Correio da Cidadania

O etanol e a invasão estrangeira

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A revista empresarial Exame, no seu anuário do agronegócios publicado neste mês, confirma: o capital estrangeiro está invadindo as terras brasileiras. O etanol é o motivo desta gula. Apresentado como fonte alternativa de energia, num mundo em que o combustível fóssil, o petróleo, dá sinais de fadiga e agrava perigosamente o aquecimento global, este derivado do álcool é a nova coqueluche das multinacionais e dos especuladores. Já o Brasil, por suas enormes vantagens comparativas – abundância e qualidade das terras, preço relativamente baixo das propriedades, mão-de-obra barata e capacidade tecnológica – surge como uma “janela de oportunidades”, para citar um termo da moda, para os saqueadores capitalistas.

 

“Num ritmo febril, têm sido anunciadas quase a cada semana novas parcerias, operações de compra e organização de fundos de investimento destinados a colocar dinheiro na produção de álcool no país. De acordo com a consultoria Datagro, os estrangeiros investiram 2,2 bilhões de dólares no setor desde 2000”, festeja a revista. “Da lista das dez maiores empresas do setor no Brasil, quatro já possuem participação de capital estrangeiro: Cosan, Bonfim, LDC Bioenergia e Guarani. Uma quinta companhia, a Santa Elisa, fez recentemente parceria com a americana Global Foods para constituir a Companhia Nacional de Açúcar e Álcool, cujo plano é investir R$ 2 bilhões na construção de quatro usinas em Goiás e Minas Gerais”.

 

“Líder do mercado mundial”

 

Ainda segundo a revista empresarial, “é fácil entender o motivo de tanto interesse de grupos estrangeiros. Maior produtor mundial de cana-de-açúcar, o Brasil disputa a liderança do mercado de etanol com os EUA, que faz álcool combustível do milho. A meta dos americanos, reafirmada pelo presidente George W. Bush durante recente visita ao Brasil, é reduzir o consumo de combustíveis fósseis em 20% até 2017. Isso significa que, nos próximos dez anos, somente nos Estados Unidos a demanda por etanol pode atingir 132 bilhões de litros por ano. É mais de três vezes a atual produção mundial de etanol”.

 

Da produção mundial de 40 bilhões de litros, o Brasil é responsável por uma fatia de cerca de 16 bilhões, mas tem reais possibilidades de aumentar a sua participação. O país é de longe o fabricante mais eficiente, com um custo de produção de US$ 0,22 por litro de etanol, diante de 0,30 dos EUA e de 0,53 da União Européia. Além disso, comemora a revista, “tem área suficiente para multiplicar as plantações e atender ao esperado aumento da demanda. Segundo a Datagro, a quantidade de cana moída no país deverá aumentar de 473 milhões de toneladas na próxima safra para 700 milhões em 2014. Isso vai exigir investimentos em 114 novas usinas – hoje o Brasil tem 357 unidades em operação e outras 43 em construção”.

 

A gula dos especuladores

 

Como um típico folheto publicitário, a revista da Editora Abril enaltece os especuladores que descobriram este filão. “O melhor exemplo é o megainvestidor húngaro George Soros, dono de uma fortuna estimada em US$ 8,5 bilhões. Ele se tornou um dos sócios da Adecoagro, que comprou a Usina Monte Alegre, em Minas Gerais, e está construindo uma nova usina em Mato Grosso do Sul... Outro investidor que decidiu apostar no etanol brasileiro é o bilionário indiano Vinod Khosla, um capitalista de risco que fez fortuna nos EUA com suas tacadas certeiras [inclusive bancando o Google]... Khosla é sócio da Brazil Renewable Energy Company (Brenco), empresa lançada em março por Henri Phillipe Reichstul, ex-presidente da Petrobras”. Outro sócio da Brenco é o australiano James Wolfensohon, ex-presidente do Banco Mundial.

 

Os especuladores, num mundo dominado pela ditadura do capital financeiro, são os maiores interessados nesta nova fonte de riqueza – e até se travestem, na maior caradura, de ecologistas. Entre os fundos de investimentos que já abocanharam terras brasileiras, a Exame cita a estadunidense Kidd&Company, que detém o controle da usina Coopernavi e participa da empresa Infinity Bio-Energy em conjunto com a corretora Merrill Lynch. A Infinity já é dona de quatro usinas no país e, no ano passado, arrecadou US$ 300 milhões nos mercados financeiros exclusivamente para investir no setor sucroalcooleiro nacional. “Não foi difícil convencer os estrangeiros a investir no etanol do Brasil, pois eles já tinham a percepção das vantagens comparativas do país”, explica Sérgio Thompson Flores, principal executivo da Infinity.

 

Soros, Gates e outros “ecologistas”

 

Já a poderosa Cargill, com faturamento R$ 10,9 bilhões no país e forte domínio no setor dos transgênicos, adquiriu em junho passado o controle acionário da Cevasa, no interior paulista. Outro gigante da área, a Bunge, tentou abocanhar a Usina Vale do Rosário, a terceira maior produtora de açúcar e álcool do país – mas as negociações empacaram. Já o grupo Pacific Ethanol, que tem como sócio o bilionário Bill Gates, dono da Microsoft, contratou a consultoria KPMG para coordenar sua expansão no Brasil. “Há sete anos, eu tinha um único cliente em operações de fusões e aquisições interessado no etanol brasileiro. Hoje, 80% de minha carteira é formada por interessados nesse setor”, revela André Castelo Branco, sócio da KPMG.

 

Mas não são apenas as multinacionais estadunidenses que estão de olho nas terras brasileiras. Há também fortes corporações européias e japonesas. Ainda segundo a revista Exame, um “investidor de risco”, nome fantasia dado aos especuladores, é o grupo francês Louis Dreyfus, que já controla as usinas Luciânia, em Minas Gerais, e Cresciumal e São Carlos, no interior paulista, e que comprou, em fevereiro último, quatro usinas do grupo pernambucano Tavares de Melo. Já o grupo Tereos, também de origem francesa, tem 6,3% de participação na Cosan, 47,5% da Franco Brasileira de Açúcar e 100% da Açúcar Guarani.

 

“Terras e mão-de-obra baratas”

 

O anuário do agronegócios da revista Exame só corrobora outras informações que têm pipocado na mídia. A mesma publicação já havia antecipado em abril passado “a nova onda de investidores estrangeiros em terras brasileiras”. Dava conta que o fazendeiro australiano Robert Newel tinha investido US$ 4,5 milhões na compra de 11.350 hectares no município de Rosário, no oeste da Bahia, e que o multibilionário fundo de pensão da Califórnia (EUA), o Calpers, era dono de 23 mil hectares de terras nos estados do Paraná e de Santa Catarina. “Além do aceso a terra e mão-de-obra muito mais baratas, venho do continente mais seco do mundo e posso dizer que Rosário é um verdadeiro paraíso para a agricultura”, explicou Newel.

 

Segundo o artigo, esta seria a segunda onda de investimentos externos no campo brasileiro. “No primeiro movimento, ocorrido no início desta década, alguns fazendeiros, sobretudo norte-americanos, começaram a investir no país, atraídos pelo baixo custo da mão-de-obra e das propriedades. Um hectare de terra nos EUA chega a custar mais do que o triplo... O novo fluxo de capital estrangeiro alimenta-se de fenômenos mais recentes [como a produção de combustíveis renováveis]. Além das vantagens naturais como o clima e abundância de água, o Brasil dispõe hoje da maior área para incrementar a produção no campo. Estima-se que existam cerca de 90 milhões de hectares ainda inexplorados e prontos para a atividade agrícola”.

 

Propaganda na internet

 

A tendência é que a gula dos investidores estrangeiros aumente muito mais. A advogada Isabel Franco, do escritório Demarest&Almeida que presta assessoria aos ricaços, garante: “É dinheiro grosso chegando por ai”. Anderson Galvão, da consultoria Céleres, concorda: “Eles estão muito interessados e dinheiro é o que não falta”. Sua empresa foi contratada por quatro fundos estrangeiros que já dispõem de cerca de US$ 400 milhões para a aquisição de fazendas no Brasil. Toda esta euforia decorre da “exuberância irracional” do sistema capitalista. Enquanto o planeta padece na miséria, os rentistas já investiram nos primeiros cinco meses do 2,18 trilhões de dólares (4,25 trilhões de reais) em fusões e aquisições de empresas no mundo.

 

A produção de etanol no Brasil se torna um negócio altamente lucrativo para estes capitais especulativos, inclusive para os predatórios fundos private equity, especializados na compra de propriedades. O boom é tão violento que já existem sites na internet fazendo propaganda do agronegócios no país. Eles oferecem pacotes de viagens para os interessados em visitar fazendas no país. O endereço de um desses serviços, o da consultoria AgBrazil, contém na primeira página a mensagem: “Welcome to a world of opportunities” (bem-vindo a um mundo de oportunidades). Segundo Plilip Warnken, dono da AgBrazil, sediada em Columbia, no Missouri (EUA), “as oportunidades do agronegócio brasileiro superam a imaginação”.

 

Negócios dos ricos e famosos

 

Reportagem do jornal O Globo, do início de junho, revela que o etanol “entrou na agenda de negócios dos ricos e famosos”. Figurões do esporte, do mercado financeiro e até ex-membros do governo já entraram em campo. Entre outros, ela cita dois ex-presidentes do Banco Central na gestão de FHC, Gustavo Franco e Armínio Fraga, e dois ex-ministros do governo Lula, Luis Fernando Furlan e Roberto Rodrigues. Logo que deixou o Ministério da Agricultura, Rodrigues se uniu a Jeb Bush, irmão do presidente dos EUA, ao presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento, Alberto Moreno, e ao ex-primeiro-ministro do Japão, Junichiro Koizumi, para montar uma consultoria com o objetivo de divulgar o etanol pelo mundo.

 

A reportagem também dá destaque ao ex-presidente da Petrobras, Henri Phillipe Reichstul, líder de um megafundo de investimentos que teria US$ 2 bilhões destinados ao etanol. Outra figura de peso é o todo-poderoso da Ambev, Jorge Paulo Lemann, segundo homem mais rico do Brasil. Ainda circulam rumores de que Naji Nahas – símbolo da especulação nacional – estuda projetos nesta área. “Este é o mercado do futuro”, afirma o presidente da Ethanol Trading, Roberto Giannetti da Fonseca, ex-secretário-executivo da Câmara de Comércio Exterior (Camex) no governo FHC. O lucro fácil também já atraiu o banqueiro Daniel Dantas, dono do Opportunity, que comprou recentemente cem mil hectares da terra no Pará.

 

Explosão do preço do hectare

 

Desde a criminosa onda de privatizações do governo FHC, o país não assistia a um volume tão grande de investimentos estrangeiros diretos. Somente nos três primeiros meses de 2007, o Banco Central registrou o ingresso de US$ 6,5 bilhões – aumento de 66% em relação ao mesmo período do ano passado. O maior responsável por este aumento recorde foi o etanol. A gula por terras nativas é tanta que já se observa uma violenta alta dos preços no campo. “Na corrida para não ficar de fora desse mercado, quem quiser adquirir uma usina brasileira deve se dispor a pagar, hoje, mais que o dobro do valor médio registrado em 2005... Mesmo com a disparada dos valores, não faltam interessados em abrir o cofre”, aconselha a Exame.

 

Reportagem do jornal O Globo do início de junho atesta que “o crescimento dos projetos envolvendo o plantio de cana-de-açúcar e a produção do etanol fez explodirem os preços das terras no país”. Em abril passado, o valor do hectare atingiu o seu pico histórico. Na Zona da Mata de Alagoas, o preço subiu 84%; em Araraquara, interior paulista, o hectare se valorizou em 70% e a cana já está ocupando o espaço antes reservado aos grãos e às pastagens. “Há dois anos atrás, só se falava em soja. Agora, a vedete é o etanol. Esta inflação está estritamente ligada ao etanol”, confirma a engenheira agrônoma Jacqueline Dettman. A cana já ocupa 3,4 milhões de hectares em São Paulo, o equivalente a 52% do plantio do produto no país.

 

O real perigo da desnacionalização

 

Na sua obsessão pelo crescimento, o governo Lula parece não medir as conseqüências da célere invasão estrangeira. Há várias linhas de crédito, inclusive do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), para bancar as poderosas multinacionais e os barões do agronegócios nativos. Segundo o deputado Luis Carlos Heinze (PP-RS), presidente da Subcomissão de Política Agrícola da Câmara, há estudos para repassar verbas do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), criado para subsidiar o seguro-desemprego e outros programas sociais, para refinanciar as dívidas dos produtores rurais – calculadas em R$ 4 bilhões. O objetivo seria exatamente o de alavancar a construção de usinas e a produção do etanol.

 

Há um certo consenso de que a produção de biocombustíveis é uma necessidade imperiosa na atualidade. Diante dos sinais de fadiga do petróleo e dos efeitos destrutivos deste combustível fóssil, até as entidades ambientalistas menos ortodoxas concordam que é urgente investir em fontes alternativas de energia. Por outro lado, o Brasil, por suas inúmeras vantagens comparativas, surge com todas as condições de explorar de maneira sustentável esta nova matriz energética. Mas as possibilidades do etanol não devem embriagar os setores mais críticos da sociedade. Há muitos riscos neste campo. A atual febre do etanol indica que ou Brasil adota mecanismos para proteger a sua economia ou o processo de desnacionalização, concentração de terras e precarização do trabalho será inevitável!

 

 

Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e autor do livro “Venezuela: originalidade e ousadia” (Editora Anita Garibaldi, 3ª  edição)

 

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