Correio da Cidadania

A morte do Museu Nacional é a nova metáfora de um país acanalhado por todos os lados

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A noite de domingo caiu com uma das imagens mais impressionantes da história do Brasil ao vivo e a cores: o Museu Nacional do Rio de Janeiro em chamas. Uma história bicentenária, portadora de grande parte do desenvolvimento do país após a chegada da família real portuguesa, e um acervo de relevância mundial foram embora diante de um Corpo de Bombeiros que teve de recorrer às aguas do lago da Quinta da Boa Vista para tentar diminuir o desastre. Tal como a derrota de 7 a 1 para a Alemanha, um brutal simbolismo de um país que prometeu e, mais uma vez, não cumpriu.

“Queimamos o quinto maior acervo do mundo. Queimamos o fóssil de 12 mil anos de Luzia, descoberta que refez todas as pesquisas sobre ocupação das Américas. Queimamos murais de Pompeia. Queimamos o sarcófago de Sha Amum Em Su, um dos únicos no mundo que nunca foram abertos. Queimamos o acervo de botânica Bertha Lutz. Queimamos o maior dinossauro brasileiro já montado com peças quase todas originais. Queimamos o Angaturama Limai, maior carnívoro brasileiro. Queimamos alguns fósseis de plantas já extintas. Queimamos o maior acervo de meteoritos da América Latina. Queimamos o trono do rei Adandozan, do reino africano de Daomé, datado do século 18. Queimamos o prédio onde foi assinada a independência do Brasil. Queimamos duas bibliotecas. Queimamos a carreira de 90 pesquisadores e outros técnicos”, lamentou o arquivista Rui da Cruz Jr, em texto amplamente circulado em redes sociais logo após a tragédia.

Ato contínuo, começou aquilo que parece ser o único pão de cada dia da política nacional: a chamada “disputa de narrativas”.

Acentuada pelos dias da fugaz campanha eleitoral – outro capítulo à parte do vazio que nos assola – tais posturas, de lado a lado no espectro político, se não chegam a surpreender, conseguem apenas causar mais indisposição das pessoas com uma democracia e seus pretensos representantes em frangalhos.

Dessa forma, corremos o grande risco de novamente pularmos a discussão que devia interessar, ao menos àqueles que se importam com a destruição de um patrimônio que nenhuma sociedade mais desenvolvida que a brasileira deixou de tratar como fundamental em sua construção social.

“As pessoas de fora do meio científico e museológico talvez não tenham ideia de quão ridículo era o orçamento anual do museu de 520 mil – e mesmo esse valor irrisório, vergonhoso, não era entregue desde 2013. A responsabilidade pela tragédia deve ser compartilhada pelos governos de esquerda e direita que governaram o país nesse período”, afirmou o filósofo e professor da USP, Pablo Ortellado.

Independentemente de quaisquer preferências e filiações ideológicas, cabe destacar que se trata de uma das poucas figuras com alcance público que têm feito o esforço de ampliar debates de peso para além das agendas partidárias e eleitorais. Não à toa é alvo preferencial das ofensas de certos grupos que, se olharmos bem, participaram ativamente do esfacelamento desta Nova República.

De todo modo, a indignação popular foi um sentimento autêntico e nas primeiras horas da segunda-feira muita gente já se concentrava em frente ao Museu, sob vigilância da Polícia Militar.

Na televisão, uma mídia perplexa com a destruição de um patrimônio que nunca está em destaque em sua programação. Basta citar a matéria da BBC que levantou o dado de que tivemos mais brasileiros no Louvre do que no referido museu em 2017.

E, claro, lavou as mãos em relação a seu incansável discurso de austeridade e esvaziamento de tudo que soe a público, a exemplo do próprio estado do Rio de Janeiro e suas universidades. Falido por anos de esbórnia público-privada que assaltou as finanças e não deixou nada à sociedade, o Rio deixou às traças suas universidades e hospitais públicos.

Henrique Meirelles, ministro do governo sem voto cujas políticas de garantias sem fim a um capitalismo sempre em processo de desnacionalização foram amplamente defendidas por essa mesma mídia, sobretudo a nave-mãe Globo, inclusive sugeriu o fechamento das universidades públicas como “método” de combate à crise econômica nacional.

Niilista, predatória e, como disse o abismado escritor português Valter Hugo Mãe, em guerra contra si mesmo (ou seu povo, que além do desemprego encara novas rodadas de militarização de seu cotidiano), esse mesmo conluio mídia-burguesia não se envergonha em reafirmar seus discursos falidos e desprovidos de base real.

Ninguém lembrou dos alertas dados pelos funcionários do museu há dois anos, quando suspenderam visitas e fizeram até greve contra o sucateamento evidente promovido pelo corte de “gastos” públicos. Notemos a pegadinha ideológica: cuidar do patrimônio e dos serviços públicos, além de prestigiar a carreira de seus funcionários, é “gasto”, não investimento, na linguagem desses incansáveis arautos do “privatiza tudo, se der errado devolve pro Estado”. Vale conferir matéria da Agência Aos Fatos sobre o largo histórico de negligência com o Museu.

E nem bem esfriaram as chamas e o Globo já se saiu com capa, pra bom entendedor, disposta a demonizar o serviço e a coisa pública, em coro amplificado pela “nova” e energizada direita, com sua mídia “alternativa” repleta de má fé e perseguição ideológica da época da guerra fria.

A culpa, portanto, logo deve ser atribuída “ao psolista Roberto Leher” (reitor da UFRJ), à não aceitação de um obscuro projeto do Banco Mundial de 20 anos atrás e, claro, aos salários dos funcionários (eternos marajás). Isso pra não falar das ilações delirantes de ditos liberais que ainda não saíram do condomínio para interpretar suas teorias à luz do Brasil real.

“Não quero com isso dizer que não existe responsabilidade da UFRJ, pois em algum grau ela existe e está sendo assumida, mas a narrativa de que o que é público não presta desconsidera que existem múltiplas causas atuando para que qualquer coisa (como um incêndio desses) ocorra. Só que exigir uma análise complexa da situação é pedir demais das Organizações Globo em pleno período eleitoral. Para além de buscar um culpado já eleito, eles querem enfiar e defender um projeto específico”, escreveu o sociólogo e professor da UFRJ, Marcelo Castañeda, também colunista deste Correio.

Aliás, o jornal do almoço da GloboNews saiu do incêndio para mais uma decepção com as notas dos alunos brasileiros no Ideb. O convidado ao estúdio para comentar: um gerente do lobby empresarial Todos Pela Educação, a fazer os tradicionais libelos da ineficiência do ensino público, mas com propostas que só falam a língua da planilha. Nada de educador ou pedagogo, e sim um gerentinho qualquer de “movimento social empresarial”.

Do outro lado do espectro, o desalento não fica muito atrás, como bem registrou Castañeda: “o ato na Cinelândia tinha tudo para ser lindo. Eram umas 10 a 20 mil pessoas (eu nunca sei ao certo) e em quatro horas de ato só houve espaço para a fala de quatro pessoas do Museu Nacional, que me recorde. Nesse tempo diversos candidatos, a maioria do PT e do PSOL (mas também do PC do B e do PSTU) tiveram a fala assegurada. Achei extremamente desproporcional e repetitivo. Mas até que não podia esperar outra coisa em plena corrida eleitoral. Acho que desse jeito, falando para convertidos, a esquerda carioca vai longe. Valeu a pena por ter encontrado professores queridos que lá estavam e algumas amizades. Particularmente vamos ter que lidar com a perda e o luto do Museu Nacional. Apesar de todo um discurso sobre a reconstrução acho que ele não voltará. Assumir a derrota é necessário mas não faz parte da corrida eleitoral”.

Ainda no ato, um jovem vinculado ao Livres (uma das expressões da nova e “descolada” direita) foi excluído dos discursos no palanque e quase linchado. Divergências notórias à parte, que mal poderia haver em permitir que discursasse seus cinco minutos, considerando que não estava lá com motivações provocativas? Uma vaia ou a indiferença do público seria até uma boa experiência a levar na bagagem.

Afinal, quem tanto diz defender o Estado de Direito deve ser capaz de conviver com algumas pílulas de divergência, ainda mais num ambiente de esmagadora hegemonia. Até porque não é pequena a parcela desta esquerda que só consegue vislumbrar como solução de tamanho desastre um voto em Lula, cujo governo jamais contrariou as classes dominantes e se aliou também com setores da direita radical e violenta. Aliás, financiou alegremente o conluio político-econômico que assaltou o Rio.

 
Dados levantados pela ONG Contas Abertas.

Podemos falar do que interessa?

“Não tenho expertise para discutir as perdas específicas de outros tipos de acervo do Museu Nacional. Tenho certeza que havia outras ‘Luzias’ nas coleções de paleontologia, geologia, etnografia… Assim como há ‘Luzias’ em todos os museus brasileiros, apenas esperando que o poder público entenda que cultura, educação e história não são meras frivolidades na formação de um projeto de nação ou de um povo. Ao contrário, são imprescindíveis para entendermos de onde viemos e qual direção queremos tomar”, escreveu a arqueóloga Mercedes Okumura, que trabalhara até junho no museu, em artigo ao site Colabora.

Pois, tal como na Copa que não resolveu nenhuma mazela estrutural do futebol brasileiro, enriqueceu os espertos de sempre e ainda afastou os mais pobres da expressão cultural que mais amealhou simpatia a este pobre país, os dias seguintes da tragédia já correm para o esquecimento do essencial, em nome da luta espúria por velhos projetos e aparelhamentos. O país que almejamos ser passa ao largo das mesquinhas “narrativas”.

“Nesses 200 anos, o Museu Nacional formou inúmeros pesquisadores, nas mais diferentes áreas do conhecimento. Esses, além de contribuir com a geração de novo conhecimento, ainda têm a tarefa inerente dada a qualquer pesquisador brasileiro: fazer ciência apesar do poder público. Qualquer um que tenha trabalhado com pesquisa e educação no Brasil sabe que, não raramente, tira-se dinheiro do bolso para comprar equipamentos e insumos. Essa não é uma situação particular do Museu Nacional, é algo comum e até naturalizado em museus e instituições de pesquisa Brasil afora”, reforçou Okumura.

Pois são raras as vozes realmente dissonantes deste país que passa vergonha em escala colossal. Sócios, ex-sócios ou candidatos a novos sócios da “governabilidade conservadora”, modelo de farsa democrática que poucos se atrevem a atacar sem concessões, e sua crise sem dia pra acabar só podem manter o discurso nos limites de seu cercadinho. Sejam aqueles que, mesmo veladamente, apoiam enfaticamente as reformas do governo mais odiado do pós-ditadura ou aqueles que riam à toa nos “áureos tempos” de Cabral e Paes à frente do Rio, com Copa e Olimpíadas a firmar nossa “cidadania internacional”.

Mais uma vez, a realidade nos massacrou e humilhou diante do mundo inteiro.


Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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