Burguesia no ataque: é hora do contra-ataque

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Carlos Alberto Bello
17/04/2015

 

 

Parece evidente que vivemos uma superposição de crises: socioeconômica (baixo crescimento da renda e emprego, inflação, déficit fiscal e externo), ético-moral (corrupção partidária e estatal, e desvio de Dilma frente aos compromissos de campanha) e política (entre governo e partidos, especialmente no Congresso, e da sociedade com os políticos - déficit de representação).

 

Será que a superposição de crises é o que torna o quadro mais grave? Parece óbvio dizer que sim, mas é preciso qualificar se as eventuais diferenças e hierarquias entre as diversas crises seriam relevantes para explicar essa situação frente a outros momentos de crise do lulismo (de 2003 para cá).  Parece-me que a crise socioeconômica é a mais relevante (considerando inclusive que ela vem desde 2013, das jornadas de junho), acrescentando que, ao contrário da crise de 2003, a crise atual não pode ser atribuída a um governo precedente.

 

Cabe observar que houve momentos de forte crise política, como a revelação do chamado mensalão em 2005, na esteira do qual foram afastadas figuras do núcleo do governo. Entretanto, na ausência de uma crise socioeconômica (ao contrário, a economia começava um ciclo de crescimento), não houve tanta queda de popularidade nem derrotas tão significativas do governo no Congresso como atualmente. Faz sentido atribuir primazia à crise socioeconômica, secundada pela crise ética-moral (com a novidade da crise à esquerda), como fator decisivo da queda de popularidade de Dilma.

 

Esta queda pode estar tornando desafiar o governo uma atitude promissora, seja para uma futura eleição (para os políticos), seja para conseguir vantagens do Estado agora (para os empresários, através de leis como a da terceirização ou da atuação de órgãos públicos, na qual os políticos também estão interessados). Noutras palavras, agora parece haver maiores perspectivas de vitória eleitoral (do PMDB e de outros partidos, em 2016 e 2018) e de avanço do poder da burguesia, ambos em detrimento do governo Dilma, pois estariam sendo visualizados ganhos que superariam os ganhos que tais grupos vinham obtendo ou esperavam obter em suas relações com este mesmo governo.

 

Uma das questões mais complexas desses últimos anos tem sido entender as relações entre os diversos segmentos da burguesia e o lulismo. Há sinais de que os únicos segmentos realmente poderosos dessa classe sãos os interesses ligados a grandes empresas atuantes nas finanças (instituições financeiras e rentistas), na construção civil (empreiteiras), no agronegócio e na mídia. Sinais do poderio deles, para além da riqueza, são o apoio da mídia e de muitos parlamentares aos seus interesses. O lulismo estabeleceu diversos acordos com tais segmentos, desde a carta ao povo brasileiro (para as finanças), passando pela contenção da reforma agrária e aumento de créditos (agronegócio), pela expansão da infraestrutura e apoio internacional (empreiteiras) e pela manutenção do esquema geral de concessões da mídia (que também interessa muito a diversos políticos).

 

Entretanto, não acredito que se possa dizer que tais segmentos apoiaram publicamente o lulismo. Não é pouco financiar as campanhas, mas não é um apoio decidido como seria tentar diminuir as resistências da classe média e de segmentos burgueses ao lulismo ou ainda um apoio claro, como na campanha de 1989 e de 1994 a 2002, sempre contra Lula. Além da preferência por outros partidos, a história petista (hostilidade à burguesia) e a ausência de comprometimento do lulismo com o avanço de reformas neoliberais (como uma maior desregulamentação do trabalho, a exemplo da recente lei de terceirização, além de mais privatizações e reforma tributária), tendiam a bloquear um apoio público ao governo, opção que deve ter se fortalecido com o avanço da popularidade do lulismo junto aos trabalhadores mais pobres, a partir de 2006.

 

Não creio que a razão de não haver nem apoio nem recusa explícita ao lulismo seja apenas a adesão plena ao ideário neoliberal e/ou o preconceito de classe, como talvez seja mais comum ocorrer nas classes médias e pequeno empresariado. Ao grande capital pode ter parecido mais racional aproveitar esta expressiva ojeriza ao lulismo para, além de estar sempre a postos para bloquear alguma ação mais ousada (como as que constavam do ideário petista anterior), pressionar o governo para obter algum ganho mais particular ou setorial. Afinal, a pressão midiática e as ações da oposição mantiveram o lulismo sob a ameaça de perder as eleições, mesmo nos melhores momentos de popularidade.

 

Em contraste, a burguesia industrial, na maioria dos setores enfraquecida pelo aumento das importações (e pelos juros altos que encarecem o investimento), seria talvez o segmento que gostaria de ter oferecido um apoio mais efetivo, se o lulismo promovesse uma política industrial capaz de fortalecer a competividade das empresas instaladas no Brasil. Embora haja quem acredite que o lulismo praticou em algum momento uma política neodesenvolvimentista, parece que o que ficou mais evidente foi um fortalecimento do mercado interno, e não da competividade das empresas, aqui e no exterior, em atividades que geram mais valor e melhores empregos. Há aqueles que acreditam que a burguesia interna deu apoio ao lulismo; do ponto de vista aqui exposto, não parece haver evidências de um apoio que fosse relevante junto a uma opinião pública refratária ao governo.

 

Como a tendência dos demais segmentos seria uma adesão plena ao ideário neoliberal, a eles se somando uma classe média socialmente influente sobre as classes populares, o lulismo teve de incrementar ações visando o apoio popular, que lhe propiciavam alguma autonomia frente à burguesia, mas ao mesmo tempo limitá-las de modo a pouco afetar, ou ameaçar afetar, à burguesia, a qual mantinha a pressão sobre o governo, pela lógica exposta acima. Parece claro que somente o crescimento econômico permitiria ao governo atuar para simultaneamente manter um amplo apoio popular e não desagradar à burguesia; assim, sua ausência seria o maior determinante desta crise atual.

 

Como nenhuma crise socioeconômica dessa magnitude e duração afetou o lulismo desde 2004, e como sua articulação à crise ético-moral levou a popularidade de Dilma a um nível muito baixo, facilitando uma maior liberdade de ação aos políticos, a perspectiva de um ataque da burguesia cresceu em muito. E ele tem sido incisivo, pois os decretos de corte dos direitos (de desempregados e pensionistas) e a lei de terceirização são inéditos, em termos de abrangência e intensidade dos prejuízos causados às classes populares.

 

Parece-me que os diversos segmentos ligados a estas classes só podem atuar de uma maneira: tentar um contra-ataque, pelas razões expostas abaixo. Primeiro, salientando que o lulismo se apoiou nos efeitos propiciados pelas medidas de apoio a tais classes e no crescimento econômico para obter apoio popular, mas este processo, se talvez tenha freado o avanço da pauta neoliberal, também permitiu ao lulismo deixar de implementar a maior parte do ideário petista (forma de se acomodar às pressões burguesas) e prosseguir com políticas neoliberais de FHC.  Além do enfraquecimento da indústria (base maior do sindicalismo) e do avanço das práticas e das ideias neoliberais no campo social e político desde FHC, o enfraquecimento dos movimentos sindicais e sociais mais organizados também se deveu ao fato de o lulismo se apoiar nos segmentos mais pauperizados, ao mesmo tempo pouco organizados politicamente e afastados do ideário petista. Somando isto ao fato de o lulismo atender em parte aos interesses dos trabalhadores (aumentando o salario mínimo e gastos sociais, além de haver maior crescimento da renda e do emprego) e de que boa parte das lideranças cultiva estreitas relações com a cúpula governamental, é possível entender como a grande maioria das entidades ligadas às classes populares não pressionou intensamente o governo para fazer avançar suas pautas, ao contrário da burguesia.

 

Tais entidades atuaram politicamente de modo pouco incisivo e/ou priorizaram tentativas de influenciar as ações do governo; é possível que estejam percebendo nesse momento que tais estratégias são insuficientes para fazer avançar suas pautas. Podem estar avaliando ter sido equivocado deixar de ter participação relevante nas jornadas de junho de 2013 e de buscar construir pautas conjuntas com as entidades mais críticas ao lulismo, mesmo mantendo divergências importantes com elas. É tarde para se aproximar desses grupos? Para lutar intensamente por suas pautas, mesmo que para isso tenham de criticar o governo? Este parece ser o contra-ataque possível; se continuar prevalecendo a defesa do governo, parece que a burguesia e os políticos vão nadar de braçada.

 

Carlos Alberto Bello é professor do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Campus Guarulhos. Pesquisador do Cenedic (Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania), da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP).

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