Correio da Cidadania

Um general sem prestígio deflagrou o golpe de 64

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General Olimpio Mourão Filho / Foto: Divulgação UFSJ

Eu vou! Eu vou! Eu vou derrubar o governo, agora eu vou! Pararatimbum, pararatimbum!

O esquema dos golpistas de 1964 vinha sendo montado desde a década anterior, mas ainda não estava pronto quando da renúncia do presidente Jânio Quadros em agosto de 1961.

Os conspiradores nela viram, contudo, uma oportunidade de queimar etapas e resolveram precipitar as coisas: convenceram os comandantes das três Armas a tentarem impedir a posse do vice-presidente legal (João Goulart), que estava ausente, visitando a China em missão oficial.

Como o afobado come cru, eles foram derrotados:

— pela resistência do governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, que passou a conclamar o Brasil inteiro a não permitir a usurpação de poder, utilizando para tanto uma rede de emissoras de rádio que se formou espontaneamente (a Rede da Legalidade);

— pela decisão do comandante do III Exército (RS), o general legalista Machado Lopes, de colocar-se ao lado de Brizola, passando, portanto, a existir a ameaça de militares combaterem uns aos outros, hipótese que sempre horrorizou nossas Forças Armadas; e

— pela firme oposição de cabos e sargentos do Exército e Marinha ao golpe, criando outra divisão entre os fardados.

A crise acabou com a solução conciliatória de se dar posse a Goulart, mas instituir-se o parlamentarismo, de forma que os poderes presidenciais foram momentaneamente reduzidos (o plebiscito de janeiro de 1963, contudo, restabeleceu o status quo ante).

Os conspiradores, face ao fracasso inicial, tiveram de repensar todo seu planejamento. Desfecharam perseguições nos quartéis, isolando e transferindo para unidades distantes os líderes dos subalternos que haviam se colocado contra o golpe, enquanto o pusilânime Goulart nada fazia para proteger quem lhe havia sido leal.

E, percebendo que careciam de algum respaldo na coletividade, partiram para a conquista do apoio da classe média conservadora, contando para tanto com o apoio do clero reacionário e de entidades anticomunistas como a TFP e a TFM [afora a mãozinha estadunidense, com a enxurrada de investimentos em Bolsa de Valores, suficiente para forjar o boom econômico de curta duração conhecido como milagre brasileiro].

Os viradores de mesa só se considerariam prontos para nova tentativa 20 meses depois.

O passo final foi a conquista da caserna, empreitada facilitada pelo apoio crescente que passaram a ter da classe média (afinal, os oficiais eram majoritariamente dela oriundos) e pelos préstimos de provocadores como o marinheiro de 1ª classe Anselmo (erroneamente apelidado de cabo), que radicalizaram ao máximo a insubordinação dos cabos e sargentos das Forças Armadas contra o oficialato.

[Meu saudoso companheiro na VPR, o José Raimundo da Costa, dito Moisés, era um dos líderes dos marujos e nunca quis acreditar que Anselmo fosse um infiltrado, embora já existissem suspeitas. Pagou com a vida por seu apreço pelo colega de antigas jornadas.]

O que os oficiais mais prezam é sua autoridade. E, dias antes do golpe, a viram estridentemente ultrapassada por Jango. É que, com o mandato cada vez mais ameaçado, Goulart havia finalmente descido do muro, daí ter ousado proibir a prisão de marinheiros e fuzileiros navais responsáveis por uma comemoração levada a efeito depois de vetada pelos escalões superiores. Foi a gota d'água: o oficialato alinhou-se em massa com o golpe.

A ruptura da ordem legal àquela altura já estava sendo amplamente requerida pelos capitalistas e latifundiários, além de endossada pelo presidente dos EUA Lyndon Johnson.

A CIA favorecia e financiava os conspiradores havia muito tempo, mas John Kennedy, caso tivesse sobrevivido ao atentado de Dallas, dificilmente lhes daria sinal verde, assim como não autorizou a disponibilização de cobertura aérea para a invasão da Baía dos Porcos, crucial para o sucesso da empreitada, mas que deixaria as digitais dos EUA impressas numa flagrante interferência na política interna de um país soberano (Cuba).

A posse em 22 de novembro de 1963 de Johnson, um texano anticomunista que obviamente comeria na mão da CIA, significou a remoção de um importante obstáculo para o golpe, tanto que, a partir daí, só transcorreriam quatro meses e uma semana até Olímpio Mourão Filho começar a descer a BR-3 (hoje rodovia BR-040) com suas tropas e iniciar a quartelada.

Anticomunista com carteirinha assinada e falsário desmascarado em vida (forjou o chamado Plano Cohen para alavancar a instalação do Estado Novo em 1937), Mourão antecipou-se por alguns dias ao cronograma dos conspiradores históricos, mas nada lucrou com isto: o poder não ficou com o ejaculador precoce, mas sim com o esquema golpista que vinha sendo laboriosamente montado desde a década anterior.

Tão vergonhosa foi a facilidade com que um aventureiro desprestigiado na própria caserna e seus recrutas imberbes derrubaram Goulart que a esquerda entrou num longo processo de crítica e autocrítica, do qual decorreram o colapso da hegemonia do PCB e a ascensão da luta armada como principal forma de resistência à ditadura após a assinatura do AI-5.

Celso Lungaretti é jornalista e ex-militante da Vanguarda Popular Revolucionária.

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