Correio da Cidadania

O contexto e a dimensão da vitória democrática

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Neste domingo, o Brasil realizou o segundo turno do seu processo eleitoral mais acirrado, desde a redemocratização que pôs fim à ditadura militar. Durante toda a campanha houve muitas tensões, trocas de acusações e desinformação. Qualquer que seja a perspectiva adotada, desde que situada fora do campo autoritário, ressaltará a vitória da democracia brasileira que, efetivamente, estava em perigo de grande proporção.

Apesar disso, alguns analistas, ao examinarem o processo, sublinharam a pequena distância entre os votos do vencedor e do derrotado. Nessa esteira, alguns compararam o pleito atual com os anteriores e destacaram a vitória apertada. Ao fazê-lo, mesmo que não intencionalmente, atenuaram o peso da vitória sobre Bolsonaro, o que me parece um engano, decorrente de uma miopia contextual. Como historiador, gostaria de iluminar esse processo sob um olhar magnificado pelas lentes do contexto.

Destarte, sublinho o enfrentamento desigual de um adversário, sem nenhum apreço às regras democráticas, alicerçado no aparelhamento do Estado e movido pela disposição de continuar no poder. Durante todo o certame, o atual inquilino do Planalto testou os limites da justiça por intermédio de sucessivas ameaças golpistas e de questionamentos à confiabilidade das urnas eletrônicas. Ainda, em diferentes ocasiões, ameaçou não acatar os resultados do pleito, em caso de derrota.

Nesse percurso, a campanha de Bolsonaro apropriou-se das cores nacionais, como se elas fossem suas. Em paralelo, insuflou os seus seguidores à contínua pressão nas ruas, o que gerou inúmeras agressões e inclusive assassinatos. Assim, os seguidores de Lula foram intimidados e a maioria não se sentiu segura para vestir as cores do seu candidato e se expressar livremente nas ruas. Isso deu muito mais visibilidade à campanha do presidente, candidato à reeleição, que usou e abusou da máquina pública. O ápice desses excessos deu-se quando Bolsonaro, após o descaso e a omissão, durante os períodos mais trágicos da pandemia de Covid-19, arquitetou um projeto eleitoreiro, que visava, principalmente, aos votos dos mais necessitados.

Enfatizo que um auxílio mais consistente era demandado desde o início da crise sanitária, tratada com descaso e lentidão por Bolsonaro, ao custo adicional de duas ou três centenas de milhares de vidas. No entanto, o presidente não se empenhou na proposição de um projeto dessa envergadura, quando o país mais precisava. O plano somente foi encaminhado ao Congresso nas proximidades das eleições, como parte de uma estratégia de chantagem eleitoral, pois se a oposição votasse contra, receberia a ira dos eleitores mais necessitados e se votasse a favor, o governo colheria os louros. Mas não foi só isso, pois os obstáculos eram crescentes.

A campanha de Lula teve que fazer frente à avassaladora onda de Fake News, que varreu o país, comandada, conforme amplamente denunciado, pelo assim chamado gabinete do ódio, a partir do próprio palácio do governo. Lula ainda teve de lidar com a instrumentalização imoral de milhões de fiéis manipulados por líderes religiosos de conduta duvidosa, que colocaram os seus templos e o sagrado a serviço de interesses inconfessáveis. Felizmente, muitos líderes religiosos divergiram e denunciaram essa manipulação, mas eles eram minoria. Há que se lembrar ainda aquele juiz parcial que, depois de cumprido o seu papel, virou ministro. Essa é uma longa história.

Desse modo, considero robusta a vitória obtida pela da ampla aliança costurada por Lula, pois não se trata de uma conquista alcançada contra um adversário que houvesse respeitado as regras do jogo. Ao contrário, Bolsonaro procurou burlá-las o tempo todo e, sempre que possível, buscou tumultuar o processo eleitoral. Apesar de todos os ardis, Bolsonaro, foi derrotado. Essa não foi uma vitória apenas da aliança liderada por Lula, mas da democracia brasileira.

Sublinho, no entanto, que o bolsonarismo saiu fortalecido do pleito e pacificar a nação, propositadamente cindida por seu líder e por seus seguidores mais próximos, não será tarefa fácil. Assim, o perigo da aventura autoritária ainda é uma realidade, em especial, nesse período de ressurgência fascista.

Sidnei Munhoz é historiador e autor de Guerra Fria, História e Historiografia.
Publicado originalmente em Tá por Dentro.


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