Correio da Cidadania

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ONU vai investigar violência contra africanos e afrodescendentes no Brasil  - 02/10/2023 - PerifaConnection - Folha
Na cidade norte-americana de Minneapolis, em 25 de maio de 2020, o assassinato brutal de mais um homem negro se concretizou. No enredo das tragédias anunciadas pelo racismo estrutural, George Floyd se soma a inúmeros outros casos de violência policial contra pessoas negras em todo o mundo. Após ser acusado de usar uma nota de 20 dólares falsa em uma loja de conveniências, Floyd, um homem negro de 1,90m e 46 anos, foi rendido por policiais, derrubado e sufocado com o joelho de um policial branco em seu pescoço.

As imagens do assassinato de George Floyd por um policial branco rodaram o mundo e não deixaram dúvidas de que o uso excessivo da força do policial, que resultou na morte de Floyd, estava carregado de ódio racial. Em poucas horas estas imagens que mostram o policial Derek Chauvin ajoelhado sobre o pescoço de George Floyd, levando à morte por sufocamento, correram o mundo, assim como as suas últimas palavras “não consigo respirar”. Mesmo em plena pandemia, poucas horas após a morte de Floyd, milhares de pessoas ao redor do planeta realizaram manifestações de solidariedade à sua família e cobraram justiça ao governo estadunidense.

Os protestos da sociedade civil mostraram os sintomas da exaustão social frente aos sistemas de aplicação da lei que violam direitos humanos e civis. Nesse contexto, as categorias fora do escopo universalizante da branquitude, da heteronormatividade e da cisnormatividade são desumanizadas e, portanto, ficam expostas ao tratamento degradante das instituições que detêm o monopólio da força em seus estados.

Após as manifestações, que lotaram as ruas ao redor do globo, um coletivo composto por movimentos sociais, familiares de vítimas de violência policial e organizações não-governamentais foi formado para a construção de uma incidência internacional antirracista. No Brasil, organizações como a Coalizão Negra por Direitos, Kilomba Collective e Conectas fizeram parte da articulação internacional. A incidência histórica mobilizou mais de 650 organizações, de 66 países, em menos de 48 horas, para escrever uma carta para as Nações Unidas.

Em 8 de junho de 2020, a carta foi direcionada ao Conselho de Direitos Humanos (CDH) das Nações Unidas solicitando duas ações urgentes: (1) a realização de uma Sessão Especial do Conselho – que deveria abordar o assassinato em massa da população negra ao redor do mundo — e (2) o envio de uma Comissão de Inquérito sobre as execuções extrajudiciais e respostas violentas das forças policiais aos protestos.

Em decorrência desta articulação, o Grupo Africano das Nações Unidas, composto por 54 Estados da União Africana, pressionaram o CDH para a realização de um debate urgente sobre violência policial e racismo. A partir disso, a coalizão de organizações — que mais tarde se tornaria a Coalizão Antirracismo das Nações Unidas (UNARC) — passou a realizar um trabalho de advocacy com os Estados membros do Conselho, para a construção de uma nova resolução da ONU. O objetivo era promover a proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais das pessoas africanas e afrodescendentes contra o uso excessivo da força por agentes policiais.

Assim, em 2021, a partir de uma articulação memorável da coalizão, publica-se a resolução 47/2021 – conhecida como resolução George Floyd – que cria o Mecanismo de Especialistas para Promover a Justiça Racial e a Igualdade na Aplicação da Lei (EMLER). O EMLER é um mecanismo híbrido das Nações Unidas, que se localiza entre uma Comissão de Inquérito e um Procedimento Especial da ONU.

O mecanismo objetiva promover mudanças transformadoras na justiça racial e na igualdade na aplicação da lei em todo o mundo, sobretudo, no que diz respeito aos legados do colonialismo e do tráfico transatlântico de pessoas africanas escravizadas. Dentre suas atividades principais, destacam-se: o exame do racismo sistêmico; a contribuição na reparação das vítimas e responsabilização dos agentes perpetradores das violências; recomendações a Estados; investigação das respostas governamentais a protestos antirracistas pacíficos e visitas regionais ou a países. Desde sua formação, o mecanismo realizou uma visita regional da América do Sul no Chile (dez./2022) e três visitas a países: Suécia (out.-nov./2022), Estados Unidos da América (abr.-maio/2023) e Brasil (nov.-dez./2023).

A importância da visita do Mecanismo EMLER ao Brasil

O Brasil é o país onde as forças policiais são responsáveis pela maioria das mortes da sua população civil. Porém, as vítimas fatais das ações das polícias possuem perfil racializado, são pessoas negras na sua imensa maioria.

A vulnerabilidade social da população negra se agravou no período de 2016 a 2022, com o golpe parlamentar que derrubou a presidenta da república e a vitória da extrema direita nas eleições em 2018. O então presidente e seu grupo de ministros e apoiadores não escondiam o seu vínculo com grupos racistas supremacistas brancos e os frequentes discursos de ódio racial e desumanização de pessoas negras eram, e ainda são, parte do discurso destes políticos.

A falta de controle sobre a comercialização e posse de armas de fogo, aliado ao incentivo de parlamentares de extrema direita para que a população civil se armasse, provocaram o aumento vertiginoso de todas as formas de violência na sociedade brasileira. Porém, em todos os contextos, o perfil das vítimas se repetiu, pessoas negras eram sempre representadas em excesso, muito acima de seu percentual na população.

Em 2022 as forças policiais brasileiras foram responsáveis por 6.429 mortes e destas 83% eram pessoas negras. Foram 5.336 assassinatos de crianças, adolescentes e jovens negros com média de idade de 12 a 29 anos. O país perdeu 14 jovens negros todos os dias pelas mãos do Estado. O feminicídio cresceu 6,1% entre 2021 e 2022, vitimando 1.437 mulheres, das quais 61% eram mulheres negras.

Uma missão do Mecanismo EMLER ao Brasil, portanto, seria de grande importância para fortalecer a luta por justiça. E aconteceu!

A UNARC organizou a visita dos especialistas do Mecanismo EMLER em colaboração direta com as pessoas diretamente impactadas pela violência policial, além das organizações da sociedade civil que atuam na defesa dos direitos humanos.

O Mecanismo EMLER visitou o Brasil entre 27 de novembro a 8 de dezembro de 2023. Neste período a Dra. Tracie Keesee e o professor Juan E. Mendez, os especialistas do Mecanismo, se reuniram com pessoas diretamente impactadas pela violência policial em audiências nas cidades de Salvador, em 29/11, Fortaleza em 02/11, São Paulo em 03/12 e finalmente Rio de Janeiro, em 05/11.

Em atenção às pessoas que deram depoimentos, todas as audiências contaram com psicólogas negras que atuam nas questões raciais.

Pela primeira vez as vítimas e familiares tiveram a oportunidade de denunciarem diretamente a um Mecanismo das Nações Unidas as perseguições e letalidade policial contra a população afrodescendente: jovens, mulheres grávidas, crianças, comunidade LGBTQIA+, pessoas defensoras dos direitos humanos e as inúmeras chacinas produzidas pelos agentes públicos armados que, mesmo durante a pandemia, em desobediência ao Supremo Tribunal Federal, que na época estava em vigor a ADPF das Favelas, que restringia as intervenções policiais nas comunidades e favelas.

Foram relatados pelos familiares os desaparecimentos forçados nos contextos urbanos e rurais. A maioria destes desaparecimentos ocorreram após revistas às vítimas ou ações policiais. Familiares relataram que sofreram intimações ao cobrarem apurações dos casos.

A política de Guerra às Drogas foi denunciada por ativistas e vítimas de funcionarem como instrumento do encarceramento de jovens negros e servirem como justificativa para as incursões, muitas vezes ilegais, de forças policiais nas comunidades e favelas.

Foram relatadas denúncias das frequentes torturas físicas, psicológicas e condições degradantes sofridas pelas pessoas encarceradas, incluindo: fome, refeições com alimentos deteriorados ou contaminados, assim como casos de isolamento em solitárias e proibição destes presos receberem visitas quando denunciam as arbitrariedades ocorridas no sistema carcerário ou quando fazem reivindicações pelos seus direitos fundamentais. Apresentaram denúncias sobre os casos de óbitos ocorridos no sistema prisional por negligência médica, tortura ou por causas não informadas aos familiares. Ademais, denunciou-se as prisões arbitrárias por perfilamento racial — através de sistemas de vigilância que utilizavam câmeras de reconhecimento facial — tecnologia que tem se mostrado ineficaz pela grande quantidade de erros.

Imigrantes relataram as violências contra imigrantes ou pessoas em situação de refúgio de origem africana e haitiana, as quais estão em curso junto ao encarceramento em massa dessa população que em muitas situações não têm o direito ao acesso à defesa respeitado.

As práticas de racismo religioso também foram relatadas aos especialistas. As violações dos terreiros e perseguições às lideranças religiosas e pessoas da comunidade religiosa ocorrem em todas as regiões do país e, muitas vezes, estas ações são perpetradas por policiais e agentes públicos e reforçadas por decisões de juízes locais, impedindo a realização das práticas religiosas. Foi lembrado o assassinato de mãe Bernadete, que mesmo o programa de proteção de pessoas defensoras de direitos humanos não foi capaz de livrá-la de seus algozes, e reforçada a necessidade de programas efetivos em favor de pessoas negras defensoras.

A violência política contra parlamentares negras e negros também fez parte das denúncias e foi lembrado o assassinato de Marielle Franco do qual, até hoje, desconhecemos o mandante.

Nas quatro cidades visitadas pelo Mecanismo uma temática interseccional foi elucidada: o impacto da violência no sistema de aplicação da lei na saúde mental da população negra. Durante os diversos testemunhos, mães, avós, pais e irmãos de pessoas mortas, torturadas e violentadas por forças policiais, expuseram a dificuldade ou inexistência da manutenção de sua saúde mental. Por vezes, escutamos familiares dizendo se sentirem como "mortos-vivos" e que o sistema racista não matou somente seus entes queridos, mas matou uma família.

Junto ao emaranhado de dor, revolta e desesperança presenciados durante as escutas, foi possível perceber também força, resiliência e certo renovo nas vozes e rostos de pessoas que não estão acostumadas em ter suas vozes ouvidas. O sentimento remanescente é agridoce, entre muita dor e a resistência contínua do povo negro. Resistimos, pois é a única opção!

Após esta fase de escuta, os especialistas produzirão um relatório que será apresentado em sessão do Conselho de Direitos da ONU e a UNARC produzirá um curta-metragem que registra a importante visita do mecanismo ao Brasil.

O Brasil possui a maior população negra fora do continente africano. São mais de 110 milhões de pessoas. Entretanto, para esta população não foi permitido vivenciar a cidadania plena, graças ao racismo sistêmico da sociedade.

Organizações da sociedade civil, em especial o movimento social negro, tem denunciado as violências que esta população negra sofre aos organismos internacionais de defesa de direitos humanos e cobrado do Estado medidas efetivas para que a cidadania plena chegue para a maioria. Pois, enquanto houver racismo não haverá democracia, como afirma a Coalizão Negra por Direitos.


Nayara Khaly Silva Sanfo é Mestranda em Relações Internacionais pela UFABC. Nayara é pesquisadora das interseccionalidades de gênero e raça nas migrações internacionais de fluxo Sul-Sul no Brasil. Atualmente, é fellow da Coalizão Antirracismo das Nações Unidas (UNARC) e do Serviço Internacional de Direitos Humanos (ISHR), onde também atua nas articulações entre organizações de base ao redor do mundo e mecanismos da ONU.

Maria José Menezes é ativista do movimento social negro. Constrói a Coalizão Negra por Direitos e a Marcha das Mulheres Negras de São Paulo. Teve a oportunidade de acompanhar, a convite da UNARC, todas as audiências do Mecanismo EMLER com as pessoas diretamente impactadas, representando a CND.

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