Política, manifestações e o pensamento conservador no Brasil (2)

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Sérgio Botton Barcellos
13/11/2014

 

 

No atual contexto e cultura política que vivemos no Brasil, e também no mundo, vem ganhando solo fértil, em meio a uma cultura de consumismo e individualismo exacerbado, diversas formas de manifestação de ódio e preconceito, que estão se (re)configurando no século 21, em meio às diversas possibilidades e à velocidade de transmissão de informações pelas redes sociais – o que prometia maior “aproximação” entre os (as) distantes.

 

Entretanto, é nesse espaço virtual que milhares de pessoas (algumas por meio de codinomes) ou grupos postam diariamente inúmeros comentários de inspiração racista, xenofóbica, homofóbica ou semelhante, em uma espécie de combate às formas de diferença. Uma espécie de “todo mundo posta, poucos leem, dialogam ou interpretam”.

 

O estímulo a esse tipo de pensamento preconceituoso e intolerante pode ser entendido como um dos instrumentos de legitimação de um projeto de poder político e econômico, não só aqui, como na Europa e outros lugares do mundo, que também é forjado por interesses concretos de vários grupos financeiros transnacionais (indústria armamentista, de medicamentos, extração de minerais, insumos agrícolas e alimentos etc.) em articulação com governos de roupagem de “esquerda” e direita.

 

Falso moralismo, frieza na concepção materialista da vida, consumismo e comunicação instantânea, em que se verbalizam inúmeras coisas, mas poucos se assumem e querem se responsabilizar. Exemplo disso é que muitos (as), ao cometerem um ato preconceituoso relativo à etnia, fisionomia, sexualidade, condição social e região do país em que se mora, logo em seguida, afirmam “não sou preconceituoso”, ou “não quis dizer isso” ou ainda “não foi a intenção”.

 

Também não é menos comum a pessoa assumir o “ato preconceituoso”, mas justificado pelo fato de ter sido uma “brincadeira” ou com algum tipo de “tradição natural”, como no exemplo de algumas torcidas de times de futebol ou após a reeleição da presidenta Dilma. Em suma, estamos vivendo intensamente um momento em que se reivindica o “negar por negar as coisas” e o “politicamente incorreto” tendo automatizado o comportamento paradoxal de comumente dissociar o que somos e os nossos atos da autoimagem social, que tenta criar sujeitos “ilibados”, bons moços e moças.

 

E, ao mesmo tempo em que é negado, pode ser todo dia visualizado nas redes sociais, por escrito ou em imagens. As informações estão circulando. Mas de que forma? Estimulando o quê? Com que tratamento político?

 

Ao super-expor o que certo deputado federal falou sobre “tudo de ruim aqui no Rio Grande, como gays, índios, negros etc.”, o mesmo teve a maior votação no estado. As defesas da homofobia e redução da maioridade penal cometidas por um deputado federal do Rio de Janeiro e o caso do pastor da “cura gay” foram amplamente denunciados e os mesmos obtiveram, respectivamente, a primeira e a terceira maior votação para deputado federal em seus estados. Teria outros diversos exemplos, mas por ora cito casos mais recentes.

 

Denunciar casos e figuras públicas com esse comportamento é mais do que necessário, até para expor valores entranhados em nossa sociedade e que são alicerces da desigualdade e da injustiça social. Contudo, há de se repensar de que forma está se politizando o debate nesse momento atual, ao apenas super-expor pessoas que cometem atos preconceituosos e conservadores, como símbolos de valores que estão aí incrustados e com capilaridade na nossa sociedade. Inclusive em alguns canais que se denominam alternativos, mas que estão mais interessados no número de “visualizações e likes” que podem gerar.  Isto é, uma contestação ou denúncia social, ao ser apenas exposta, sem problematização política, tende a ser convertida em “onda” ou “meme” de redes sociais, logo sendo naturalizada ou banalizada como “mais um caso” a ser assistido pelas mesmas redes sociais.

 

O fato é que, muitas vezes, sem perceber ou refletir, como forma de autoafirmação, reproduzimos e compomos o grupo que estimula a banalização e naturalização de toda uma cultura que milenarmente oprimiu e subjugou diferentes grupos sociais ao longo da história. Parece que temos um paradoxo político a ser pensado e em conjunto.

 

Esse paradoxo não pode ser delegado apenas a essa ou aquela pessoa, pois é uma questão nossa e vamos ter de refletir se também não colaboramos, quando na melhor das intenções cremos estar denunciando/compartilhando as mazelas que se assentam sobre um sistema social e econômico capitalista, que para existir depende da reafirmação constante de determinados valores em um período da história.

 

Em relação a isso, Boltanski e Chiapello, em o “Novo espírito do Capitalismo”, problematizam a ideologia que justifica o engajamento no capitalismo, descrevendo que o capitalismo é provavelmente a única, ou pelo menos a principal, forma histórica ordenadora de práticas coletivas perfeitamente desvinculadas da esfera moral, no sentido de encontrar sua finalidade em si mesma (a acumulação do capital como fim em si), e não por referência ao bem comum e aos interesses de um ser coletivo, tal como povo, Estado, classe social. A justificação do capitalismo, portanto, supõe referência a constructos de outra ordem, da qual derivam exigências complementares diferentes daquelas impostas pelo lucro. Para manter seu poder de mobilização, o capitalismo deve obter recursos fora de si mesmo, nas crenças que em determinado momento têm importante poder de persuasão, nas ideologias marcantes, inseridas no contexto cultural em que ele evolui (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2009, p. 53).

 

O que se ganhou em poder de consumo e acesso à informação parece que está se perdendo em humanidade, com o ódio e a banalização estimulados em meio ao atual sistema capitalista e ao projeto de ascensão ao governo de determinados grupos políticos. E uma das estratégias de consolidar essa situação é nos manter distraídos, seja pela barbárie, seja fazendo a superexposição de ofensas racistas, xenofóbicas, homofóbica, de condição social e regional, ou mesmo achando que estamos combatendo o “inimigo e o opressor de fato”.

 

Vivenciamos os efeitos de mais uma crise e da expansão do sistema capitalista, com seus desdobramentos no Brasil. Percebe-se que, para a consolidação desse tipo de projeto, está se apostando em remontar como pensamento hegemônico um conservadorismo calcado em um estímulo ainda maior a práticas de dominação entre grupos sociais, pelo exercício da violência física e simbólica.

 

No espectro eleitoral, além dos pedidos de “intervenção militar” por um determinado grupo de extrema-direita, um dos exemplos mais recentes foi o crescimento da votação em bancadas parlamentares que propagandeiam a violência, com discursos de ódio e negação da diversidade social, como, por exemplo, a “bancada da bala” no estado de São Paulo. Junto a isso, soma-se o fato de que a composição recém-eleita do Congresso Nacional foi apontada pelo DIAP como a mais conservadora desde 1964 (ano do golpe militar).

 

Mais uma evidência do momento histórico e do imaginário social que está se configurando foi a forma quase naturalizada com que uma grande parcela da sociedade aderiu a propostas de um dos candidatos à presidência, de reduzir a idade penal e a reforma da legislação penal, com o aumento de penas e a redução das garantias processuais. Parece que se avizinham tempos difíceis para quem acredita em uma sociedade mais justa e igualitária.

 

Da mesma forma, em meio à disputa político-partidária vigente no Brasil entre os dois maiores partidos (PT e PSDB), alerta-se para o fato do acionamento de um discurso equivocado, com o uso de termos como “fascismo”, “nazismo”, “comunismo” e outros “ismos”, como recurso de retórica e de xingamento, não de politização do debate. A preocupação de alguns grupos de “esquerda”, ao querer “desmascarar” a ideologia de determinados grupos da direita no Brasil, da forma como está sendo feita, parece mais um bate-boca com o uso das ideologias como xingamento. O objetivo é mais o de legitimar a disputa entre grupos de poder por governos do que atuar na construção de um debate político profundo sobre o momento histórico que vivemos e construímos. Em suma, são elaboradas muitas armadilhas para que nos confundamos ou façamos parte de algo que, quando percebemos, já estamos reproduzindo, até sem reflexão.

 

Também como catalisador desse discurso conservador, historicamente, temos os grandes grupos de comunicação no Brasil, que só em ouvirem falar em regulamentação têm “calafrios”. Esses grupos de comunicação no Brasil, com o estilo de notícia e programação que realizam, sem regulamentação ou responsabilização por algum conteúdo inverídico, são indutores de uma visão de mundo distorcida e criadora de falsas polêmicas.

 

E o governo Dilma que foi eleito nesse contexto? Se formos considerar algumas ações do governo reeleito nos últimos tempos, em relação ao plano econômico, à concepção de “ordem e progresso” e à realização das reformas de base, junto com o quadro de governadores e o congresso nacional eleitos, a perspectiva é de que vamos ter, em relação aos três governos anteriores, um mandato com uma governabilidade mais complexa ainda.

 

E a questão da Reforma Política? O governo eleito ficará embaraçado em mais um equívoco se promover uma reforma política decidida no interior dos partidos e do Congresso Nacional, legitimada apenas por um plebiscito ou referendo, e não atender às reivindicações históricas por direitos sociais e democracia participativa das organizações e movimentos sociais da cidade e do campo.

 

Mesmo com a direita e grupos de pensamentos extremamente conservadores se rearticulando e com a repressão policial e judicial, a perspectiva é de muitas manifestações pelas ruas do Brasil, com pautas reivindicando mais educação, saúde, habitação, transporte público digno e de qualidade, bem como uma segurança pública que proteja o povo e não militarize as comunidades, violente manifestantes, mate crianças e jovens pelas ruas e favelas (vejam o recente caso do “acerto de contas” da ROTAM em Belém do Pará).

 

Para dar o sentido e o rumo político desejado aos protestos sociais com um viés de questionamento e reivindicação por direitos sociais básicos, e não criar palco para preconceitos e grupos de ode à “intervenção militar”, talvez tenhamos de despender muito mais tempo do que imaginamos, fazendo política e estimulando canais de debate com participação social nas mais diferentes frentes, além das redes sociais. E nos prepararmos para mais um momento de resistência e disputa dos rumos do conjunto de mobilizações sociais que estão por vir.

 

Leia também:

Política, manifestações e o pensamento conservador no Brasil (1)

‘É impostura ideológica enxergar diferenças substantivas de projeto entre PT e PSDB’ – entrevista com Reinaldo Gonçalves.

 

Sérgio Botton Barcellos é pesquisador.

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