Correio da Cidadania

Os dois becos sem saída (2)

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Para chegar ao segundo beco, precisamos achar uma pequena portinhola no primeiro, descrito na primeira parte, entrar, engatinhar e se deparar com mais um beco. Se o primeiro dizia respeito à ideia de falta de alternativa à estrutura de poder da "democracia liberal", o segundo beco diz respeito a sua subestrutura "organização de esquerda" (sim, fazemos parte, gostemos ou não, do resto do mundo).

Relações de confianças, consensos (quer os imediatos, autênticos e sinceros, quer os construídos por um misto de coerção, coação e ação do tempo para levar à desistência), fisiologismos, desconfiança com os demais, a tal demofobia etc., constroem um pequeno núcleo duro em todas as organizações de esquerda que conheci. Esse núcleo, a aristocracia (não) revolucionária, se intensifica pela ação dos poderes constituídos (parlamento, registro partidário, verba disso e daquilo, mesmo que cotizada pelos participantes etc.), mas está entre nós mesmos, em organizações que se gabam de serem imunes a tais poderes.

Eu não quero me alongar muito na descrição, por favor, mas elas existem e estão supranorma e supradiscussão nas organizações.

Os grupos majoritários dessas aristocracias mantêm práticas autoritaríssimas com os grupos minoritários. Grandes senhores perseguem pequenos senhores. Mas, e isso é o curioso, os pequenos senhores criticam os grandes senhores pelo que eles fazem, mas não pela perseguição que sofrem.

De alguma forma um tanto soturna, o hegemonismo dos grandes fortalece um sectarismo dos pequenos. Esse sectarismo é embalado com uma promessa ameaçadora: "Ah, quando eu for grande". Esse desejo de vingança acaba por ficar visível nas declarações dos próprios grupos pequenos.

Não vou nem citar os minoritários que, quando sob a perseguição teoricamente mais profunda, isto é, o banimento, a expulsão, repelem dizendo que quando vencerem os banidores serão banidos. Isso é o de menos e vem, inclusive, de filiados comuns e não da aristocracia partidária.

O que me impressiona são os casos em que os minoritários recusam-se a sequer comentar a estrutura de autoritarismo, fingir que elas simplesmente não existem. Aqui, vale um exemplo.

Em uma corrente de esquerda de um partido órfão do PT, é comum a seguinte frase: "não é uma questão de método, é uma questão de conteúdo". E, ainda, frases que afirmam, às vezes por vias transversas, às vezes de forma bem direta, que discutir método atrapalha a discussão de conteúdo.

O que isso nos indica? Que o que chamamos de "espaços em disputa" na esquerda são um jogo, uma brincadeira de gangorra, um grupo está acima e age de determinada forma contra o grupo de baixo, mas tudo está autorizado pelo desejo do grupo de baixo fazer o mesmo quando "o jogo virar" e eles estiverem em cima.

Como a prática de decidir algo de forma autoritária tem o fabuloso apelido de "rodo", eu desenhei uma certa imagem, quase uma piada. A esquerda, enquanto ecossistema político, é como aquela Olimpíadas do Faustão em que duas pessoas subiam em uma plataforma construída em cima de uma piscina com cotonetes gigantes e ficavam se empurrando até um cair na piscina. Só que não são cotonetes, são rodos.

Mas a coisa pode ser muuuito pior. Uma parcela da esquerda discute, sim, método de decisão democrática, mesmo que muitas vezes de forma superficial. E mesmo essa parcela às vezes chega ao poder, por que não? Inclusive, o discurso bonito de que está se lutando por um método mais democrático pode ser efetivo entre os setores sociais que compõem a disputa pelo espaço no dia a dia. E aí costuma vir o pior dos pesadelos.

Já é terrivelmente clichê, mas vou citar. Há uma piada sobre a União Soviética sob o stalinismo que segue mais ou menos assim: Stálin chega para dar uma palestra em uma escola, um aluno se levanta e faz um monte de críticas contra ele. No dia seguinte, todos estão surpresos porque o aluno foi à escola, todos imaginávamos que nunca mais o veriam. Aí, um amigo vai conversar com ele e diz "você está louco! Criticar Stálin assim! Você vai acabar morto!". No dia seguinte, é o amigo que não aparece na escola.



Em resumo, a repressão perfeita é aquela que não pode ser sequer afirmada (qualquer semelhança com a conclusão sobre o texto do presidencialismo de coalizão, da primeira parte, não é coincidência). Ela tem que funcionar de forma completamente invisível para que jamais seja discutida e, portanto, permeada de alguma espécie de limite ou encontrar resistências.

Em outras palavras, a forma repressão-expulsão não é a única forma de autoritarismo possível. A principal forma de reprimir qualquer propensão ao horizontalismo é escamotear um horizontalismo entre práticas autoritárias. É nesse momento que a aristocracia partidária tem seu gozo máximo: ela se torna invisível e protegida por completo. E voltamos ao início do texto: há uma crueldade adicional em fingir liberdade de escolha em uma situação absolutamente imposta

Muitos pequenos detalhes, quando somados, ajudam a construir a hegemonia perfeita. Uma das mais clássicas, das mais típicas, é criar extensas discussões políticas "de conjuntura", cinicamente chamadas de "formação política", antes de autorizar uma pessoa a participar do processo decisório. Isso cria um certo filtro entre os "bárbaros incontroláveis" e os que estão aptos a ingressar nos quadros subalternos da aristocracia partidária e subir a escada pelo misto de conchavos e meritocracias informais. Em outras palavras, qualquer pessoa que venha a ameaçar a estrutura de poder vigente se cansa e abandona.

É o velho delírio stalinista de "revogar o povo". Ou, ainda, outra das invenções stalinistas, "todos podem escolher, votar em quem quiserem, dizer o que quiserem desde que escolham certo, votem em mim e me façam apenas elogios”.

É quase um batismo militar de militância, bota o recruta sobre alguma forma de provação física e os que duram certo tempo são ovacionados e se tornam soldados. Lembra, em muitos sentidos, aquela cena do Clube da Luta, onde Tyler Durden obriga as pessoas a ficarem em pé, paradas em frente à porta, sem comer por dias, para, só assim, poder entrar no "Project Mayhem". Aquelas duas horinhas de análise de conjuntura antes de se poder começar a discutir o que se deve fazer no mundo prático cumprem a mesma função, de filtrar iniciados.

E, claro, os grandes espaços de decisão pelas bases que são obrigatórios (os pequenos e não obrigatórios muitas vezes simplesmente nunca ocorrem), aqueles que definem quem derrubará quem na Olimpíada dos Rodos, são repletos de discussões inúteis e têm pouco da vida prática da organização ou frente. Em grande sentido, as discussões são muito intensas, mas sob margens muito estreitas.

Vale a citação a uma das frases mais famosas de Chomsky: "A forma esperta de manter as pessoas passivas e obedientes é limitar o espectro das opiniões ACEITÁVEIS, mas permitir debates acalorados dentro desse espectro, e até encorajar as visões mais críticas e sectárias. Isso dá às pessoas um senso de que existe livre pensamento, enquanto, a todo tempo, os pressupostos do sistema estão sendo reforçados pelos limites do alcance do debate de ideias".

Em outras palavras, o debate acalorado sobre pontos muito similares (candidatura A vs candidatura B, sendo o exemplo mais óbvio entre os órfãos do PT impedem que haja condições para debater temas mais disruptivos, como programa ou mesmo o método de organização.

E, misturando com a parte 1, experimente discutir qualquer coisa que ameace a manutenção do elemento constitutivo (eleitoralismo ou o não-eleitoralismo do partido, ou do fascínio estético com o estado dos grupos que citei).

Para concluir a tristeza, me parece que mesmo quem critica a fukuyamização da esquerda, como estou fazendo nesse texto, parte para uma jihad insana, linguística e semiestética, muitas vezes. O exemplo mais claro, para mim, aconteceu no recente caso da Venezuela.
Maduro tem se recusado a fazer um plebiscito revogatório, um relativo avanço do período chavista, visto que reforça a ideia de soberania popular (apesar de alguém poder criticar, não sem razão, que seria uma espécie de anestesia da falta de soberania popular plena, ou seja, da democracia direta). Esse plebiscito poderia retirar Maduro da presidência.

Nesse cenário, o congresso, dominado pela direita cada vez mais bizarra (não sem coincidência, o período PT chocou a direita mais bizarra no lado de cá da fronteira) declarou vaga a presidência. O Supremo local, dominado pelo chavismo, fechou o parlamento. Surgiram diversos críticos à medida. E, claro, surgiram diversas pessoas a criticar, por mais que não gostem do Maduro, a fukuyamização da esquerda, que não devemos defender por defender a existência de parlamentos. Só que Maduro não ofereceu uma alternativa mais democrática, ele estava, inclusive, fugindo de um teste de opinião pública. Ele não iria abrir o governo às comunas... A coisa se torna trágica quando Maduro diz que o Supremo exagerou e este voltou atrás.

Não estou afirmando que a crítica ao excesso de apego à existência do parlamento é incorreta, apenas que está terrivelmente incompleta e, assim, não avança o debate. Qual a incompletude? A incompletude é resultado da própria fukuyamização da esquerda. Isto é, nossa incapacidade de pensar além da democracia liberal.

Para defender o fim de um parlamento, tem de ser oferecido um regime MELHOR, mais democrático e não acabar a frase abruptamente. "Não devemos defender parlamentos burgueses". Sim, mas defenderemos o que para substituí-lo? Cri... Cri... Cri.... Não acho que ninguém estivesse defendendo a manutenção do Supremo como parlamento, mas como não indicávamos nada como substituto era o que parecia.

O que fazer nesse cenário? Sei lá. Experimente dar uma sacudida nas coisas. Questionar uns preceitos mais básicos, como "por que disputamos eleições para ganhar/para não-ganhar(dependendo do grupamento)?". Questionar quem decide o que, por que e como. Ter menos desconfiança com o colega da base de uma outra organização e mais desconfiança da direção da sua própria organização. Afirmar, todo dia, que a república em que vivemos é uma forma insuficiente de democracia e que ela deve ser substituída por espaços mais democráticos. Começar a elucubrar como seriam tais espaços.

Mas muito mais. Começar a construir tais espaços, experimentar formas diferentes, verificar, com os casos práticos, como as decisões foram tomadas. Ver se há padrões. Alguns serão muito óbvios, sobre como, por exemplo, a maioria das decisões foi descrita por vozes mais graves e defendida por peles mais claras. Outros serão mais sutis, como há quanto tempo cada um está em uma organização (e isso não será linear, fundadores não necessariamente são os mais fortes, apenas se tiverem sido brutalmente repressores, o mais natural é que uma organização tenha influxos em resposta a processos sociais externos, como Junho de 2013 ou eleições específicas). Outros, eu sequer consigo imaginar, serão especificidades imprevistas que nos eduquem melhor sobre a diversidade dos trabalhadores que queremos ver integrados em nossas organizações.

E não adianta ficar esperançoso rapidamente com o primeiro lugar do tipo que vier a ser construído. Essa vibe otimista da esquerda, essa mentira social de que a revolução está na próxima esquina, é fadada ao fracasso, ao maior de todos: repetir as tragédias, sem parar.

Parte 1

Caio Almendra é advogado e membro do PSOL.

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