Crise externa evidencia que Brasil não soube aproveitar fase de ‘bonança’

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Valéria Nader
30/10/2008

 

Já vai longe na memória da população brasileira os dados há tão pouco tempo anunciados e festejados, e que davam conta do crescimento da economia, do aumento do emprego e da renda e de uma quantia portentosa de reservas pra lidar com a crise externa.

 

Ademais, os reiterados enunciados, até meados desse ano, a respeito do descolamento dos emergentes, e as renitentes declarações, há não mais que duas semanas, que previam que a tormenta mundial não faria mais do que cócegas na economia brasileira hoje adquirem dimensão insólita.

 

Ao mesmo tempo, no entanto, em que autoridades monetárias e econômicas de todo o mundo, e de nosso país em particular, viram extirpar-se qualquer nuance dessa noção, agora não escondem o seu atordoamento diante da necessidade de reagir a acontecimentos que surgem e se propagam com força e violência inéditas no cenário financeiro – pelo menos desde a crise de 30.

 

Liberação de compulsórios, venda de dólares no mercado à vista e futuro, possibilidade de compra de instituições financeiras pelo Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal – duas instituições públicas outrora demonizadas pelo mercado, que escaparam à sanha privatista fernandina e que agora são elevados à condição de salvadoras do capitalismo verde-amarelo – são algumas das medidas que formam parte do arcabouço reativo dos mandatários econômicos do Brasil.

 

Para analisá-las, assim como contextualizar a crise e seus novos desdobramentos em nosso país, conversamos com a economista e professora da Usp Leda Paulani.

 

Confira abaixo.

 

Correio da Cidadania: Estamos em um momento de crise estrutural do capitalismo ou do neoliberalismo?

 

Leda Paulani: Sem dúvidas, é uma crise estrutural do capitalismo, mas é também uma crise muito particular, porque é decorrente da forma que o capitalismo adotou desde o final dos anos 70, nesses últimos 35 anos.

 

Portanto, ela é estrutural por partir dessa forma de acumulação capitalista. E se o capitalismo naturalmente já é propenso a crises, com esse tipo de organização hoje predominante, ficou suscetível a crises mais profunda.

 

Em paralelo, há, digamos assim, um chacoalhão no neoliberalismo, mas não acredito que seja uma crise estrutural desse modelo, pois acho que os fatores que promoveram tal discurso como verdadeiro ainda estão presentes, principalmente em função do tamanho da dimensão financeira, que cresceu muito nos últimos tempos, essencialmente de 1980 pra cá.
Existem interesses materiais muito poderosos inteiramente atrelados à crise.

 

Não sei se será reconhecida a derrota do neoliberalismo, mas diria que ficou mais frágil, vulnerável. Principalmente depois de 2002, foram poucos os críticos a dizer que o capitalismo financeirizado produz um desenvolvimento medíocre, aumenta a desigualdade etc. Isso era algo sem resposta. E no momento em que a China finalmente resolveu adentrar o sistema, puxando todo o resto, os defensores passaram a ter todos os argumentos para reiterar esse capitalismo e a política econômica dos Estados a ele submetidos.

 

Agora, no entanto, não têm mais esses argumentos, ficou complicado fazer a defesa. Eu diria, portanto, que o neoliberalismo ficou mais vulnerável, mas não que vá acabar ou morrer. Não creio ser do dia para a noite que se desmonta uma hegemonia de 20, 30 anos.

 

CC: No Brasil muito se aventaram o crescimento sustentado e os sólidos fundamentos econômicos. Mas parece que estamos sofrendo o início de um ataque especulativo. Você concorda com essa idéia? Como se explica o ‘aparente’ paradoxo?

 

LP: Na realidade, o Brasil ficou durante todo esse tempo de bonança muito atrás do restante da América Latina em termos de crescimento. Aqui se fez uma política mais realista que o rei, com uma política monetária extremamente apertada, juros elevados, com superávits primários altíssimos e com uma idéia de que a valorização da moeda era boa para o país, incentivando investimentos externos. O tempo inteiro se argumentou que era necessário fazer a defesa de todos os fundamentos da economia e aquela cantilena toda. Mas isso fez, na verdade, com que o país perdesse uma oportunidade de crescimento.

 

Quando o Brasil começa a crescer (em 2006 começou a crescer e em 2007 teve o ano mais razoável), pelos mesmos motivos que levaram os outros países a crescer, e que por sinal começaram bem antes nesse processo, a coisa dura pouco, pois vem a crise e atropela o processo.

 

Portanto, esse discurso conservador ficou complicado. Tudo bem que o Brasil possui um sistema financeiro mais sólido, menos alavancado etc., mas eu já vinha destacando que o Brasil não passaria incólume, pois a crise vai bater no chamado lado real da economia por conta da escassez de crédito na economia doméstica e no resto do mundo, e uma vez que as empresas tomaram empréstimo lá fora, principalmente grupos e organizações de capital mais estruturados. Agora, há dois problemas para que a economia se desenvolva: em primeiro lugar, essa menor disponibilidade de crédito externo e interno; em segundo, a simples troca de crédito externo por interno já faz o sistema ficar abalado, pois temos uma taxa de juros elevadíssima. Só por aí já dá para perceber que haverá uma pressão muito forte sobre a economia brasileira, impedindo que ela continue nesse caminho de crescimento.

 

Ademais, há também o problema da redução da demanda externa, o que já pode ser visto através da redução no preço das commodities e também das quantidades exportadas pelo país. Ou seja, temos dois fatores a se combinarem. Queda de preço e de quantidade. Quer dizer, esses dois elementos – o papel da demanda externa na composição da demanda agregada, em condições de fazer o país retomar o crescimento, de um lado, e a escassez de crédito, de outro - já são capazes de tornar previsível o quanto o Brasil será afetado pela crise.

 

Mas, além dessas questões, agora está ficando claro que temos também problemas de outros tipos. Alguns analistas têm visto que a bolha do Brasil é a dos derivativos, o que já havíamos detectado nas empresas exportadoras, que estavam vendidas em dólar e se protegiam com a receita em reais, uma vez que a perspectiva do dólar era de queda. Ocorre que, se tais empresas, como acontece no capitalismo financeirizado, trabalham, por exemplo, com bebidas, elas transacionam no mercado futuro – de derivativos - uma quantidade de bebidas 10, 15 vezes maior do que aquela de que realmente necessitam. Tudo porque os caixas das empresas têm que operar com lucro. Não têm de operar tecnicamente para permitir ou não o desenvolvimento da empresa, mas sim operar com lucro. Como a perspectiva de o dólar continuar caindo se inverteu, as empresas que fizeram essas operações acabaram levando o tombo.

 

CC: Você acredita que, se a economia brasileira, na fase de bonança internacional, tivesse sido conduzida por um outro projeto de país, por um outro modelo econômico, ou pelo menos por medidas mais rígidas no controle do capital especulativo, sofreríamos menos com essa crise?

 

LP: Primeiramente, teríamos aproveitado mais o período de crescimento para investir em infra-estrutura e garantir mais emprego. Além disso, se tivesse havido maior controle de capitais na abertura da economia brasileira, tão financeirizada que foi, teríamos muito mais condições de controlar o impacto desses capitais. Isso porque, com câmbio sensível e economia aberta financeiramente, fica-se sujeito a mudanças bruscas no curso da economia. Com um quadro de maior controle e cobrança sobre os capitais, tais operações ficariam muito reduzidas.

 

Em suma, o país poderia ter aproveitado melhor o período anterior, de bonança, para depois ter mais condições de, no momento da crise, com maior controle de capitais, lidar com os seus impactos.

 

CC: Ou seja, é fantasioso esse discurso dos analistas de que a cautela do Banco Central durante todos os anos que se passaram agora estaria demonstrando sua faceta positiva.

 

LP: É falacioso esse discurso. Tanto que os fundamentos eram as contas públicas, o superávit primário, a queda da dívida pública, a taxa de juros elevada etc. Agora não, são as reservas externas, e quem inclusive argumentou que o Brasil tinha um bom colchão de reservas para o caso de o cenário externo se complicar foi a oposição.

 

Os analistas falam que foi graças à determinação do presidente do Banco Central que o país teria acumulado essas reservas. Uma pinóia, porque havia também o discurso sobre o custo de acumulação dessas reservas, dado seu impacto na crescente dívida pública interna em função dos altíssimos juros. Dizia-se que era muito caro comprar divisas porque a taxa de juros era muito elevada. Claro que por culpa deles mesmos, mas usavam esse argumento. Depois, acabaram finalmente cedendo e, se hoje há algo que minimamente nos protege dessa crise, não é o superávit primário, mas sim os dólares das reservas.

 

CC: Em face da deterioração evidente da conjuntura, e pensando nas medidas que vêm sendo adotadas pelo governo brasileiro, gostaria de saber de sua opinião sobre algumas delas. A liberação de compulsório pelo BC, as operações de swap cambial e também de venda de dólares no mercado à vista são necessárias, ou terão alguma eficácia, nesse momento de agonia a seu ver?

 

LP: A liberação de compulsório já mostrou que, quando há crise de confiança, não adianta mudar o fundamento de liquidez, pois não faz retornar a confiança. E foi isso o que aconteceu. O Banco Central liberou os compulsórios e os bancos os utilizaram na compra de dólares ou títulos públicos mesmo, porque estão muito receosos.

 

No Brasil, diferentemente de outros países, há dois agentes fundamentais que poderiam garantir recursos para o crédito, que são a Caixa Econômica e o Banco do Brasil. Porque todos sabemos que os bancos estão em pânico e essas instituições poderiam dar uma mão e fazer tudo o que as outras não fizeram até agora.

 

CC: Você é, então, favorável à MP 443, através da qual o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal podem comprar ações de instituições financeiras em dificuldades, de companhias de seguro e de previdência aberta? Trata-se de medida realmente necessária, já que se aventa reiteradamente que o setor financeiro nacional encontra-se em posição bastante sólida, já que é o menos alavancado do mundo?

 

LP: Em crises financeiras, você pode saber como elas começam, mas não como acabam. Se há como evitar isso, é punindo aqueles que desrespeitaram as regras, cometeram fraudes, mas já que o sistema financeiro é todo desregulado para essas operações, agora deve realmente ser evitada uma crise mais profunda.

 

O impacto que poderia gerar uma quebra de banco não pode ser medido, de repente é como fogo em palha. Essa fragilidade é natural em uma crise financeira e bancária. Por conta disso, o Banco Central, numa crise de tamanha envergadura, funciona pouco, não dá conta. Ou seja, já que arrombaram a porta, alguma coisa deve ser feita, no caso, jogar liquidez nos bancos para que estes não entrem em extinção.

 

CC: Nesse sentido, justificar-se-ia também que o BNDES ajudasse as empresas que se arriscaram em operações cambiais, conforme já andou sendo ventilado pela imprensa?

 

LP: Depende da análise que se faça. Com relação às empresas que não representam risco falimentar ou coisa parecida - como no caso do sistema financeiro –, nem tanto. Mas quando o malefício social é grande, e pode gerar desemprego, talvez seja correta a ajuda.

 

Não pode existir aquilo que se chama de moral hazard (risco moral), aquela idéia do sujeito que pensa que pode quebrar, pois, como há interesse no seu produto ou serviço, o governo vem e cobre tudo. Mas que o BNDES ajude, não as empresas que tentaram fazer caixa, mas as exportadoras que geram lucros e empregos, pode valer a pena, pois é importante continuar exportando e tentar manter o crescimento. Enfim, os danos sociais que a quebra dessas empresas pode causar devem ser considerados.

 

CC: Houve ainda a isenção de IOF – Imposto sobre Operações Financeiras - sobre investimento estrangeiro no Brasil (incluindo compra de títulos públicos, de ações, empréstimos e financiamentos feitos no exterior e remessa de dólares para honrar esses pagamentos). Com as conseqüências inevitáveis da crise sobre a balança comercial, não poderá haver a volta nua e crua do capital especulativo, a exemplo do ocorrido na década de 90, como o grande financiador do balanço de pagamentos?

 

LP: Já fizeram muito mais nesse sentido, como a própria isenção do Imposto de Renda, por exemplo. A tentativa neste caso é de impedir que a balança de capitais fique muito prejudicada e os recursos gerados por ela escasseiem de uma vez. É só mais uma mão, um presentinho para eles.

 

Acontece que, depois de todo o processo das privatizações, que internacionalizaram parte significativa de nosso capital produtivo, o balanço de pagamento brasileiro mudou estruturalmente. As remessas de lucros para o exterior, por exemplo, cresceram substancialmente. Portanto, há uma necessidade de geração de dólares muito maior que antes, para tentar conter a pressão na balança de capitais. E agora, acrescidos os efeitos dessa crise, vem a necessidade, de fato ainda mais premente, de entrada de dólares na balança de capitais.

 

Assim, se estão tomando essas medidas, é porque precisam tornar o país atrativo para o capital financeiro e externo.

 

CC: Você se arriscaria a fazer um prognóstico sobre o futuro da economia brasileira em face da tensão internacional?

 

LP: Podemos discutir essas práticas da especulação, do mercado financeiro, se podem ser feitas de maneira mais razoável ou não, mas o que acho é que a crise terá um impacto muito forte na economia verdadeira. O governo diz que nossas estruturas são fortes, que continuaremos crescendo, enquanto estamos vendo que não. Creio que o impacto será realmente forte e nota-se que, mais uma vez, perdemos a oportunidade de crescer mais vigorosamente quando o mundo inteiro o fez, na época da bonança.

 

Colaborou o jornalista Gabriel Brito.

 

Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.

 

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