Correio da Cidadania

A história é a nosso respeito

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Não sou petista; nunca fui petista; militei lado a lado com o PT muito tempo, desde os anos 1980, fortalecendo as lutas sociais e combatendo a transição conservadora de Tancredo e Sarney. Votei e fiz campanha com entusiasmo para petistas desde 1985 (para lutadores valorosos como Maria Luiza Fontenele, Padre Haroldo e João Alfredo, entre outros) até 1989 - para Lula na campanha presidencial, mas já com muitas reservas. Depois daí nada seria como antes! As campanhas eleitorais petistas foram rápida e crescentemente perdendo o vigor mobilizador, questionador e transformador.

Tenho votado nulo nos segundos turnos; tenho sido crítico intransigente dos governos petistas. Acredito que eles cumprem um papel perigoso na medida em que confundem, manipulam, desmobilizam os trabalhadores, iludem-nos, servem ao capital, estão envolvidos e comprometidos ética e politicamente com o sistema de dominação. a exemplo de seus adversários, com algumas pontuais diferenças.

Não sou apologista da democracia, não acredito na democracia brasileira tal como ela se apresenta, mas também não compreendo a democracia como um objeto, uma coisa de forma e estrutura dadas e imutáveis. A democracia é uma construção e um exercício da práxis e, como tal, elemento necessário à luta anticapitalista. A depender da nossa pressão, a democracia pode ser mais ou menos ampla, mais ou menos refratária aos de baixo, contudo, não se pode ter ilusões, a democracia tem seus limites, impõe limites à luta de classes porque, em última instância, pertence à ordem hegemônica.

Acredito que a democracia brasileira precisa ser cotidianamente consolidada, que ela pode ser ampliada, levada adiante pelas lutas sociais. Do mesmo modo, não sou ardoroso defensor do tal do Estado de Direito, muito ao contrário. Mas, acredito que essa legítima descrença e a posição crítica de princípio em relação à democracia burguesa e ao Estado de Direito não nos levarão longe se não se transformarem numa posição e atitudes políticas concretas adequadas ao enfrentamento das circunstâncias políticas presentes.

Essas circunstâncias, por sua vez, são obra da práxis dos sujeitos e se produzem na dinâmica complexa da produção/reprodução social da existência, a envolver toda uma cadeia de atores e agências como os partidos, o Estado e seus aparatos ideológicos e repressivos, o mercado, meios de comunicação etc., e constituindo processos exteriores e anteriores aos indivíduos, independentes das nossas vontades individuais.

 

Mudança de patamar

É verdade: vivenciamos um atraso absurdo no sentido de que somos conclamados a travar uma luta extremamente defensiva que não esperávamos ter de travar agora, pois gostaríamos de estar em lutas maiores, disputando coisas mais elevadas e não fazendo um esforço hercúleo para tentar miseravelmente assegurar essa tosca democracia, esse caricato Estado de Direito. Porém, infelizmente, este é o estágio das lutas em nosso país!

Também é certo que para essa agenda atrasada concorreram os 13 anos de governos federais petistas transcorridos em que, através da colaboração de classes e da adoção das práticas corriqueiras da política oficial brasileira, daquilo que ela tem de pior, aqueles governos contribuíram para colocar as esquerdas, como um todo, numa posição defensiva, encurraladas numa conjuntura em que não resta outra escolha a não ser enfrentar a questão imediatamente posta.


Neste momento, não se trata de defender o governo Dilma, de aceitar um debate inócuo em que se defende um lado apontando os ilícitos dos adversários, desde sempre atolados em tramoias cabeludas. Tampouco será suficiente a esta altura se apoiar em argumentos como o de que o PT não é o único envolvido nas irregularidades em investigação e não foi ele quem inaugurou a corrupção no Brasil. Que sejam todos investigados e punidos rigorosamente!

Acontece, entretanto, que elementos banais da institucionalidade - institucionalidade burguesa é certo, mas que para nós, mais que para eles, é cara neste momento - não podemos deixar que sejam simplesmente, em nome de anseios e caprichos da oposição de direita, destruídos.
Recusei-me por muito tempo a aceitar a ideia de que havia um golpe em curso e acho que estava certo. Inicialmente, o que se tinha eram manobras, articulações de um núcleo vinculado ao PSDB e outras forças da oposição de direita que queriam ocupar o lugar conquistado pelo PT numa votação apertada.

 

Ao mesmo tempo, o mote de golpe funcionava para o PT como um modo de passar a ideia de vítima da perseguição preconceituosa das elites; que fazia um governo progressista, cujas ações incomodavam os poderosos, quando se sabia que as principais representações do bloco no poder (bancos, agronegócio, setor industrial, mesmo com a diminuição dos investimentos em infraestrutura) estavam satisfeitíssimas com os feitos da presidente Dilma.

 

Noutras palavras, não havia nenhuma insatisfação de fundo dos grandes capitalistas com o modo petista de governar, até por ser realizado por figuras cujas campanhas eleitorais haviam sido financiadas por aqueles mesmos capitalistas. O PT nunca traiu seus financiadores, muito ao contrário.

 

A própria presidente Dilma, desde o início deste seu segundo mandato, quando se acirrou a crise econômica, adotou todas as medidas pró-capital para enfrentar a crise, inclusive arrochando o quanto pode o nó da corda que envolve o pescoço dos trabalhadores e continua a fazê-lo. Portanto, não fazia o menor sentido se falar em golpe, chamar de golpe as manobras do PSDB, inclusive porque também as forças armadas estavam quietas e fiéis ao governo.

 

Pior que a encomenda


No entanto, as movimentações da oposição de direita atravessaram todo o ano de 2015 articulando-se no Congresso, confabulando com empresários e promovendo atos de perseguição e hostilização de lideranças sociais e figuras progressistas em espaços públicos, aeroportos, universidades etc., como foi o caso do que se fez contra João Pedro Stédile no aeroporto de Fortaleza, com as ameaças ao professor Mauro Iasi da UFRJ, candidato do PCB nas eleições presidenciais de 2014, e com o compositor e escritor Chico Buarque, dentre outras ações.

A oposição de direita trabalhou no sentido de despertar, principalmente nas classes médias, setor em que de fato se encontra o núcleo das insatisfações em relação ao governo, os sentimentos mais retrógrados, que estavam adormecidos. Devidamente alimentados por uma campanha midiática abertamente interessada, esses sentimentos foram se ampliando e sua voz se amplificando, passando a constituir poderoso respaldo às articulações conservadoras no Congresso e no judiciário.


A campanha conservadora contra o governo não cresce gratuitamente nem é fruto apenas da “perversidade” dos adversários; ela explora um erro grave dos governos Lula da Silva e Dilma Rousseff, que foi a adoção do modus operandi da política oficial, deixando nela seus rastros, o que, infelizmente, virou rotina também para a esquerda do governo; ela capitaliza em cima da crise econômica e turbina a insatisfação das classes médias contra os governos que se empenharam na “bolsa família” e na “bolsa banqueiro” e deram de ombros para seus anseios, tratando-os como caprichos mesquinhos e fúteis.


Pois bem, o que antes eram apenas manobras do PSDB, que não representavam necessariamente as aspirações das principais representações do bloco no poder, rompeu a barreira, como a lama suja e tóxica da Samarco, e provocaram uma instabilidade política inaudita, jogando o governo contra as cordas e tentando evidenciar para os grandes senhores sua incapacidade de assegurar a governança. Isso de uma tal maneira que, justamente as forças econômicas dominantes, avessas a turbulências, que prezam pela ordem para que a dinâmica econômica flua e seus lucros sejam assegurados numa ordem política legitimada, entraram em alerta e passaram a considerar a possibilidade de uma mudança que retomasse a estabilidade política e social para a tranquila realização de seus interesses econômicos.

Para o capital a coisa funciona assim: não importa a cor do partido, mas a capacidade de ele lhe assegurar o funcionamento regular da ordem, a realização e a legitimação de seus lucros. Se o desenrolar dos acontecimentos políticos indicarem a necessidade de destronar a presidente Dilma Rousseff, sua serva fiel, por outra figura ou partido menos desgastado, assim será feito e a fila andará. O problema, que faz com que as principais representações capitalistas se ponham em stand by, é que do lado tucano e no Congresso figuras como Aécio, Alckmin, Serra, Cunha, o vice Temer, Calheiros, Sarney, Maluf têm também péssima reputação e não podem ser vistas, sem muita desconfiança, como alternativas para assegurar estabilidade.

O fato é que as manobras do PSDB ganharam volume nas ruas, ecoaram estridentemente na grande mídia, lograram êxito em determinadas manobras jurídicas espetacularizadas, como nas do juiz Moro que, inclusive, teve de pedir desculpas formalmente ao STF pelos “excessos” cometidos, e chegaram com força dentro do Congresso, com maioria suficiente para aprovar o impedimento do mandato da presidente Dilma Rousseff. Acontece que os encaminhamentos dados pela maioria política de direita no Congresso, que conta com o respaldo das mobilizações conservadoras das ruas, da propaganda engajada das grandes corporações da comunicação e do auxílio jurídico-político de segmentos conservadores, estão seguindo um caminho absurdamente ilegal, sem fundamento jurídico. Eles centram sua argumentação para o impedimento da presidente Dilma nas chamadas “pedaladas fiscais”, que são irregularidades, mas não se configuram juridicamente, segundo a legislação brasileira, em crime de responsabilidade, logo, não podem fundamentar um impeachment presidencial.

 

Sim, é golpe


A oposição de direita se organizou e atuou para construir um ambiente favorável a um golpe travestido na aparência de uma articulação legítima que estaria seguindo os trâmites democráticos formais, afinal, não se tem a utilização da força, se desenrola dentro do parlamento e está sendo conduzido pelos “representantes do povo”.


O que está por detrás dessas manobras, neste atual momento conjuntural, é efetivamente um golpe. Não um golpe contra um governo socialista, contra sequer um governo reformista; não se trata de uma ação comandada pelas forças armadas, mas um golpe realizado por segmentos atrasados que querem recuperar o controle político, o controle dos ministérios, do orçamento, o controle dos fluxos de dinheiro, do fundo público, operacionalizado por uma maioria política do Congresso e sem fundamento jurídico.


No nosso modo de entender, as novas circunstâncias criam um cenário em que realmente faz sentido a palavra golpe e cria uma nova situação política que não é mais apenas uma disputa entre PT e PSDB, não é mais a mesma simples polarização vista nas disputas eleitorais, na qual recusamos nos encerrar. Ela ganhou uma complexidade e amplitude que passou a exigir excepcionalmente o apoio de toda a esquerda não em defesa do governo, mas efetivamente contra o golpe da direita.


O cenário não é mais, como nas disputas eleitorais, ponto alto da fetichização da democracia, de uma mera disputa entre planos de governo semelhantes do PT e do PSDB; agora são travadas nas ruas e nos mais diversos espaços sociais verdadeiras batalhas de valores, concepções e práticas ideológicas, políticas, culturais que adquiriram nos dias de hoje um vulto enorme, amplo, vasto, terrivelmente ameaçador, pois a vitória desse golpe criará condições para um tsunami reacionário que não pretende se limitar à esfera da política oficial, mas tem um desenho transbordante para as mais diversas esferas da vida cotidiana.


O discurso de que PT e PSDB são iguais, em grande medida correto, fundamentalmente acertado, que a oposição de esquerda vinha utilizando, tinha a função de desmistificar os governos petistas, outrora em alta, de demonstrar para os desavisados que, no fundamental, ambos cumprem papéis políticos semelhantes. Contudo, sabemos que o PT cumpre seu papel de funcionário servil ao capital de uma maneira particular, como o PSDB jamais cumpriria, pois o PT tem uma história peculiar, uma base social popular e ainda tem ligação orgânica com movimentos sociais que o PSDB nunca teve nem jamais terá. Por isso o PT foi uma alternativa política aceita e endossada pelas forças dominantes já em 2002, pois conseguia agradar a gregos e baianos dentro do compromisso assumido com os chamados credores e dava um verniz social à dominação capitalista.


Sabemos que o PT governa para o capital, mas o faz no limite de não perder totalmente aquilo que o distingue do PSDB e dos demais partidos da ordem. Portanto, o PT vive uma tensão entre não destruir totalmente sua ligação com os movimentos sociais e não apagar de todo sua história combativa e, ao mesmo tempo, cumprir os compromissos da gerência do capital. Por isso, a implementação das medidas austeras pró-capital que são tomadas pelo PT enfrentam tensões e limites – por mais que esses limites sejam elásticos e tenham sido esticados demais - que os outros partidos simplesmente desconhecem. Noutras palavras, quando se enfatizam elementos de identidade entre PT e PSDB, não se pode negar algumas diferenças essenciais entre eles, diferenças essas que agora ganham relevo.

 

Conclusão?


Aonde essa discussão pretende chegar? No seguinte ponto: a vitória da onda reacionária ameaça trazer consigo um recrudescimento conservador avassalador e a realização de contrarreformas de fazer a política de Dilma Rousseff virar fichinha. Contra essa projeção, outros setores de esquerda considerados mais radicais podem objetar com a afirmação de que todos eles cumprem da mesma forma o mesmo papel servil ao capital.

 

É aí, portanto, que encontramos uma pequena, mas significativa diferença entre o atual governo e o que pode advir com a vitória do golpe: a onda reacionária que se alevantou não traz consigo apenas a ideia das privatizações, que Dilma é capaz de fazer e tem feito; de retirar direitos, que Dilma é capaz de retirar e tem retirado; de cortar gastos sociais, que Dilma é capaz de cortar e tem cortado.

 

A onda reacionária, amparada nos setores extremamente atrasados e em valores fascistas gritados a plenos pulmões nas ruas traz consigo coisas como a pena de morte, valores como o ensaiado no episódio da “cura gay” e coisas semelhantes porque, como já esboçamos, ela não está limitada a certas medidas de um programa estritamente econômico. Ela, até por ter provocado de modo ilimitado toda sorte de concepções obscuras e reacionárias das classes médias, por ter dado vazão a ideais autoritários, de repressão, de assassinatos, de violência no campo contra trabalhadores, ideais racistas, homofóbicos, contra pobres e trabalhadores, exatamente por isso, ela representa uma vingança reacionária avassaladora de caráter econômico e político, mas também ideológico, cultural, global que representa um retrocesso absurdo e inaceitável e não atinge apenas o governo ou o PT, mas todos nós comunistas, socialistas, anarquistas, progressistas, democratas etc.


Por fim, acreditamos que a situação complexa e ameaçadora que atravessamos está a exigir uma postura mais refinada e criteriosa do que a simples afirmação de constatações que, embora tenham elementos de verdade, não se mostram, neste momento, suficientes: que PT e PSDB são iguais e que as disputas atuais são a simples expressão da polarização das duas siglas e, portanto, “eles que são brancos que se entendam”; que os governos do PT que criaram toda a confusão têm de sair dela sozinhos, pois quem “pariu Mateus que o balance”; que a defesa da democracia e do Estado de Direito é uma luta burguesa e socialistas não devem se ocupar dela, especialmente porque a democracia brasileira é uma farsa indefensável.


Aos que cruzam os braços, parafraseando o velho Marx, diríamos: a história é a nosso respeito!

 

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Justino de Sousa Junior é professor do Programa de Pós-graduação em Educação da UFC.

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