Correio da Cidadania

Incômodo agrário

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A questão agrária teima em inquietar e assustar a realidade brasileira e de outros países da América Latina como México, Venezuela, Bolívia, Peru, Colômbia, Equador e Paraguai. No século 19, Joaquim Nabuco dizia que a abolição da escravatura no Brasil era inseparável da democratização do solo rural. Nem os monarquistas abolicionistas nem os republicanos modernos lhe deram ouvidos. Os escravos negros ficaram livres para ficarem sem terra, sem casa, sem comida, sem escola, sem cidadania.

 

A então nascente República e depois o Estado Novo nada inovaram na questão da terra e dos direitos trabalhistas no campo. O golpe militar de 64 editou o Estatuto da Terra referência até hoje, mas o consagrou como uma lei proclamada e não cumprida durante os vinte anos de ditadura militar. Aos camponeses, historicamente, só restou a alternativa de ocupação e posse de pequenas glebas rurais para moradia e sobrevivência de suas famílias. A ocupação de terras, portanto, não começou na pós-democratização do país e não é ação inovadora do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (Contag) ou de outros movimentos que lutam pelo acesso à terra no Brasil.

 

É cômico que alguns especialistas, outrora defensores da reforma agrária ampla, massiva e imediata, venham se manifestando contrários a ela hoje por sua não necessidade - contrariamente à sua necessidade no passado, segundo eles, para o desenvolvimento capitalista. Erravam também no passado: a reforma nunca foi uma necessidade, mas uma opção de desenvolvimento. Quando muito admitem a sua realização no polígono das secas e afrontam a realidade afirmando bobagens como a desconstituição do MST como movimento social. Reconhecem, no entanto, que a reforma agrária seria justificável apenas pela democratização da terra, como se esta não fosse, por si só, justa razão.

 

Mas a democratização da terra implica em massividade se quisermos alterar radicalmente o quadro de desigualdades e de pobreza no meio rural. A modernização conservadora da agricultura brasileira nos anos 60 e 70 expulsou 20 milhões de pessoas do campo para as cidades e não foi capaz, como não está sendo a sua nova face, o agronegócio, de reduzir as desigualdades e a pobreza. O que está posto hoje, no Brasil, é crescer economicamente com distribuição de renda e abolição da pobreza. No meio rural, isso tem um nome: reforma agrária.

 

Destaca-se sempre o volume de exportações atribuído à agricultura empresarial como razão para afirmar que o Brasil rural vive, nos dias atuais, um novo mundo e que a reforma agrária, nesse contexto, seria um retrocesso na produção de alimentos e no abastecimento dos mercados interno e externo. A política social, de caráter massivo hoje no Brasil, provou que, quando há massividade - como no Programa Bolsa Família, beneficiando hoje 11,1 milhões de famílias em todos os municípios brasileiros -, mesmo não se tratando de uma política estruturante, colabora-se - junto com outras políticas, como a do aumento real do salário mínimo - para reduzir a desigualdade de renda e a pobreza no Brasil, como atestam várias pesquisas.

 

A agricultura camponesa de base familiar tem enorme potencial de crescimento se esta for uma opção real de desenvolvimento democrático, justo e sustentável, onde a propriedade deve cumprir a sua função social. O governo Lula ampliou o crédito para a agricultura familiar, passando de pouco mais de R$ 2 bilhões, na safra 2002/03, para quase R$ 10 bilhões, na safra 2006/07. A reforma agrária precisa também ser ampliada para reduzir rapidamente as desigualdades e a pobreza rural.

 

Hoje, a agricultura familiar responde por 38% do PIB agrícola e 77% do emprego no meio rural. É preciso investir mais em educação de qualidade no campo, formação e capacitação profissional, assistência técnica, formas associativas de produção e comercialização, pesquisa e tecnologia, para que os agricultores familiares e os assentados da reforma agrária, em vez de parecerem incômodos, possam se desenvolver e contribuir de forma sustentável para o desenvolvimento nacional.

 

 

Osvaldo Russo foi presidente do Incra, é estatístico e vice-presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra).

 

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