classe trabalhadora. Mas é deprimente observar alguns dos porta-vozes ideológicos do partido tecendo louvores à figura de Getúlio Vargas e se esforçando para vincular a imagem de Lula com este, do ponto de vista da alternativa do trabalho, tristemente célebre personagem da política nacional do século passado. Getúlio Vargas, que mandou matar comunistas, que realizou autoritariamente um projeto radical de conciliação de classes para que o capital se desenvolvesse, de maneira livre e desimpedida, em nossas terras, como nunca antes havia feito. Talvez mais cedo do que supõem, a história peça contas a tais ideólogos por causa de suas infâmias.

 

É justamente por nos manter alertas e prevenidos contra esse tipo de mistificação que os revolucionários do século XXI devem muito a István Mészáros. Suas idéias críticas já estão sendo debatidas em vários lugares. Elas se constituem numa das mais consistentes expressões teóricas sintetizadoras das contradições de nosso tempo histórico. Ainda servirão de fonte de reflexão para muitos. Nos últimos anos, com o agravamento da crise do capital, vários movimentos de luta surgiram, predominantemente espontâneos, imbuídos do objetivo de enfrentar as forças repressivas da ordem dominante. Uma variedade de grupos tomando as ruas a fim de condenar as desigualdades do sistema e reivindicar uma alternativa abrangente. Quem sabe um dia esses movimentos se articulem em torno de uma estratégia eficaz,

 

Condensem-se e componham uma força coesa, coerente e radical. Talvez, então, vejamos uma vez mais revoluções despontarem no horizonte da história.

 

Demétrio Cherobini é licenciado em Educação Especial (UFSM), bacharel em Ciências Sociais (UFSM) e mestrando em Educação (UFSC).

E-mail do autor: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 

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