Populismo e luta de classes no século XXI

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Armando Pompermaier
17/09/2010

 

No prefácio do Capital, Marx já refletia que o desenvolvimento das forças produtivas obriga necessariamente a um reajustamento de toda a superestrutura. É desta forma que os próprios intelectuais marxistas, inseridos no campo de ação deste nível da realidade, têm necessariamente que atualizar os seus conceitos em relação às novas demandas que a realidade objetiva impõe no contexto das transformações infra-estruturais. Uma questão desconcertante no momento é a forma de conduzir o Estado brasileiro no governo Lula, onde se pode notar uma fusão de elementos característicos da política brasileira e latino-americana tradicionais do século XX a elementos característicos das novas conjunturas do início do século XXI, de modo que as ações do governo já não se encaixam mais dentro das categorias de análise usuais.

 

A facilidade com que este governo desmobilizou os movimentos sociais sem que suas demandas tenham deixado de existir, continuando a ser pressionados pelas condições objetivas a tomar atitudes que, surpreendentemente, não são tomadas, é de impressionar. A grande questão que se coloca para mim, enquanto historiador marxista, é a imobilidade a que puderam chegar as classes exploradas e oprimidas em um contexto absurdo. A simples análise das estratégias políticas do governo Lula não me parece ser suficiente para gerar qualquer explicação plausível. Considero mais útil analisar como essas estratégias, de modo geral, se relacionam com o nível de desenvolvimento das forças produtivas, sem a qual nossas categorias de análise dificilmente conseguirão dar respostas consistentes às atuais demandas de ação política revolucionária no nível dos movimentos sociais.

 

Marx defendia que as sociedades não se colocam questões que não possam responder. Tendo passado parte da tormenta que nos pegou relativamente de surpresa nas últimas décadas, já com a vista a partir do início da segunda década do século XXI, creio ser possível começar a ver algum horizonte de análise teórica marxista sobre o mundo do terceiro milênio que se avoluma à nossa frente.

 

A luta de classes ainda é para mim uma categoria de análise de fundamental importância para compreender a realidade. A precipitação sem pé nem cabeça de alguns "pensadores" pós-modernistas de que esta não existe se dá devido a uma incompreensão da realidade decorrente de uma vertiginosa aceleração das transformações característica da vida moderna em meio a uma revolução tecnológica em processo. Quer dizer, o resultado da aceleração das transformações características da modernidade em meio à revolução tecnológica do final do século XX é a confusão teórica assumida pelos pós-modernistas como a condição intelectual última da raça humana. No entanto, não é. Trata-se apenas de uma fase de transição conjuntural.

 

Na verdade, esta ilusão em alguns de que a luta de classes teria sido abolida se dá pela inadequação dos conceitos clássicos de luta de classes dos séculos XIX e XX aplicados anacronicamente à análise das condições objetivas do século XXI. A contradição que serve de sustentação para a luta de classes me parece ainda muito sólida: a riqueza das sociedades ainda é produzida por uma grande maioria enquanto a sua apropriação se dá por uma pequena minoria de proprietários burgueses. A automatização da produção não mudou a essência deste fato econômico básico. A grande questão é que estávamos acostumados a ver este processo no nível das economias nacionais, o que tem que ser repensado diante da economia globalizada deste novo século.

 

Neste contexto, temos alguns fatores de fundamental importância para serem pensados. A abertura das economias nacionais com as políticas neoliberais fez com que a produção das multinacionais fosse realizada em países subdesenvolvidos e periféricos como a China, visando não exatamente a conquista de seu mercado interno e sim a conquista do mercado internacional, com a exploração da mão-de-obra sob um regime de trabalho que poderíamos dizer praticamente de semi-escravidão, onde as taxas de lucro são maximizadas como não se via há várias décadas no capitalismo. Este é somente um exemplo breve. O que é importante refletir daí é que, se a produção industrial é globalizada, a apropriação é ainda não somente concentrada nas mãos das mesmas velhas burguesias nacionais, como também centralizada nos mesmos velhos países imperialistas, numa rede global de exploração que une classes dominantes e governos de vários países. Quer dizer, não somente as bases econômicas e políticas, mas também a hierarquia da estrutura social, estão, de certa forma, globalizadas e têm necessariamente que ser pensadas em conjunto.

 

Nas conjunturas econômicas e políticas do novo século, cuja análise marxista já adquiriu há algum tempo um bom nível de maturidade, o importante é considerar que a abertura das economias nacionais também fez com que a democracia burguesa, já extremamente limitada, perdesse quase todo o seu já pouco sentido. As economias nacionais passam a ser cada vez mais reguladas por Instituições Financeiras Internacionais como o Banco Mundial, o FMI e outras como a OMC, aumentado a submissão e a impotência dos governos nacionais com a desregulamentação dos mercados, onde os governos dos países "em desenvolvimento", dependentes dos investimentos do capital estrangeiro, se sujeitam a todos os ditames dos especuladores das bolsas de valores, assim como às imposições dos países desenvolvidos, que controlam direta ou indiretamente essas instituições. Isso sem falar que, com as privatizações que conduziram ao Estado mínimo, tem-se parte dos serviços públicos que antes eram direitos garantidos por lei controlados por ONG’s que, por sua vez, são controladas por seus financiadores internacionais.

 

Sobre as conseqüências sociais desta base econômica, analisadas a partir de uma perspectiva dialética, o importante é que a visão sobre a luta de classes – e, consequentemente, as formas de organização e ação da classe trabalhadora – ainda está ligada ao contexto histórico do nacionalismo do século XX já em muitos sentidos superado. Se a exploração e a opressão se organizam e atuam em nível global, a resistência deve também se organizar e atuar em nível global.

 

Nesta perspectiva, é de fundamental importância que se leve em consideração que as novas formas de organização e atuação em nível global vão exigir que as classes exploradas e oprimidas se relacionem com diferentes culturas, diferentemente da visão do século XIX, que pressupunha muito ingenuamente que toda a classe trabalhadora pudesse de alguma forma ser homogênea. Para a formulação de estratégias de organização e atuação de nível global das classes exploradas e oprimidas, é indispensável que se vençam as barreiras culturais, como o preconceito e a incompreensão de línguas estrangeiras, assim como é necessário que se vença o corporativismo. Mais do que nunca, o conceito da dialética materialista de unidade da diversidade deve ser explorado em todas as suas possibilidades críticas revolucionárias na construção das novas estratégias.

 

Da mesma forma que novas formulações realistas exigem a análise das interações dialéticas entre infra e superestrutura, entre os níveis econômico, social e político da realidade numa perspectiva global, exigem também uma análise das interações entre as novas formas que assumem os Estados-Nação em relação ao mundo globalizado. É bom nunca perder de vista que uma análise dialética deve necessariamente transitar entre o nível concreto e abstrato, objetivo e subjetivo, geral e específico, desvendando os tipos de interações estabelecidas entre as partes que compõem a realidade enquanto um todo, pois grande parte das ilusões da visão pós-modernista vem justamente da insistência na ilusão de que a realidade é composta puramente por fragmentos inexoravelmente dispersos sem qualquer conexão entre si.

 

Desta forma, no que se refere ao contexto político nacional, Lula é uma espécie de Bernstein brasileiro do século XXI. No entanto, se o alemão do início do século XX propõe uma conciliação social-democrata com a sociedade burguesa, contribuindo fortemente para a desmobilização do potencial revolucionário internacional da classe operária, Lula, que tem um papel semelhante no século XXI, não é apenas uma atualização do entreguista que o precede. O petismo/lulismo pode ser visto como a expressão mais acabada de um projeto social-democrata de conciliação de classes brasileiro que, ao se utilizar das práticas e concepções desenvolvidas tradicionalmente neste país para conseguir se adequar às exigências dos especuladores financeiros e aos receituários das instituições financeiras internacionais, envereda inevitavelmente para um tipo de reinvenção do populismo.

 

Em outras palavras, o projeto petista acaba se configurando como a reinvenção do populismo, adequando-o ao contexto econômico, social e político do século XXI, abrindo mão do caráter nacionalista característico do populismo do século XX, em meio às novas conjunturas decorrentes do atual nível de desenvolvimento das forças produtivas. Serve de base de sustentação para a centralização geográfica e a concentração social do processo de acumulação global de capital, amenizando, com diferentes formas de atualização das velhas práticas políticas populistas, qualquer possível ímpeto revolucionário da maior parte de uma massa explorada, oprimida e confusa. Ou ainda, o neopopulismo petista/lulista se configura como uma atualização das práticas populistas tradicionais de uma conjuntura nacionalista ao desenvolvimento das forças produtivas que conduziram a um novo nível de integração global das estruturas econômicas, sociais e políticas.

 

Estas são idéias que buscam contribuir para uma análise marxista mais profunda e ampla das demandas revolucionárias e das condições objetivas em que se dão as lutas de classes no século XXI. Antes como hoje, e enquanto as sociedades humanas forem divididas entre explorados e exploradores, oprimidos e opressores, ecoam os postulados de grandes marxistas como Lênin, sobre "O que fazer". Como Engels dizia, as sociedades humanas têm apenas duas opções: "socialismo ou barbárie".

 

Armando Pompermaier é professor de História.

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