Correio da Cidadania

Djamila Ribeiro: “a prioridade no Brasil deve ser discutir o racismo”

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Djamila Ribeiro talvez seja a principal referência intelectual negra da atualidade. Autora de dois best sellers que estiveram entre os mais vendidos nas recentes edições da Bienal do Livro de São Paulo e Flip — Quem tem medo do feminismo negro? (2018) e O Que é Lugar de Fala? (2017) –, Djamila tem se tornado uma fala cobiçada no circuito nacional de palestras. No dia 17, o Teatro Dante Barone, da Assembleia Legislativa de Porto Alegre, lotou para ouvir sua conferência “Lugar de Fala: discutindo subjetividades e grupos sociais”, no Encontro Gaúcho da Psicologia.

Em conversa de cerca de 20 minutos com o Sul21 no camarim do teatro antes do evento, Djamila responde: quem tem medo do feminismo negro? Para a filosofa, classificar as questões de raça, gênero e sexualidade como “pautas identitárias” já parte, por um lado, de uma posição de silenciamento do outro e, por outro, de uma recusa de, geralmente, homens brancos entenderem a si mesmos como pertencentes a uma identidade.

“Acho interesse apontar a identidade do outro, mas isso mostra o quanto que pessoas brancas não estão acostumadas, historicamente, a se enxergar como pessoas brancas marcadas socialmente. Elas se enxergam como o universal”, diz.

Para Djamila, não há como a esquerda falar de classe sem falar de opressões de raça e gênero. “Sempre é essa questão, ‘a gente vai discutir os problemas maiores e depois a gente discute essa questão’, sem entender que não tem problema maior no Brasil hoje do que discutir o racismo, que acaba gerando várias desigualdades. Num país em que a cada 23 minutos um jovem é assassinado, num país em que aumenta em 54% o feminicídio de mulheres negras, o que é a grande questão?”

Confira a seguir a íntegra da entrevista.

Djamila é autora de dois best sellers recentes. O último, lançado esse ano, Quem Tem Medo do Feminismo Negro? | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21 – Quem tem medo do feminismo negro?

Djamila Ribeiro: Essa é uma pergunta provocativa, vem de um dos artigos que está no livro. Na verdade, são as pessoas que têm de dizer. Se elas ainda têm medo, se elas desconhecem o que é. É um convite para conhecer, porque infelizmente tem muitas deturpações quando falamos sobre os feminismos negros. Há ainda um desrespeito, uma deslegitimação das condições intelectuais das mulheres negras.

As pessoas simplesmente falam sem conhecer, sem ler, sem saber quem são. Acho que é um título provocativo. Quem tem medo, quem se sentir de alguma maneira afrontado, precisa conhecer, ler, saber do que a gente está falando, o que a gente está de fato discutindo, que são bases para um novo marco civilizatório.

O que as pessoas não entendem quando se fala em representatividade?

Acho que num país como o nosso, fundado no mito da democracia racial, as pessoas têm dificuldade de entender inclusive o que é racismo. A gente ainda acha que o racismo é algo do campo individual, da moral, e não entende o racismo como um sistema político que impede as populações negra e indígena de acessarem direitos básicos.

Portanto, geralmente as pessoas quando veem alguém famoso sofrendo um caso de racismo, se espantam achando que racismo é só aquilo, mas não se espantam sobre por que nunca tiveram um professor negro, por que na empresa em que trabalham não tem pessoas negras... Não conseguem entender racismo como um sistema.

Acho esse o nosso grande problema. Se as pessoas entendessem de fato o que é racismo e como ele vem historicamente minando oportunidades e negando direitos básicos, elas entenderiam porque a gente julga importante ter representatividade, ter pessoas negras e indígenas ocupando espaços que historicamente foram impedidas de estar.

Nesse sentido de ocupação de espaços, como é para ti ter tido um dos livros mais vendidos da Bienal de São Paulo, a mesma coisa na Flip? Qual a importância disso?

Eu acho que mostra o quanto é um movimento, não um momento. Quer dizer, tem pessoas que acham uma onda. Eu acho que é um movimento que vem sendo construído há muitos anos, não começou comigo, muito pelo contrário. A gente tem a Maria Firmina dos Reis, que foi a primeira pessoa a escrever um romance no Brasil, o Úrsula, a ser reeditado agora.

Tivemos grandes escritores e escritoras negras produzindo. Eu acho que sou um pouco fruto dessas pessoas e, hoje, ter dois livros best sellers mostra o quanto as pessoas estão cansadas das velhas narrativas e o quanto também estão querendo descobrir outras perspectivas do mundo. Porque a gente, como mulher negra, está elaborando o mundo também.

Portanto, acho que fica demonstrado um desejo e um cansaço da sociedade de sempre ver impostas as mesmas narrativas.

Hoje, tu és uma referência intelectual no Brasil, está sempre na mídia. Que responsabilidade isso te traz?

Tem um peso muitas vezes. Eu nunca me coloquei nesse lugar, é um lugar que as pessoas acabam te colocando. Mas, ao mesmo tempo, eu também acho importante, sempre falo nas minhas palestras, de me humanizar, porque eu sou uma pessoa como outra qualquer. Enfim, para estar aqui hoje tive que contar com alguém para cuidar da minha filha. Eu chego em casa, vou fazer a lição com ela. Acho que é importante as pessoas entenderem que nós somos pessoas comuns, vivendo a vida, lutando por uma sociedade mais justa, assim como tantas outras.

Ao mesmo tempo, acho que é bacana, eu costumo também dizer que não pode ter uma romantização em cima disso, nem uma glamourização, porque, na verdade, a gente luta, trabalha muito, para conseguir conquistar espaços.

Hoje temos muito mais intelectuais negros, se é que a gente pode colocar pessoas nessa caixa, do que há 20, 30 anos. A ascensão de intelectuais negros incomoda muita gente?

Acho que incomoda. Eu acho que, na verdade, a gente teve bastante intelectuais negros que foram invisibilizados ao longo da história. Claro que com as ações afirmativas tivemos uma maior entrada de pessoas negras na universidade. Incomoda porque, numa sociedade racista, ela cria lugares. Para as pessoas negras, sempre são os lugares de subalternidade e de submissão. Quando a gente sai desses lugares, gera um incômodo na sociedade, mas é um incômodo necessário.

As pessoas que estão incomodadas, que fiquem incomodadas mesmo e comecem a refletir a partir de tal incômodo. Mas, sem dúvida nenhuma, vai acabar acontecendo porque a gente está disputando poder e, a partir do momento em que se disputa poder, começamos a perceber o quanto vai incomodar certos setores que estão querendo só a manutenção dos lugares e não a transformação.

O que tu acha do conceito “pautas identitárias”?

Eu acho interessante quando as pessoas falam “identitárias” para pessoas negras, ou para mulheres ou pessoas gays, porque geralmente são homens brancos que falam, e eles também não percebem que branquitude e masculinidade também são identidades. Acho interessante apontar a identidade do outro, mas mostra o quanto pessoas brancas não estão acostumadas, historicamente, a se enxergar como pessoas brancas marcadas socialmente. Elas se enxergam como o universal. Quando ele aponta para mim e diz que eu sou identitária, ele automaticamente está se colocando como universal.

É importante a gente entender que todos esses debates das identidades não são debates que se encerram em si mesmos. Quando a gente está discutindo identidades, a gente está discutindo como o poder se institui e retifica, oprime, certas identidades em detrimento de outras. Sem fazer tal debate, a gente não consegue discutir projetos maiores de sociedade.

As pessoas costumam dizer classe trabalhadora, mas essa classe é marcada por raça e por gênero. A gente precisa dessa marcação para poder entender qual é esse lugar social e quais são as condições materiais que tais pessoas têm de fato para conseguir transcender certas situações.

Tu acha que, mesmo dentro da esquerda, existe um momento calculado para colocar o que se chama de “pautas identitárias” dentro de uma caixinha também com o objetivo de suprimir, silenciar as vozes?

Acredito que sim e é uma coisa antiga. O meu pai foi militante comunista e isso já acontecia na época dele, acontecia na época da Lélia Gonzalez, de sempre tentar tratar as questões raciais, e a questão de gênero, como questão menor. O nosso entendimento enquanto feministas negras é que tais pautas são indissociáveis. Não tem como discutir classe no Brasil sem discutir raça, porque o racismo impede a mobilidade social da população negra, gerando um problema de classe. A população negra é pobre porque é negra. Portanto, na nossa perspectiva, é impossível discutir raça sem discutir classe e sem discutir gênero.

Essas três opressões estão imbricadas, estruturam a sociedade e a gente precisa pensar nelas de um modo indissociável, o que é a grande dificuldade de parte da esquerda de querer eleger classe como o mais importante, sem entender que raça e gênero fazem parte e são entrecruzadas com a questão de classe.

Portanto, sempre é a questão, ‘a gente vai discutir os problemas maiores e depois a gente discute essa questão’, sem entender que não tem maior problema maior no Brasil hoje do que discutir o racismo, que acaba gerando várias desigualdades. Num país em que a cada 23 minutos um jovem é assassinado, num país em que aumenta em 54% o feminicídio de mulheres negras, o que é a grande questão?

A gente também tem uma grande fragmentação entre os vários movimentos feministas. Em outras entrevistas, tu já falaste que essa fragmentação não é necessariamente ruim, mas tem que haver um diálogo. Como pode ser feito esse diálogo entre ideias diferentes e também com pessoas que não legitimam o feminismo negro e outros movimentos que não sejam do chamado ‘mainstream’?

A sociedade já é dividida. Racismo, opressões de classe e machismo já dividem a sociedade, colocando o homem branco no topo e a mulher branca na base. Essa divisão não é feita por nós, até porque a gente nem teria poder institucional e estrutural para promover tais divisões. Esse é o primeiro equívoco da leitura de que estamos dividindo. Quando a gente nomeia as opressões, está justamente querendo combater uma divisão que já está posta, já está dada. Nós somos diferentes. Temos a tentação da universalidade, uma coisa homogênea, que eu acho perigoso, porque nós somos diferentes.

O problema é como lidar com a diferença e interliga as nossas lutas para pensar um projeto maior de todos e todas. Mas sem priorizar a vida daqueles que são mais vulneráveis, é impossível pensar um projeto maior no Brasil, em que a maioria da população está apartada de acessos básicos a direitos. É importante tentarmos, sim, sempre dialogar, mas entendendo que nem sempre isso vai ser possível. Infelizmente, existem pessoas que já estão convictas, mas acho importante dialogar com as pessoas que estão reproduzindo tais questões por ignorar de fato.

Às vezes, acho que a esquerda peca porque parte de uma arrogância muito grande de achar que todo mundo tem de saber ou achar que não tem que dialogar com certos setores da sociedade. Por exemplo, evangélicos. Como que você não discute com evangélicos, sendo que a religião negra no Brasil não é o candomblé, é a evangélica?

Você tem um grande número de mulheres pobres, tem aumentando o número de feministas cristãs, da Frente Evangélica pela Descriminalização do Aborto, de mulheres evangélicas que fazem trabalho dentro das igrejas e muitas vezes aquilo é olhado com o desdém.

Portanto, acho que, às vezes, ficam meia dúzia de pessoas falando para si mesmas e não encontram uma maneira de se comunicar com as pessoas para fazer elas entenderam a própria realidade. O fato de você ser pobre não significa que consegue refletir criticamente sobre aquilo. Trata-se de criar mais pontes de diálogo e sair dos grupinhos de poder, de ficar falando só para si.

O brasileiro conhece o Brasil?

Não conhece o Brasil. Em geral, o brasileiro não conhece o próprio país. Um país em  que temos uma educação pública que não é de qualidade e as pessoas não sabem refletir criticamente sobre o próprio país. É um país extremamente Europa-desejante, que nega as suas próprias fundações como um país negro e indígena, que teve uma política oficial de branqueamento, que negou historicamente essas diversas contribuições.

Estamos mudando, claro, a mentalidade de uns anos para cá, mas ainda é tudo muito incipiente. De maneira geral, as pessoas não sabem, por exemplo, quem foi Dandara, não sabem de todas as revoltas indígenas que ocorreram durante o período da colonização. Se a gente perguntar para uma pessoa se ela sabe o nome de cinco etnias indígenas, ela não vai saber responder. Trata os povos indígenas como se fosse uma coisa só. Não vai saber das lutas quilombolas.

Enfim, tudo porque é um país que tentou se embranquecer e instituiu uma visão eurocêntrica de mundo e de conhecimento.

A gente falou da esquerda, mas mudando o lado. A gente vê uma ascensão do ressentimento, para não falar de ódio, pessoas que se incomodam com a ascensão dos negros, de pautas progressistas. Como se lida com o ressentimento das pessoas que já se afastam do diálogo dizendo que é ‘tudo mimimi’?

É difícil. Muitas vezes são pessoas de classe média e não entendem que são classe trabalhadora, pessoas que ainda não entenderam a classe à qual  pertencem no Brasil. Têm uma ilusão de riqueza. A ascensão de várias pessoas das classes C e D fez com que as da classe média percebessem que elas não são ricas, que elas também são classe trabalhadora. Eu acho muito difícil, o Marx tem toda a razão no sentido de como o capitalismo aliena as pessoas.

Eu penso que, pelo menos, é necessário a gente tentar o diálogo com essas pessoas para elas perceberem que são tão trabalhadoras como todas as outras e que medidas como as que estão acontecendo hoje no Brasil, como a reforma trabalhista, a PEC 55 e todos os retrocessos vão prejudicar as pessoas que estão muitas vezes numa política do ressentimento, mesmo pertencendo à classe trabalhadora, sem se perceber como tal.

Portanto, acho que é todo um trabalho de tentar disputar narrativas, sabendo que nem sempre vai ser possível. É importante não perder, como se perdeu nos últimos anos, a questão do trabalho de base, de dialogar com as pessoas, de construir espaços onde existam trocas, enfim.

Muito tem se falado que essas eleições vão ser a da reeleição das velhas caras. Os movimentos para que negros votem em negros e mulheres votem em mulheres pode ser uma das fontes de novidades na política?

Os movimentos para colocar mais pessoas na política são extremamente importantes. Mas, por outro lado, qual é o apoio real que essas pessoas estão tendo até dos próprios partidos? Quanto de verba está sendo destinada do fundo partidário para tais candidaturas? A gente sabe que, sem dinheiro, não se elege no país. Enfim, acompanhando candidatas, companheiras nossas, negras e negros em partidos de esquerda — eu sou uma pessoa de esquerda e faço a crítica de esquerda justamente por isso — muitos não conseguiram nada do fundo partidário, outras conseguiram quantias ínfimas, estão tendo que fazer campanhas e mais campanhas para conseguir dinheiro.

Ao mesmo tempo, julgo ser importante, sim, esses companheiros e companheiras se organizarem para fazer a disputa institucional; por outro lado, sem o apoio financeiro e econômico sabemos que fica difícil. E, sem uma reforma política em que o poder econômico não determine quem vai vencer ou não, fica muito mais difícil.

Portanto, é importante sim, mas eu questiono qual é o apoio de fato que esses partidos estão dando de fato para as candidaturas, para além de usá-las para dizer ‘olha, nós somos diversos’, mas sempre colocando dinheiro e dando peso para as mesmas caras de sempre na política.

Uma das grandes novidades em termos de força política, infelizmente, vem da morte da Marielle. Te incomoda a superexposição e que muitas pessoas têm usado a figura da Marielle para colocar pautas que não necessariamente seriam dela?

Acho que incomoda mulheres negras de maneira geral, pelo que temos conversado. Faz-se uso político da Marielle sem perceberem que mesmo o fato de ela ser uma parlamentar não a impediu de ser assassinada de uma maneira brutal. O que mostra que os nossos corpos são vulneráveis, independentemente da posição ocupemos.

Aí, claro, por ser ano eleitoral, muitas pessoas que não são comprometidas, que muitas vezes nem entendiam as pautas da Marielle que chamavam ela de identitária, pós-moderna, estão se aproveitando, em vez de entender que, para nós, o legado dela é outro. É a questão de ser uma mulher que veio de onde veio, chegar onde chegou, das lutas que ela fazia. Assim, para nós, tem outro significado e, de fato, tem sido usado de maneira muito desrespeitosa e eleitoreira.

Luis Eduardo Gomes é jornalista do Portal Sul 21, onde a entrevista foi originalmente publicada.

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