Crimes excelentes e outros muito menos

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Mário Maestri
02/05/2007

 

No Brasil e no mundo, não é a gravidade do crime que determina que ele repercuta com intensidade ou passe batido nos grandes meios de comunicação. A manipulação do crescente sentimento de insegurança pessoal da população constitui atualmente fundamental meio de manipulação política, social e ideológica. Vejamos dois dramas criminais ocorridos no Brasil neste ano e encenados de forma radicalmente diversa pela grande mídia.

 

Rio de Janeiro, seis de janeiro de 2007. Menino de seis anos morre por arrastamento, preso ao cinto de segurança da viatura da mãe, roubada por cinco jovens. O triste sucesso enseja enorme campanha da grande mídia de galvanização da compaixão e da indignação públicas, focalizada quase essencialmente no fato de que, entre os assaltantes, havia um adolescente de dezesseis anos, judicialmente não imputável como maior, devido ao Estatuto do Menor e do Adolescente.

 

Arrancados do anonimato pela intoxicação midiática, obedecendo a pauta já pré-estabelecida por sucessos semelhantes anteriores, os pais da vítima passam rapidamente da expressão de dor pessoal dilacerante, captada fugazmente por algum repórter menos recatado devido às exigências da profissão, para a reiteração espetacular de narrativas mais e mais refinadas da perda pessoal e, sobretudo, das suas pretensas razões sociais, já nos panos de porta-vozes não-autorizados de uma opinião pública moldada pela própria operação midiática.

 

Pernambuco, abril de 2007. A Polícia Federal anuncia ter desbaratado uma organização dirigida por policiais e empresários que literalmente industrializava a morte. O preço mais do que módico das execuções – de um a cinco mil reais – era permitido pela produção do produto em série. Em cinco anos, o grupo teria assassinado umas mil pessoas, obtendo um faturamento estimável de um milhão e quinhentos mil dólares, a um preço médio de três mil reais por prestação. Os assassinatos eram contratados sobretudo por empresários e comerciantes.

 

A intervenção midiática sobre o menino-mártir seguiu o script pré-estabelecido. As interpretações propostas sobre os fatos, centradas essencialmente na necessidade de punição implacável do menor, repercutiram fortemente na opinião pública, com a retomada revigorada por políticos profissionais – senadores, governadores, deputados federais etc. – das propostas de endurecimento da repressão policial e legal. A recente aprovação, na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, da proposta de redução para dezesseis anos da responsabilidade penal constitui um dos resultados desse discurso performativo. Destaque-se que, no Brasil, o menor de dezoito anos não pode dirigir, casar-se, realizar qualquer compra de imóvel etc.

 

Apesar de os acontecimentos de Pernambuco constituírem a literal industrialização da execução sistemática de cidadãos, comandada por membros da segurança pública, em parte com meios públicos – armas, automóveis, horário de trabalho etc. –, de dimensão tal – três a cinco mortes semanais – que há anos as estatísticas sobre os homicídios assinalavam que algo de podre ocorria em Pernambuco, os fatos tiveram cobertura de baixa intensidade e, sobretudo, praticamente sem qualquer julgamento de valor. Não houve ênfase na necessidade da punição exemplar dos assassinos, nem interrogação sobre como policiais puderam participar dos fatos, durante tão longo tempo. Não houve campanha midiática exigindo a responsabilização das chamadas autoridades máximas estaduais e a captura e julgamento implacáveis dos mandantes dos crimes.

 

No Rio de Janeiro, tratava-se de menino de seis anos, branco, de classe média, morto por jovens, em geral quase brancos, de famílias pobres, mas não miseráveis. Portanto, uma paisagem social ideal para a apresentação do crime, em geral, como produto não mediado da ação do mal contra o bem. De um mal tendencialmente inato, já que brota naturalmente em qualquer idade. Portanto, um cenário que permitia apresentar a proposta da geração da violência, devido à mercantilização e desumanização das relações sociais, no contexto da carência de educação, de saúde, de lazer, de trabalho, de laços afetivos e morais sólidos etc., como literal delírio do intelectual demagogo e esquerdista. A repressão policial como política de combate à transgressão individual e, logicamente, social – Tolerância Zero – tornava-se assim a conclusão quase natural da narrativa maniqueísta.

 

A execução sistemática, ininterrupta e maciça de cidadãos, por mais de cinco anos, produzida por policiais para consumidores endinheirados, registrava, ao contrário, por um lado, os terríveis desvios societários ensejados pela liberdade de ação dos policiais na repressão da população pobre e, por outro, a banalização do assassinato de desafetos, como solução de contradições pessoais e econômicas, por amplos segmentos da sociedade civil. Ou seja, apresentava aos olhos da população o adiantado nível de barbarização social vivido no Brasil.

 

Ao silenciar sobre eles, a grande mídia brasileira encobriu rapidamente aqueles fatos, simplesmente porque registravam fenômenos dramáticos e estruturais referentes à segurança pública, sobre os quais era impossível desenvolver qualquer reflexão que não expusesse, mesmo indiretamente, as profundas e históricas chagas sociais do Estado e da sociedade brasileira. Patologias sociais que se aprofundarão inexoravelmente devido ao sucesso crescente da construção de consenso sobre a necessidade da repressão-violência como forma de tratamento dos desvios comportamentais em sociedade mais e mais esgarçada por patéticas necessidades e insuficiências materiais e espirituais.

 

Um triste cenário que exigirá – deus não permita! –, em um futuro talvez muito próximo, que o brasileiro tenha sempre necessariamente consigo, no bolso, cinco mil reais, para poder disparar antes que o seu desafeto o faça!

 

 

Mário Maestri é historiador.

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