Ausência de política urbana e privilégios para ricos deixam milhões sem moradia

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Gabriel Brito
10/04/2008

 

Para falar a respeito do caos urbano, que se configura como um problema social cada vez mais grave, e com a recente efervescência das últimas ocupações de moradias urbanas pelos movimentos sociais do setor, o Correio da Cidadania conversou com João Whitaker, urbanista docente da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo).

 

Para ele, as explicações para a nossa crise na área ter atingido tal ponto são históricas, o que torna necessária a revisão de políticas de habitação e distribuição da terra, outro ponto delicado em nossas relações e formações sociais.

 

Whitaker ainda acredita que as dezenas de milhões de brasileiros sem moradia significam um dramático empecilho para o crescimento do país, o que pode começar a ser solucionado com políticas de mais subsídios às parcelas pobres da população, além de sérios investimentos na infra-estrutura das cidades e locais de moradias mais precárias, o que incidiria, por exemplo, na situação do trânsito em São Paulo, como explica ele.

 

Confira abaixo a íntegra da entrevista.

 

Correio da Cidadania: De onde provém o caos urbano atual, nas grandes metrópoles, sobretudo, empurrando parcela expressiva da população para viver em condições degradantes?

 

João Whitaker: Na verdade, trata-se de um processo histórico de formação urbana que reflete as lógicas de formação da nossa sociedade. Na medida em que o Brasil conformou uma sociedade desigual e excludente, este é apenas um reflexo. Na prática, significa que as dinâmicas de formação do urbano da cidade foram sempre respondendo a essa lógica, porém em momentos específicos.

 

Por exemplo, no período agro-exportador, que é quando São Paulo e Rio começam de fato a crescer, temos um primeiro ato de segregação urbana, porque quem morava nas cidades e usufruía dela era a elite cafeeira, que a usava como centro de comando dessa economia agro-exportadora, embora a produção estivesse no campo. E pela produção estar no campo e a mão-de-obra ser rural, escrava e depois imigrante, não havia na cidade um problema social grande, pois a população de baixa renda que vinha para a cidade já era suficiente para servi-la. A cidade, por sua vez, era toda voltada aos bairros nobres, onde estavam essas elites e as mansões dos cafeicultores. Enfim, havia todas as funções urbanas da agro-exportação, médicos, advogados, dentre outras profissões, convivendo com alguns bairros um pouco mais populares, fato que já mostrava uma segregação. No entanto, não em números suficientes para criar um problema urbano, como acontecia na Europa na mesma época, 1850, em razão da forte industrialização que lá havia.

 

Com a urbanização dos anos 30 e principalmente com a segunda fase da industrialização, nos anos 50 em diante, temos uma forte migração para as cidades. Além disso, nossa forma de inserção no mercado internacional se dera pelo viés dos salários baixos, pela mão-de-obra barata que podíamos fornecer para as grandes multinacionais que promoveram nossa industrialização.

 

Desta forma, a proporção de uma cidade democrática, que oferecesse política urbana, de saúde etc., não cabia nesse modelo, pois produzir esse tipo de coisa significava elevar o custo da mão-de-obra, e a nossa tática de inserção no mercado era através de mão-de-obra barata. Isso criou uma matriz urbana desigual. E, além disso, temos a questão da terra, que desde a libertação do trabalho escravo e sua substituição pelo assalariado, passou por um processo de controle do seu acesso, com o fim de eliminar a possibilidade de os escravos libertos e imigrantes terem chance de se instalarem e também para consolidar o grande latifúndio. Isso se transfere também para a terra urbana, pois temos leis que são feitas para atravancar o acesso democrático à terra, ao mesmo tempo em que são toleradas as práticas ilegais de ocupação, como a grilagem, por parte dos mais poderosos.

 

Então, há um duplo processo: o de exclusão do acesso à terra por parte da população mais pobre, fato que se deve à falta de leis favoráveis e à existência de outras que determinavam propriedade exclusivamente para quem pudesse produzir; e a tolerância a processos ilegais de ocupação e grilagem, inclusive na área urbana. Por exemplo, uma grande parte do Shopping Center Norte foi feita em terra grilada; o Alphaville foi feito em grande parte em terrenos indígenas, da União. E esse processo ainda se dá hoje em dia.

 

O que ocorreu, portanto, foi uma forte urbanização na década de 50, que não foi acompanhada da criação de infra-estrutura, transportes, saneamento, saúde, educação e tudo mais. E esse, absolutamente, é um processo cujo resultado é evitável. A cidade não se estruturou para todos, apenas para parcelas da população que se beneficiam de políticas excludentes. A parte mais pobre não tem alternativa, pois no Brasil temos uma ‘não política urbana’, uma ‘não política habitacional’, no sentido público da sociedade. Em compensação, temos políticas restritas que visam favorecer somente as classes dominantes. Nos bairros ricos vemos uma sobreposição de políticas, exagero de estrutura, constante recapeamento e assim por diante, enquanto nos pobres não há nada disso.

 

Isso, claro, gera uma estrutura urbana desequilibrada e, a longo prazo, não há nenhuma alternativa a não ser o caos urbano. Essa é a explicação básica.

 

Por conta disso, hoje temos nas cidades brasileiras algo em torno de 50% da população que vive na informalidade; em cortições, loteamentos clandestinos, favelas, embaixo de pontes, enfim, nessas formas de assentamento informais.

 

CC: E, nesse sentido, como você avalia o Ministério das Cidades? Houve avanços com sua criação?

 

JW: Sim, pois pela primeira vez existiu um ministério dedicado a essa problemática. Outro ponto: antes do Ministério das Cidades (antes, portanto, do governo Lula), tivemos alguns avanços, que eram resultantes de mobilizações da sociedade civil, em torno da questão da reforma da cidade. Por exemplo, os artigos 182 e 186 da Constituição - que traziam alguns instrumentos urbanísticos de teor progressivo ainda não postos em prática - acabaram regulamentados depois de 13 anos de mobilização dos movimentos populares, dentro do Estatuto da Cidade, em 2001.

 

O Estatuto da Cidade criou condições de os municípios desenvolverem políticas descentralizadoras e deu mais força ao poder público para criar instrumentos a fim de atacar terras vazias, especulação imobiliária em terras valorizadas pela infra-estrutura etc.

 

O grande problema de tal modelo de urbanização, que gera esse caos, é que temos a infra-estrutura urbana centralizada e as terras vazias à espera de valorização, a qual, por sua vez, é gerada pelo poder e investimento público, conformando uma contradição muito grande. O Estatuto da Cidade já criou algumas condições. Quando o governo Lula criou o Ministério das Cidades, em sua primeira fase com Olívio Dutra, avançou em várias frentes. Primeiro, por criar um processo participativo de concertação da cidade em torno da problemática urbana, nas conferências da cidade. Depois, criou, como resultado desse processo participativo, a Conferência Nacional de Cidades. O ministério também elaborou um plano nacional de habitação, ou seja, uma política de habitação que reestruturou verticalmente as políticas de financiamento habitacional, antes dispersas, nos âmbitos estadual e municipal. Na seqüência, tivemos uma mudança no foco das políticas dos ministérios, que começaram a atuar para atender às populações que ganhavam abaixo de 3 salários mínimos, coisa que historicamente nunca se tinha feito.

 

Também se fez uma lei para regulamentação da questão do saneamento, cujo marco legal foi implementado pelo Ministério das Cidades. Juntando tudo, houve grandes avanços na estruturação de políticas nacionais geradas no âmbito federal e que responderam um pouco a essa demanda.

 

Com a saída do Dutra, o ministério foi vítima de algo parecido a um balcão de negócios, pois se introduziram outras política e visão por lá, mais parecidas com as anteriores, ou seja, ter o ministério como balcão de negociação com os municípios. Isso porque a questão urbana é descentralizada e o ministério é quem repassa o dinheiro.

 

CC: O PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), do governo federal, trará algum impacto positivo?

 

JW: Com o PAC, houve uma mudança drástica, pois pela primeira vez o Brasil tem uma política volumosa de destinação de recursos para a urbanização das favelas, hoje considerado o principal caminho de solução para o assentamento precário. Claro que podemos fazer questionamentos, sobre se o PAC é gerido da melhor forma, se abre espaço para favorecimentos, mas ainda assim o fato de haver um PAC só para a urbanização das favelas já é uma novidade. Enfim, no geral temos um avanço significativo.

 

CC: Nesse contexto, como você analisa o governo e a prefeitura de São Paulo?

 

JW: O governo de São Paulo tem um procedimento muito falho na questão habitacional, pois tem uma companhia de habitação, uma raridade na história do Brasil, que tem 2% do ICMS à disposição para investir nisso e não o faz. Deixa-se de investir 400 milhões por ano para se fazer o ajuste fiscal do município e acertar as contas, o que configura um grande desperdício, ainda mais considerando uma companhia que é uma das mais poderosas do país na produção habitacional e que poderia se integrar ao ministério. Mesmo assim, como tem muito dinheiro, a CDHU é produtora importante de habitação, mas faz isso ainda no padrão antigo, embora tenha experiências interessantes, até com mutirões.

 

Hoje melhorou um pouco, mas atua de maneira limitada na área central, e o custo de se levar isso para a periferia torna tudo mais caro. O custo da terra no centro não é tão alto, é um mercado virtual, pois não há uma demanda que justifique os preços pedidos, havendo espaço para se forçar um pouco a barra no sentido de diminuí-los. Portanto, é muito tímida a atuação do CDHU nas áreas centrais.

 

Já o município, tem 2% do orçamento destinado à habitação, fatia quase irrelevante. Num município como São Paulo, considerando-se o déficit urbano que temos, algo em torno de 250 mil moradias, precisaríamos de uma destinação de no mínimo 8%. Com 2% não se faz quase nada, o município não consegue resolver a situação dos conjuntos habitacionais, que estão muito degradados e com altíssimo grau de inadimplência. Para completar, essa última gestão ainda desmontou completamente a da Marta.

 

Embora a gestão Marta tivesse problemas, no âmbito habitacional, tentava fazer uma diversificação das políticas, promovendo um processo um pouco mais amplo e variado, e com isso conseguiu pela primeira vez fazer habitação social no centro. São Paulo tem cerca de 200 mil imóveis ociosos na área urbanizada e, no centro, cerca de 500 edifícios vazios. Podíamos ter uma política para tentar recuperar esses imóveis, transformando-os em habitação popular.

 

A atual gestão mantém alguma atuação em favela, mas é pontual, desmontou mutirões e políticas de habitação em área central. Enfim, acho que por enquanto é um desastre.

 

CC: Em linhas gerais, quais seriam as soluções para os problemas de moradia no país?

 

JW: A principal solução passa por uma política de subsídio significativo, ou seja, dar a casa sem custo para a população mais pobre. Não entregar definitivamente, mas fazendo concessões de uso, baseando-se um pouco na lógica de pós-guerra na Europa, isto é, com uma forte participação do Estado na resolução de uma problemática central.

 

Uma nação que tem um déficit habitacional de quase seis milhões de casas, ou 30 milhões de pessoas, não cresce. Portanto, fazer uma espécie de ‘fome-zero’ da habitação seria o primeiro passo. O Estado arcaria com os custos e concederia o uso às famílias mais pobres, exercendo algum controle, entregando por um determinado período etc.

 

O segundo passo é dar continuidade às políticas que sofreram um baque na segunda fase do ministério, que é a manutenção de todos os instrumentos de participação, como o Conselho das Cidades, o Fundo Nacional de Habitação - criado com a participação do movimento popular, no momento fragilizado -, assim como o foco nas pessoas de renda até três salários mínimos, pois há uma briga para manter isso. Precisaríamos de uma continuidade nesses pontos.

 

Por fim, necessitamos de uma destinação de recursos significativa nos municípios do estado, uma inversão de prioridades absoluta. Habitação, transporte - elemento fundamental -, saneamento básico e a urbanização da periferia têm de ser a prioridade. Não dá mais para ficar recapeando área nobre.

 

Sendo assim, a ordem deve ser inverter a prioridade e investir de fato, com uma variedade de políticas, pois a questão habitacional não se resolve com uma política única, como fazia o Maluf, construindo Cingapura pra todo lado. Esses problemas se solucionam com tantas políticas quantas forem as situações de precariedade, que são as mais variadas.

 

Existem favelas consolidadas que precisam de um tipo de tratamento, população de rua que pede outro tipo de tratamento, pois precisa de outro método de intervenção. Já algumas parcelas não têm habitação e precisam da produção tradicional de apartamento, enfim, precisamos de uma variedade dessas políticas, tanto no âmbito municipal, como no estadual e federal. Essa é a receita geral, o que mostra que temos um processo longo pela frente para resolver tudo isso.

 

CC: E em relação às últimas ocupações de imóveis realizadas pelos movimentos sociais, elas têm alguma eficácia? Você considera importante a atuação desses movimentos?

 

JW: São fundamentais, claro, pois sempre tiveram o papel de criar a agenda das reivindicações para essas conquistas. Essas conquistas foram implementadas pelo governo Lula, mas como resultado de um ministério que contou com uma forte representatividade dos movimentos. Acho que até entraram num caminho equivocado, que é o de supervalorizar o seu papel na discussão de planos diretores, legislação, enfraquecendo um pouco as reivindicações essenciais, que são transporte, moradia, saneamento, e não leis, que já temos em demasia. A questão é que não são aplicadas da forma correta no Brasil. Mas, de toda forma, o papel desses movimentos é fundamental.

 

CC: Você faria uma correlação entre os problemas recentes do trânsito em São Paulo e a ausência de políticas urbanas?

 

JW: Sim, no caso do trânsito é mais simples, embora o transporte seja um dos elementos de uma vida de qualidade. Mas a questão do trânsito se deve simplesmente ao fato de terem se passado 20 anos sem investimento público na cidade, em favor do carro somente.

 

O governo do estado percebeu agora o problema e começou a fazer metrô apressadamente. O metrô de São Paulo começou em 1972, junto com o da Cidade do México. A Cidade do México tem 250 km de metrô e São Paulo tem 60. Londres tem 600.

 

Outro dia, a Soninha veio falar que não é verdade que só o metrô resolve, e isso é uma besteira, pois é óbvio que resolve. Primeiro, por ter uma capacidade de carga de 80 mil passageiros/hora - que só o metrô consegue ter -, depois por não criar barreiras urbanas, como são os corredores.

 

Portanto, é a solução. Fora isso, temos soluções paliativas intermediárias, todas voltadas ao transporte público de massa. Neste aspecto, temos de dizer que a Marta teve um empenho muito grande em fazer os corredores que estão sendo paulatinamente desmontados pela atual gestão, como se vê em relação ao que se faz com o bilhete-único.

 

Na Rebouças, pela primeira vez em anos, vejo gente andando em ônibus de porta aberta, pendurada, enfim, estamos começando a rever essas cenas. E tais fatos mostram que tivemos uma permissividade para com os empresários, que colocam menos ônibus na rua e sofrem um controle menos rigoroso nos corredores, sem contar o bilhete-único, cada vez mais prejudicado.

 

Todas as medidas que mexem com rodízio são paliativas. Elas vão ajudar se continuarem produzindo o mesmo número de carros. Mas vai chegar uma hora em que iremos fazer rodízio todo dia e não teremos mais transporte público. A lógica leva a isso.

 

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