Correio da Cidadania

“Desde a extinção do Ministério do Trabalho está claro que ‘combate a privilégios’ não passa de peça retórica do governo”

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No dia 5 de agosto, servidores da justiça do trabalho protagonizaram protesto em frente ao Fórum da Barra Funda, zona oeste de São Paulo. A razão é o desmonte generalizado dos direitos trabalhistas e o consequente rebaixamento do valor do trabalho, que permeia toda a agenda econômica do atual governo. Para comentar todo o contexto, o Correio entrevistou Tarcisio Ferreira, servidor da Justiça do Trabalho e dirigente do Sindicato dos Trabalhadores do Judiciário Federal no Estado de SP (Sintrajud).

“Sabemos que a estrutura dos próprios direitos está aquém do consideramos justo e necessário, mas para a conjuntura atual, o governo, sua plataforma e setores que lhe dão sustentação, este pouco ainda significa muito. E há de fato a intenção de aprofundar o desmonte do sistema de regulação das relações de trabalho”.

Além de analisar o alinhamento do atual governo com os setores que dominam a economia nacional, Ferreira também comenta como as reformas “flexibilizantes” do governo Temer não trouxeram os resultados prometidos, como emprego e recuperação econômica. Tudo somado à Reforma da Previdência defendida diuturnamente pelos grandes representantes políticos e midiáticos do capital e à recente MP da Liberdade Econômica, evidencia-se que não há nada auspicioso para os trabalhadores no governo de extrema-direita e sua autoproclamada “nova era”.

“A despeito das diferenças da iniciativa privada ou do setor público, é que à medida que se rebaixa o padrão de direitos, o discurso que taxa o servidor público como privilegiado se eleva e aquele que não teve suas condições rebaixadas é visto como privilegiado, não como aquele que apenas manteve o que outros também tinham. Daí a importância da unidade de classe, pois quando um é puxado pra baixo certamente outros sentirão o mesmo ataque, em curto, médio ou longo prazo”.

A entrevista completa com Tarcísio Ferreira pode ser lida a seguir.


Correio da Cidadania: Como e quando começou o Movimento em Defesa da Justiça do Trabalho?

Tarcísio Ferreira: Partiu de uma articulação entre servidores, magistrados e advogados trabalhistas, tendo como estopim a declaração de Bolsonaro logo nos primeiros dias de governo de extinguir a Justiça do Trabalho, seguida da extinção do Ministério do Trabalho, na esteira de outras declarações dele e seu círculo, a exemplo do ministro da Economia. E também na esteira da Reforma Trabalhista de 2017, somada a restrições orçamentárias severas que visam estrangular a justiça e seu funcionamento ordinário.

Correio da Cidadania: Quando vocês falam de ataques à Justiça do Trabalho, se referem a quais especificamente?

Tarcísio Ferreira: Referimo-nos no primeiro momento à própria instituição, um ramo do poder judiciário que tem sua função. Por trás disso, está o ataque aos direitos sociais e trabalhistas, na medida em que tal ramo do judiciário visa o cumprimento das legislações. Não faria sentido a simples extinção da Justiça do Trabalho se o Direito do Trabalho continua a ser cumprido e observado no funcionamento das relações econômicas.

É um ataque combinado, pois na medida em que o Direito do Trabalho é esvaziado e atacado, a instituição deixa de ter razão de existir. Como a plataforma do governo é atacar a legislação do trabalho e diminuir os custos do trabalhador em favor do empresariado, nossa mobilização passa justamente pela defesa de direitos sociais e trabalhistas.

Correio da Cidadania: O que comentar do fechamento do Ministério do Trabalho por um governo que disse estar disposto a combater privilégios?

Tarcísio Ferreira: O discurso de combate aos privilégios nunca passou de simples peça de retórica, na medida em que os grupos beneficiados pelo governo em detrimento dos trabalhadores, como se vê a cada medida e reforma anunciada pelo governo, são os predominantes na economia.

A extinção do Ministério do Trabalho mostra logo de cara a visão de tal governo a respeito tanto dos trabalhadores como das instituições que precisam fiscalizar o cumprimento de normas.

Correio da Cidadania: Já há consequências para os trabalhadores do fechamento do Ministério?

Tarcísio Ferreira: Existe um componente político e simbólico no rebaixamento do status de ministério de tal órgão, pois mostra o grau de prioridade do governo em relação às atribuições que lhe competem. Concretamente, apontamos para uma precarização de seu funcionamento. Já há anos este processo de sucateamento acontece, por meio de todos os governos anteriores, desde a falta de política de carreiras e investimento no pessoal até as próprias instalações.

Agora, esta e outras medidas, como o anúncio das normas regulamentadoras, que visam tratar de segurança e higiene, apontam para o papel que se pretende dar a tal ministério, um dos componentes da estrutura pública do sistema de regulação das relações de trabalho e responsável por uma série de políticas públicas pela efetivação de tais direitos.

Vale citar ainda a MP 881, de alterar ainda mais a legislação trabalhista, para retirar mais direitos e flexibilizar as contratações, chamada de MP da Liberdade Econômica, que tenta contrabandear outros dispositivos do mesmo sentido da Reforma Trabalhista.

Outro aspecto importante é que, a despeito das diferenças da iniciativa privada ou do setor público, é que à medida que se rebaixa o padrão de direitos, o discurso que taxa o servidor público como privilegiado se eleva e aquele que não teve suas condições rebaixadas é visto como privilegiado, não como aquele que apenas manteve o que outros também tinham. Daí a importância da unidade de classe, pois quando um é puxado pra baixo certamente outros sentirão o mesmo ataque, em curto, médio ou longo prazo.

Correio da Cidadania: Voltando um pouco no tempo, o que a recente Reforma Trabalhista trouxe de resultados? O que comentar dos argumentos de quem a defendeu, em prol de “empregos”?

Tarcísio Ferreira: A mal chamada Reforma Trabalhista aprovada há dois anos trouxe como consequências básicas a restrição do acesso à justiça e redução do patamar dos direitos conferidos aos trabalhadores. O discurso de geração de emprego não se confirmou, conforme já falávamos. Pelo contrário, aumentou o desemprego. E não há estudos sérios que entrelacem flexibilização (eufemismo pra redução de direitos) com geração de empregos.

O primeiro elemento para a geração de postos de trabalho é demanda econômica. A simples retirada de direitos não motiva contratações. A redução do custo do trabalho pode beneficiar empresários, mas não necessariamente gera empregos. Falamos isso antes da aprovação da lei e a realidade confirmou. Demanda e investimentos são os elementos primários para a geração de emprego.

Correio da Cidadania: Recentemente, também tivemos a lei das terceirizações aprovada. O que comentar sobre ela e suas consequências?

Tarcísio Ferreira: Assim como a lei trabalhista que altera substancialmente a CLT, essa lei teve por objetivo reduzir o custo de trabalho e assegurar maior flexibilidade e menor responsabilidade dos tomadores de serviços na garantia de direitos. No Direito do Trabalho há o preceito de que os riscos da atividade econômica são do empregador, mas cada vez mais a legislação transfere os custos para o trabalhador, cada vez mais responsável pela própria condição.

E as empresas buscam cada vez mais dispor de força de trabalho para suas necessidades de forma pontual, como se vê na lei de terceirização e na aprovação do trabalho intermitente pela reforma trabalhista, entre outras formas precárias de contratação e emprego da força de trabalho. Para não falar da chamada informalidade, outro eufemismo para ocupação de força de trabalho à margem de direitos e garantias.

Correio da Cidadania: Diante do contexto de ataques frequentes da classe política ao mundo do trabalho e seus foros jurídicos, como tem sido a rotina de vocês, trabalhadores destes foros?

Tarcísio Ferreira: Na justiça do trabalho há uma grande preocupação, não só no sentido de mensurar os impactos internos e externos da Reforma Trabalhista, mas também com novas medidas que venham a aprofundar as já implementadas. Sabemos que a estrutura dos próprios direitos está aquém do consideramos justo e necessário, mas para a conjuntura atual, o governo, sua plataforma e setores que lhe dão sustentação, este pouco ainda significa muito. E há de fato a intenção de aprofundar o desmonte do sistema de regulação das relações de trabalho.

Às vésperas da entrada em vigência da nova legislação, houve pico de novas ações, por conta da preocupação do que poderia vir depois. Logo após a entrada em vigor, houve queda no número de ajuizamentos. Mas claro que isso não significa que os conflitos na área diminuíram. Restringir acesso à justiça não significa que se faz mais justiça, é bom destacar.

Passado o primeiro momento, vemos nova elevação do número de ações, mas ainda difícil de mensurar, porque ainda há um grande estoque de demandas anteriores à atual lei.

Somado a isso, temos sofrido no serviço público como um todo um processo de ataque muito grande, de severa restrição orçamentária que tem sofrido redução de patamar muito importante. Isso envolve redução de investimento em infraestrutura e pessoal, com restrição de nomeação de servidores e sobrecarga crescente de serviços, que precisam ser suportados por uma quantidade menor de pessoas.

Correio da Cidadania: A precarização das relações de trabalho já avançou sobre os funcionários do poder judiciário em seus foros aqui referidos?

Tarcísio Ferreira: Quando falo que leva tempo mensurar impactos da nova legislação me refiro também à formação da jurisprudência dos tribunais e como as coisas vão se desenvolvendo ao longo do tempo, a exemplo da interpretação das leis. A lei da Reforma Trabalhista é muito ruim também do ponto de vista técnico, tem muitas lacunas, imprecisões e formulações defeituosas. Há muitas contradições e incoerências ao longo do texto.

O projeto inicial apresentava poucos dispositivos e alterações, mas a combinação de emendas de setores do Congresso e do governo de então, tivemos uma reformulação, na verdade um novo texto que tramitou com centenas de alterações de dispositivos. Isso é algo sensível e tem sido alvo de questionamentos, inclusive no âmbito jurídico. Tem um debate importante entre juristas e operadores do direito em relação a várias inconsistências no texto da lei.

Como dito, ainda é significativo o padrão de direitos que existe, considerando o governo e os setores que lhe dão sustentação. O desafio é garantir a defesa da instituição como expressão da defesa dos direitos do trabalho. Sem essa conexão a questão fica esvaziada, porque a justiça do trabalho serve para cumprir este papel.

O debate jurídico precisa estar articulado com a avaliação sociopolítica da legislação e a inserção dos operadores do ramo, e como isso se relaciona com a regulação das relações no mercado privado de trabalho.

Correio da Cidadania: E nos outros foros, avançará também? Os estratos superiores do funcionalismo jurídico serão afetados pelas reformas aqui debatidas, inclusive a da previdência?

Tarcísio Ferreira: O processo de precarização é em todo o serviço. Falta de política salarial que envolve manutenção do poder de compra e benefícios, levada ao extremo com a vigência da EC 95, que congela orçamento público. Há a restrição à reposição de cargos e aposentadorias não têm sido objeto de reposição. E há medidas da plataforma do governo, que pretende aprovar uma reforma administrativa que altera substancialmente a estrutura das carreiras do serviço público. Não há carreiras estruturadas, a não ser em alguns setores excepcionais, mas no geral os setores públicos não têm estrutura que assegure evolução profissional e política salarial, combinada com a demanda social.

Outro ponto central é o ataque à estabilidade. Há projetos que tramitam no Congresso e o governo manifesta publicamente a intenção de extinguir a estabilidade no serviço publico que, como destacamos sempre, não é regalia ou privilégio, mas uma garantia do cidadão em relação ao atendimento que receberá, não sujeito a pressões políticas ou favorecimentos. É garantia do cidadão de que será atendido pelo servidor independentemente de quem seja o receptor de política pública.

Outro componente importante é a política de gestão que não leva em conta as cargas efetivas de trabalho e suas condições reais, pautando-se por metas de desempenho baseadas em números e que colocam enorme pressão sobre o conjunto dos servidores, com drásticas consequências tanto em relação ao serviço prestado como à saúde das pessoas, cada vez mais sujeitas a assédio moral e violências que assumem feições institucionais, uma vez que deixam de ser casos isolados e se tornam políticas de gestão.

Correio da Cidadania: Diante disso, quais as respostas a serem dadas pelos trabalhadores que não compactuam com essa agenda político-econômica?

Tarcísio Ferreira: A Justiça do Trabalho é um ramo bastante peculiar dentro do sistema de justiça e do serviço público. Basicamente pelas suas funções, pois o Direito do Trabalho tem entre seus princípios o reconhecimento da desigualdade entre as partes, diferentemente de outros ramos. Ainda que seja uma instituição da ordem, ao funcionar minimamente ela se opõe a diversos projetos em voga.

Mas o que está posto, a plataforma do governo e seus aliados, é a reconfiguração do Estado e da estrutura dos serviços públicos, a fim de assegurar maior liberdade, entre aspas, aos agentes econômicos para atuarem no mercado, reduzindo a estrutura e volume dos serviços públicos prestados à população, principalmente a que mais depende deles.

Nessa medida, todos os serviços públicos são alvo. Portanto, os demais ramos da justiça e do serviço público são alvo, em vários setores e hierarquias. Algumas hierarquias podem ocupar determinado espaço dentro deste projeto e serem menos prejudicadas, mas de modo geral está posta a redução, o esvaziamento e a precarização do serviço público.

Ainda neste sentido, a Reforma da Previdência em debate realmente é um gravíssimo ataque aos serviços públicos em todas as esferas. Afeta duramente a população mais pobre e trabalhadora e é bastante severa em relação a servidores públicos, pela idade, tempo de contribuição, quantidade de contribuições, alíquotas, entre outros ataques.

O sistema previdenciário no serviço público que era considerado parte de política de pessoal e carreira tem sido cada vez mais rebaixado e excluído do escopo da discussão do serviço público. Isso dá margem ao discurso de se atribuir à própria pessoa a responsabilidade de prover condições de seu sustento, seja aposentadoria ou outra assistência previdenciária, um componente importante da precarização das condições de vida dos servidores públicos, tanto no presente quanto em termos de perspectiva futura.

Correio da Cidadania: O que você acha que teremos pela frente ao longo deste ano?

Tarcísio Ferreira: Temos uma conjuntura muito difícil, a maior crise da história recente, ao menos desde a redemocratização, e vários setores dos escombros do regime buscam se reciclar e se manter à frente. O velho tenta se travestir de novo. Em meio a isso, um governo de extrema-direita que é uma superação negativa da polarização anterior, que investe na radicalização de um discurso ideológico que sustenta uma polarização que não expressa os interesses reais nas bases da sociedade.

Diante de tal cenário, qualquer alternativa precisa passar pelas necessidades reais da população e dos trabalhadores. A defesa do serviço público, para além dos interesses corporativos de quem nele trabalha, passa necessariamente pelo diálogo com as demandas reais da população.

Há uma falta de projeto e uma negação do status quo até agora só se traduziu em aprofundamento da crise. Ao fazer esse diálogo podemos acumular forças, construir pontos de unidade e articular lutas em torno de pautas comuns a fim de se contrapor ao projeto atual e colocar alternativas sociais e políticas ao regime que temos hoje.

Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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