Correio da Cidadania

O burguês delator

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Cresci ouvindo que os empresários pagavam propina para políticos. Ninguém era senador ou deputado, prefeito ou governador sem a grana de um empreiteiro. O político exitoso fazia obras e estas exigiam, obrigatoriamente, aquela gente nefasta. Em consequência, os empreiteiros eram tão detestáveis quanto necessários. Nestes termos, quando comecei a dar importância para a política, tudo sugeria que entre os capitalistas existia uma espécie de laranja podre, mas o mundo dos negócios não era uma podridão completa.

Aos 18 anos li o Manifesto Comunista – arrogantes juvenis, eu confesso, sim, sou leitor tardio! – e observei a natureza de classe do Estado: antes que representante do bem comum destinado a disciplinar o instinto animal das pessoas (“o homem é o lobo do homem”) o Estado era um Estado de Classe, capitalista. As ilusões liberais terminaram. Ainda assim, durante um tempo ainda sentia a falta de um exemplo conclusivo, uma prova final, um caso verdadeiramente exemplar para comprovar a verdade anunciada por Marx.

Quando o sistema petucano ruiu no terreno moral com a delação da Odebrecht e as demais construtoras, aquele fantasma juvenil ganhou força atávica. Lá estava a laranja podre para salvar os demais burgueses. O político-juiz Sérgio Moro é discípulo fiel do mito liberal quando registra a captura do Estado por uma organização criminosa. Antes dele, os tucanos espetavam os petistas indicando o “aparelhamento do Estado” como a causa principal da corrupção estatal. Neste contexto, o Estado seria neutro, paira acima das classes sociais e representa o bem comum, razão pela qual não poderia ter “dono”, exclusividade de classe e menos ainda permitir seu controle criminoso.

Nesta semana ajustei conta definitiva com meus fantasmas. A prova cabal que minha dúvida juvenil esperava, finalmente apareceu. O Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, escreveu artigo justificando o acordo de delação premiada com um tal Joesley, o dono da JBS. Rodrigo Janot, aquele sujeito sereno, aparentemente centrado, distante das paixões mundanas e da formação marxiana de compreender o Estado, declara que o acordo de delação considerado pela opinião pública demasiadamente generoso para o capitalista – pois estaria sugerindo que o crime, de fato, compensa – afirmou em artigo publicado num jornal paulista que “desafortunadamente, o caminho tradicional para a aplicação da lei penal tem-se mostrado ineficaz e instrumento de impunidade”.

Bueno, se o caminho tradicional para aplicação da lei penal é ineficaz e, ademais, é instrumento de impunidade, estamos diante de uma confissão extraordinária: os tribunais salvam os criminosos de todo tipo, especialmente se estes forem ricos e poderosos. Limitam-se, na prática, a punir as classes subalternas. As cadeias estão repletas de negros e pobres, 40% deles sem julgamento. É uma justiça de classe, sem dúvida!

O delator mais famoso do país, Joesley Batista, não é empreiteiro. Ao contrário, era a personificação do orgulho burguês que justifica o bordão da Globo: o agro é a riqueza do Brasil. O agro é pop, é tech, é tudo. Ademais, Joesley dirige um grupo que supera o mundo podre das empreiteiras pois faturava R$ 170 bilhões por ano explorando 230 mil trabalhadores com filiais em mais de 20 países. É o segundo maior grupo do país, perdendo apenas para a Petrobrás. Um peixe enorme. E, cá com meus botões – repito para minha consciência juvenil – “ele não era empreiteiro”. Ao contrário da ideologia liberal, Joesley não cresceu por mérito próprio, mas, sobretudo, porque o Estado – via BNDES – turbinou sua empresa com meros 12 bilhões de reais nos governos petistas. Enfim, o espírito empreendedor, meritocrático, somente funciona com aquela perniciosa intervenção do Estado.

Liberado pela justiça, Joesley pagou uma multinha de 225 milhões por ter corrompido 1.829 candidatos de 28 partidos políticos dos quais 167 foram eleitos. Ele tinha sob controle mais deputados e senadores que a bancada da bola, da bala e evangélica. Empresário eficaz, elegeu ainda 28 senadores e 16 governadores. O executivo da JBS, Ricardo Saud, mão direita do capitalista Joesley, alegou em delação que também destinava propina para candidatos menores, que, cinicamente, chamou de “reservatório de boa vontade”.

Ninguém sabe o dia de amanhã, entende? O delator sabe que, se necessário, a burguesia brasileira lançará mão de um político medíocre para governar a República Rentista, razão pela qual um capitalista de visão também gasta algum com figuras do baixo clero.

Após a delação, Joesley voou para seu apartamento em New York. As ações da JBS perderam até agora 7 bilhões na bolsa de valores mas tem tudo para recuperar em breve seu valor. Ações sobem, descem e, neste movimento, engordam contas bancárias. Eu sei que Joesley não é o único capitalista corrupto e seria injusto esquecer Eike Batista, aquele mesmo que ganhou capas de revistas no Brasil como um exemplo de homem vitorioso, um dos mais ricos do mundo num país em que 82% dos trabalhadores ganham até três salários mínimos e, agora, possui 21 milhões de desempregados. Eike também contou com os fartos recursos do BNDES para fundar seu antigo império e afirmar sua capacidade empresarial.

A delação de Joesley pode, no entanto, ser superada pela eventual delação de Palocci. Muitos especulam que o ex-ministro da Fazenda do Lula poderia delatar as conexões entre o petucanismo e o sistema bancário. Banqueiros passam inadvertidos pelas crises e pela política desde o século 12. Eles atuam e corrompem, especulam de todas as formas, roubam, manipulam, mandam matar, elegem e destituem em silêncio como se, de fato, não existissem.

Estão protegidos pela aura da respeitabilidade ideologicamente construída para manter os segredos do Banco Central longe da atenção pública. Os banqueiros são discretos. Henrique Meireles, por exemplo, antes de ser ministro de Temer, atuou entre 2012 a 2016 como presidente do conselho da J&F - o grupo controlador da JBS - e, mesmo com faro fino para operações suculentas e contratado para cuidar precisamente das estruturas de governança da empresa, jamais suspeitou da compra de quase 2.000 políticos pelo grupo J&S. Nunca viu ou ouviu algo a respeito.

Nosso tempo é pródigo em lições. A moral burguesa exibida com convicção pelo político vulgar não resiste semana e ainda reputações aparentemente sólidas são destruídas em questão de dias ou mesmo horas. Capitalistas cultivados anos a fio como exemplar de mérito e competência pelo “jornalismo”, caem em desgraça pública e a roleta russa não respeita juiz, conselheiro de tribunal de contas, latifundiário ou banqueiro, mesmo que a desgraça pessoal mantenha intacta suas contas bancárias com bilhões roubados num seguro paraíso fiscal.

É época particularmente valiosa para o estudo dos clássicos, especialmente, Marx. Ainda não vivemos, é verdade, na lógica das situações extremas, mas vamos rapidamente nesta direção. Joesley é personagem que faltou quando eu apenas despertava para a política e, timidamente, iniciava os meus estudos. A propósito, o Estado foi considerado por Marx como "o comitê de negócios da burguesia". Ludovico Silva já alertou para o estilo literário de Marx, repleto de metáforas teológicas e rara beleza na exposição de sua teoria.

No entanto, diante dos fatos, não seria errôneo ou grosseria afirmar que hoje aquele "comitê" se assemelha muito mais a uma enorme organização criminosa cuja compreensão está ao alcance de pessoas que nunca abriram nem jamais abrirão uma única página do teórico comunista alemão.


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O assalto final

Nildo Ouriques é economista e professor da UFSC.
Blog: http://nildouriques.blogspot.com.br/ 

Comentários   

0 #1 otimorudoulph 15-06-2017 18:15
realmente otimo artigo para expressar ideias que funcionam
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