Correio da Cidadania

O FMI, a burguesia sem príncipe e os órfãos de Junho

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Logo após a apuração do resultado das eleições presidenciais no Brasil, circulou o relatório de acompanhamento da economia global do Fundo Monetário Internacional (FMI) de outubro de 2014, que rebaixa a projeção de crescimento anual do Brasil para 0,3%, colocando-o na mesma linha de tiro em que foram postas a Rússia, a Argentina e a Venezuela. O bloco de poder capitalista no Brasil é tão imediatista e circunstancial que sua unidade mínima depende sempre de ganhos extraordinários de capital. Com o agravamento da crise e a variação do fluxo de entrada e saída de investimentos, é requerida uma reestruturação regulatória compatível. Vozes dominantes no país e no planeta repetem em coro: “maior crescimento somente com maior liberalização econômica”. Por isso a reiteração da perspectiva de baixo crescimento corresponde a uma avalização internacional para ataques especulativos contra esses países.

 

A ofensiva financeira que torna a sociedade já dilapidada devedora de novas frentes de mercadorização e privatização vem sendo orquestrada em conjunto pelo G-20, FMI e Banco Mundial. Como a auto-regulação dos mercados só pode significar guerra econômica permanente, entes multilaterais e “agentes políticos” são convocados a expressar sínteses possíveis dos interesses de cúpula.  Por isso o FMI se sente à vontade para constatar e justificar a “retração dos investimentos” no Brasil por conta de sua “competitividade declinante, baixa confiança empresarial e condições financeiras em deterioração” (1).

 

Mais à vontade ainda ficou Christine Lagarde, diretora-gerente do FMI, depois de receber a unção da banca internacional para blindá-la contra acusações de conivência em crime financeiro na França, quando era ministra de Sarcozy. No dia 9 de outubro de 2014, aproveitando os Encontros Anuais do FMI e do BIRD em Washington, a CNN organizou um debate (2) para que Lagarde pudesse compartilhar a visão do Fundo acerca do atual estágio da crise global. Convidados estavam: Stanley Fischer (ex-FMI e atual vice-presidente do FED), o presidente do Eurogroup, que expressa a convergência da política financeira em torno das medidas de austeridade da União Europeia, além do Presidente do Banco Central do México, país considerado pelas instituições multilaterais como exemplar no aprofundamento das reformas neoliberais em resposta à crise econômica após 2008. O moderador do debate foi um velho conhecido do mundo corporativo, o âncora da CNN, Richard Quest, frequentemente requisitado para apresentar ou mediar as principais sessões do Fórum de Davos e dos últimos encontros do G20.

 

Aberto o debate para questões da plateia, um estudante brasileiro se levantou e dirigiu uma pergunta a Lagarde, antes mesmo que o microfone chegasse a suas mãos:

 

- A pergunta é para a Diretora-gerente do FMI. Os brasileiros...


- Ainda não, segura! (adverte o moderador)

 

- Sou Guilherme Bretas da Universidade de São Paulo. Os brasileiros estão no meio de uma eleição presidencial. Que conselhos daria ao próximo presidente, por favor?


Quest aproveita a pergunta para brincar acerca do real poder de Lagarde e do FMI:

 

- Bem, pelo menos ele não perguntou a você quem deveria ser o próximo presidente (risos nervosos da plateia, composta majoritariamente por investidores e analistas de instituições financeiras). Então sejamos gratos por essa pequena bênção. Quem quer que ganhe a eleição no Brasil, qual é seu conselho?


Quest aponta para Agustin Carstens, do Banco Central Mexicano, para que dê seu “conselho”. Agustin, por sua vez, despista:

 

- Bem, primeiro eles precisam assegurar que irão ganhar a próxima Copa do Mundo (risos gerais). Então...


Agustin parece se contentar com o único conselho dado e Quest reassume:

 

- Eu pararia por aí, se eu fosse você. Acho que não poderia dar melhor conselho que esse (risos contidos). Diretora-gerente, por favor...


Lagarde procura manter o tom esportivo da conversa dizendo não estar propriamente de acordo com o conselho do mexicano. De pronto, reintroduziu-se em seu papel, franziu a testa para começar:

 

- Eu acho que seriam conselhos diferentes, dependendo de quem será eleito dentro de duas semanas. Mas o que é certo é que reformas estruturais são necessárias, os massivos projetos de infraestrutura em curso e algumas reformas precisam prosseguir, devem ser completadas. Existem muitos gargalos na economia brasileira e isso precisa ser encaminhado, porque há muito talento, vitalidade e energia na economia brasileira que precisam ser destravados em benefício do povo. Por fim, programas do tipo Bolsa Família, que ajudam as pessoas pobres do Brasil, devem ser mantidos na sua forma original ou em outra forma.


Pontuo as intervenções e deduções subsequentes.

 

1. Junho às avessas

 

Na plateia, quem levanta a lebre ao FMI é um graduando da USP, apoiador de Marina no primeiro turno, entusiasta de Aécio no segundo (3). Vocaliza um discurso e uma postura representativos do que seria a “ala direita” das jornadas de junho.  A insatisfação da juventude com a precarização das condições de trabalho e dos serviços públicos a seu dispor não se volta imediatamente contra os limites do pacto do governo com o grande empresariado e bancos. A grande mídia fermenta o senso comum e assim o pensamento conservador, liberal de ocasião, vai se capilarizando.

 

Nunca se viram ideias de Von Mises, Hayek tão fora de lugar. A teologia da prosperidade promovida nos anos de crescimento vira messianismo de mercado nos anos de choque. Agora a grande mídia cuida sem pudores da política significante: os vetos e diretivas que vêm de cima. O influxo dos protestos é canalizado para a burocracia social-liberal, segmento especializado em costurar acordos entre as frações dominantes e parcelas da população subalternizada. O auto-disciplinamento crescente do PT e seu governo, especialmente a partir de 2011, sacrificando receitas públicas, poder regulamentador e capacidade de ampliar e qualificar equipamentos sociais, transformaram-nos em alvos fáceis. A “hegemonia às avessas” deu num Junho às avessas, que precisamos reverter em combate incansável, preparados para todas as consequências que vão além dessas semanas.

 

2. A voz dos mercados

 

A CNN apresenta Richard Quest como o homem que noticiou “os maiores negócios da década”, daí seu programa diário se intitular “Quest means business”. Talvez quisessem dizer o mesmo do FMI, por isso rememoraram o antigo papel da instituição, o de inabalável cobrador - mesmo em tempos de ruína.

 

Quest faz troça e agradece ao jovem por não ter perguntado qual candidato os mercados e o FMI escolheriam. Seria difícil e embaraçoso responder, até porque Dilma e o PT fizeram até aqui um bom trabalho para eles. “So let’s be grateful for small mercy”, ironiza Quest, sobrepondo sua voz à do FMI, em suspense.  Com a palavra, Agustin, presidente do Banco Central de um país há muito desvertebrado e que quebrou em 2008 junto com seu “irmão” do norte, ficando até hoje à mercê de metas de liberalização e privatização definidas pelos capitais norte-americanos.

 

Conselho algum poderia dar, admite Quest. Lagarde toma a palavra e dita “o que é certo”, independentemente de quem seja eleito. Expondo essa “agenda comum”, naturalmente definida pelo “ciclo econômico”, Lagarde delimita o alcance do ciclo político-eleitoral do país. Reforma das reformas para completar os projetos de infraestrutura voltados para produção e exportação de commodities e para viabilizar um enorme volume de negócios potenciais hoje represados. Mas a população pobre do Brasil não pode ser esquecida, programas sociais como o Bolsa Família precisam ser mantidos, de qualquer forma, pontifica a diretora do FMI.

 

3. O programa único que segue

 

A matriz justificadora dessa posição sistêmica, de origem teórica neo-institucionalista, aponta “rigidez institucional” do Brasil como causa de perpetuação de estruturas econômicas distorcidas que sabotariam a disseminação de ganhos inovativos para os segmentos mais pobres da sociedade. Risco moral sem cobertura e seletividade natural dos mercados fariam evoluir as instituições - aptas desde que atravessadas por um fluxo de determinações de caráter transnacional, continental, territorial.

 

Aécio e PSDB se encaixam como luva nessa matriz orgânica que propõe “desmontar a ‘Nova Matriz Econômica’ do governo Dilma, sustentada por subsídios, desonerações de impostos e proteção à concorrência externa” (4). Essa disputa entre liberalismo e ultra-liberalismo (sobre quem instrumentaliza o Estado e de que forma o faz) é assunto dos dominantes, não seremos nós que iremos predicar qual tipo de dominação seria mais estável. O que emerge desse litígio interno é uma “burguesia sem príncipe”, em constante rearranjo, e que requer a eliminação de mediações sociais e políticas, pactuadas em 2002, tidas no presente momento como “indutoras de ineficiência”.

 

Se, por um lado, está claro que não iremos encontrar qualquer saída amarrados às contradições internas das classes dominantes, por outro, é preciso reconhecer que Aécio e sua equipe ultrapassaram o papel de marco lógico, de régua de entabulamento da política econômica, e se vêem em condições de executar, por suas próprias mãos, as correções de rota necessárias. Reformas a fórceps: aplicação do “tarifaço”, juros e câmbio nas mãos de um Banco Central “independente”, alinhamento automático com o sistema financeiro internacional e os blocos econômicos dos países centrais. A reunificação da direita, objetiva e subjetivamente, não pode ser confrontada com ambiguidades e recalques.

 

4. Frente única para além das eleições


Nos últimos doze anos, a ascensão social foi vendida como integração ao mercado de consumo tal como ele é. Assim, os milhões que ascenderam nesse país, a partir do topo ou da base da pirâmide, o fizeram concentrando, diferenciando e transferindo poder. Do alto descem os sinais de asco e repugnância para com os faltantes ou recalcitrantes com a ordem do mercado. Carga de desprezo que desemboca naqueles que não deveriam insistir em existir.

 

Por isso não deixaremos de nominar aqueles que foram capazes de levar à fogueira saberes e práticas sociais extra-mercantis e demonstraram sua adesão sistêmica desde a origem, adesão à dinâmica do capital originário e a sua barbárie contemporânea. A pujança dos chamados setores líderes no Brasil, especializados em recursos naturais e serviços de infraestrutura, não pode ser desassociada da devastação ambiental e da espoliação social decorrentes da atuação livre e desimpedida deles. Com Lula e Dilma à testa do governo central, as classes dominantes atualizaram e tornaram legítimas todas as formas de acumulação primitiva possíveis.

 

Não apagaremos os rastros das limpezas sociais de larga escala feitas a qualquer pretexto, seja megaeventos esportivos, seja “desastres naturais”, que permitiram a sobreposição de áreas não assimiláveis a “áreas de risco”. Não perdemos a conta das remoções de favelados, comunidades tradicionais, indígenas, ribeirinhos e camponeses - nem o propósito de reapropriação social e coletiva desses territórios.

 

Houve tempo em que as instituições representativas eram contestadas como burguesas, mas havia uma incessante luta para alargá-las por dentro, para tensionar seus limites, para que incorporassem parte do que excluíam com o objetivo de modular conflitos e proporcionar assim acordos abrangentes. Com o esvaziamento dessas instituições em função da consensualização de agendas privadas, a política esvanece como cena decisória. O agronegócio e os setores de infraestrutura e mineração são os primeiros a atestarem que o Estado “ajuda quando não atrapalha”, requerendo a mesma proporcionalidade na política do que representam na economia.

 

O que pode ser o “Estado de Direito” quando a ordem do direito reproduz fielmente a ordem dos fatos? O que pode ser uma forma democrática depois de instalado um “governo da polícia” - enquanto governamentalidade direta do soberano e golpe de Estado permanente? (5). A dinâmica de crescimento, autista e díspar, promovida pelo chamado projeto “neodesenvolvimentista”, com escassos espaços de nivelamento e solidarização, só poderia confluir para um fulgurante fascismo social, que expressa as frustrações e os desejos reprimidos de uma burguesia com vocação segregacionista, expansionista e imperialista.

 

Urgente, pois, formar frentes anticapitalistas e antifascistas e atacar em primeiro plano os corvos (travestidos de tucanos) dos capitais mundializados - capitais “brasileiros” incluídos. Mas não nos esqueçamos de, na sequência, ajustar contas com aqueles que alimentaram os corvos, com os que se entretiveram com eles e compartilharam suas ambições e métodos ao ponto de tentarem usurpar seu lugar.

 

Notas:

(1) World Economic Outlook, p. 56. Legacies, Clouds, Uncertainties. October 2014, International Monetary Fund (IMF), Washington. Disponível em http://www.imf.org/external/pubs/ft/weo/2014/02/pdf/text.pdf

(2) CNN Debate on the Global Economy, October 9, 2014 . Disponível em  http://www.imf.org/external/mmedia/#

(3) Sua “conta Facebook”, em que expõe de forma franca sua iniciação “liberal”, é aberta ao público.

(4) Castelar Pinheiro, A. A nova inflexão da economia. Valor Econômico, 03/10/2014

(5) Ver RANCIERE. J. O Desentendimento. São Paulo: Ed. 34, 1996. Também FOUCAULT, M. Segurança, Território, População. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

 

Luis Fernando Novoa Garzon é sociólogo e professor da Universidade Federal de Rondônia.

E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

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