Por que a esquerda socialista terá poucos votos nas eleições de 2014?

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Valerio Arcary
05/09/2014

 

 

Se você se conhece, mas não conhece o inimigo,
para cada vitória ganha, sofrerá também uma derrota.
Se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo,
não precisa temer o resultado de cem batalhas.
Se você não conhece nem o inimigo nem a si mesmo,
perderá todas as batalhas.

Sabedoria popular japonesa

 

Muitos militantes estão se interrogando por que os candidatos da esquerda socialista, Zé Maria do PSTU, Luciana Genro do PSOL e Mauro Iasi do PCB, irão, muito provavelmente, ter poucos votos nas eleições de outubro de 2014. Afinal, já são doze anos desde a eleição de Lula, um tempo grande o bastante, aparentemente, para que uma experiência e balanço político possam ser feitos. Afinal, o ano passado, tivemos as mobilizações de Junho, as maiores no país desde o Fora Collor em 1992.

 

Admitamos que o tema é complexo. Ele se relaciona, por um lado, com o crescimento vertiginoso da candidatura de Marina Silva. Ela vem conseguindo ocupar, simultaneamente, o espaço da oposição de direita e de esquerda ao governo de coalizão liderado pelo PT, e representado por Dilma Roussef, deslocando Aécio Neves, e bloqueando uma alternativa à esquerda. O discurso da terceira via, que já tinha sido ensaiado em 2002 por Ciro Gomes e Garotinho, e em 2010 pela própria Marina Silva, encontra respaldo entre aqueles que esgotaram suas expectativas em relação ao PT, mas não querem o retorno aos anos noventa com os governos do PSDB.

 

Marina em 2014, nesse sentido, é mais uma mediação. Mais uma posição intermediária. Mais uma armadilha. A terrível pressão das ilusões na possibilidade de regulação de um capitalismo sem corrupção, de um capitalismo sem exploração selvagem. Uma candidatura que captura para uma saída moderada, amigável para a Avenida Paulista, o impulso de Junho. Uma nova versão do papel representado, tragicamente, pelo “Lulinha paz e amor” , só que agora, talvez, em forma de farsa. O feitiço se voltou contra o feiticeiro (1).

 

Mas este fator é muito parcial. Embora, relativamente, verdadeira, esta abordagem não esgota o problema. Permanece insuficiente. Quatro argumentos principais foram acumulados para explicar a dificuldade eleitoral da esquerda socialista brasileira, e merecem não ser esquecidos. Primeiro, as eleições são diretas, mas não são livres. Em inúmeras regiões do país, ainda predomina um clima de medo, intimidação, ameaça, perseguição e represália que impede que a escolha político-eleitoral se realize com liberdade. A atuação de milícias, do crime organizado, de prefeitos que dominam como coronéis, mantém currais eleitorais intactos. Invioláveis.

 

Segundo, as eleições são diretas, mas não são democráticas. A diferença de orçamentos de campanha é abismal. E o dinheiro em campanha eleitoral conta. É porque as somas excedem centenas de milhões que a eleição de um deputado para o Congresso Nacional é quase impossível para os partidos que não aceitam financiamento empresarial. Como a distribuição do tempo de TV e rádio é proporcional às bancadas de deputados, estabelece-se uma partidocracia, uma tirania dos partidos de confiança dos monopólios. Não fosse isso o bastante, o acesso aos debates é restrito.

 

Terceiro, a percepção de que a sociedade está dividida em interesses irreconciliáveis de classe, opondo o capital ao trabalho, o classismo, deixou de ser uma referência importante, decisiva, incontornável, para a nova geração proletária. A consciência de classe forjada ao longo das lutas ao final dos anos setenta e durante os anos oitenta regrediu. A direção do PT, que tinha sido a maior beneficiária desse avanço, merece ser responsabilizada por essa deseducação. A transformação do petismo em lulismo, a “fulanização” da luta política, o culto à personalidade do grande líder teve consequências, com a desvalorização das organizações coletivas e independentes, como os sindicatos e movimentos. Os trabalhadores despolitizaram-se depois de doze anos de governos do PT. A defesa do socialismo não é mais, tampouco, uma referência para a maioria dos trabalhadores.

 

Em outras palavras, os trabalhadores não confiam nas suas próprias forças, e não estão organizados de forma independente para defender seus interesses. Por isso, na hora da crise eleitoral do governo PT, quem cresce é uma candidatura gerada no núcleo duro do aparelho do PT, mas que abre o espaço para que a oposição de direita possa voltar para o Banco Central e para o Ministério da Fazenda através de Marina.

 

A ideologia, ou seja, uma visão de mundo, um conjunto de critérios e valores que expressam as nossas preferências, parece ter menos peso na definição de voto no Brasil, quando comparado com outros países, a começar pelos vizinhos Argentina ou Uruguai. Essa facilidade de atrair o eleitorado quer ele seja de esquerda ou de direita foi confirmada por pesquisa de opinião, e não se restringe a Marina Silva (2).

 

Quarto, os partidos que defendem os interesses dos trabalhadores enfrentam uma enorme resistência pela defesa que fazem da legitimidade da luta de classes. A situação econômica e social, embora deteriorada pela quase estagnação do crescimento, pelo aumento das pressões inflacionárias até dois meses atrás, ainda não é grave o bastante para que o mal-estar que se manifestou em Junho de 2013 tenha se deslocado à esquerda. A parcela jovem da classe trabalhadora que foi às ruas ainda não se vê representada pelas propostas da oposição de esquerda, que parece muito radical. Radical porque conflituosa, defendendo a necessidade de enfrentamento com o capital. Portanto, aos olhos desta corrente de opinião que Marina canaliza, pelo menos por enquanto, também, perigosa.

 

Estes argumentos são úteis para compreender por que a esquerda socialista terá poucos votos. Mas ainda tangenciam a questão central. A questão central permanece sendo a desumanização dos trabalhadores, a alienação (3). Sem a alienação, a dominação do capital não seria possível. A forma política da alienação é a desconfiança dos trabalhadores em relação à sua capacidade de se unir e se defender coletivamente. É o pé atrás, a suspeita, o receio, o preconceito dos seus iguais. O sentimento manipulador mais poderoso do pensamento mágico é o medo: a capitulação ao impulso do desejo que se confunde em realidade.

 

A alienação política é um processo complexo em que o trabalhador não se reconhece a si mesmo. Assimila ideias, projetos, valores e ideologias que não correspondem aos seus interesses. Isolado, individualizado, separado de si próprio e dos seus iguais, o trabalhador é vítima de uma brutalização tão impiedosa que o leva a procurar identificação com os interesses de outras classes.

 

Esta dimensão da luta política tem as suas formas. Duas são as mais comuns: (a) milhões de proletários não votam na esquerda porque não querem “perder” o seu voto. Como a esquerda tem menos visibilidade, portanto, parece ter menos chances eleitorais. É o seguidismo da maioria. Seguir o impulso das ondas majoritárias de preferência de outras classes, para acompanhar o voto vencedor, identificado como voto útil; (b) é muito comum que o voto não seja uma escolha positiva, mas negativa, pelo critério do “menos pior”, ou seja, orientado pela campanha que consegue insuflar o maior medo, o pavor de que tudo poderá ficar ainda pior do que antes.

 

Na tradição inspirada pela elaboração de Leon Trotsky, esse fenômeno deve ser definido de forma mais rigorosa como a crise de direção do proletariado. A crise de direção tem duas dimensões que podem estar desenvolvidas em proporções distintas em cada processo histórico-concreto: a imaturidade objetiva e a fragilidade subjetiva do proletariado como sujeito social independente na luta anticapitalista.

 

O que é menos compreendido é por que os trotskistas consideram central a luta implacável contra o PT. A razão é simples. Esta insegurança do proletariado só se mantém, se reproduz, se perpetua porque há chefes burocráticos que dependem dela para se manter no controle da representação dos trabalhadores.

 

A crítica mais comum do que se considera como exagerado nesta avaliação é aquela que defende que as lideranças mantiveram influência majoritária porque suas posições – e até ações - correspondiam, grosso modo, à vontade dos representados. O argumento pode impressionar, mas é falso. O beabá da luta política burguesa é a dissimulação, a máscara, a camuflagem, a vigarice.

 

As massas populares podem agir contra os seus interesses, mas não indefinidamente. As direções burocráticas podem agir contra os interesses de suas bases sociais proletárias e, ainda assim, manter por algum tempo sua influência, porque as ilusões nos dirigentes são grandes, e é necessária toda uma experiência, muitas vezes até décadas, para que a massa dos trabalhadores perceba que foram traídos.

 

Os trotskistas são criticados porque supervalorizam o lugar da traição política na história. Admitamos que o tema pode ser simplificado e, portanto, muito mal compreendido. Não é inusitado que seja interpretado como uma versão conspirativa da história, em que o lugar da traição política desvaloriza todos os outros fatores. Alguns desprezam esta diferenciação entre classe social e sujeitos políticos. Rejeitam a ideia da traição. Consideram-na imprópria, argumentando que as intenções humanas seriam inescrutáveis. Mas essa crítica não é nem verdadeira, nem justa. As intenções dos líderes podem ser impossíveis de esclarecer, mas os atos, não.

 

Apresentemos o problema: o fenômeno se manifesta quando a representação do proletariado é feita por partidos e líderes que defendem os interesses de outras classes – como foi o papel da socialdemocracia e do estalinismo nos países centrais, e os nacionalismos pequeno-burgueses ou burgueses nos países periféricos. Influir na representação das classes exploradas foi sempre decisivo para a preservação dos interesses da ordem em todos os tempos. Alimentar a desconfiança, dividir a direção da classe inimiga, atrair os líderes moderados, isolar os radicais, promover a intriga, são o abecedário da luta política. Eliminar da história o lugar da traição é um procedimento, politicamente, ingênuo e teoricamente superficial. A luta de classes é um combate tão sério que não se pode ignorar que todas as armas foram e continuarão sendo usadas para colocar o inimigo em posição de inferioridade.

 

Diferentes tendências historiográficas já exaltaram o papel dos grandes chefes políticos, cultuados até como heróis e, simetricamente, já argumentaram que a qualidade maior ou menor das lideranças seria irrelevante nos curso dos acontecimentos, anulada por outros fatores mais significativos. O lugar da direção variou muito, é verdade, segundo as circunstâncias, da relativa obscuridade à máxima exposição. Isto posto, anulados todos os outros elementos, a superioridade dos líderes faz a diferença. São os soldados que lutam as batalhas. Mas, quando em condições de relativa igualdade de forças, são as decisões dos generais que decidem a possibilidade de vitória.

 

Quem não sabe contra quem luta não pode vencer.

 

(1) Sob a pressão de uma eleição a cada dia mais apertada, a direção do PT começou a abraçar, por desespero, um discurso catastrofista que quer apresentar a disputa entre Marina e Dilma como um armagedon político. Marina seria do mal, Dilma seria do bem. Uma análise marxista abraça um método menos emocional: é uma interpretação das candidaturas orientada por um critério de classe. Muitas vezes na história os governos dos partidos operários reformistas foram mais úteis para a defesa da ordem que os partidos da própria burguesia: protegiam o capitalismo dos capitalistas. Os socialistas, por princípio, não diferenciam diante dos trabalhadores os carrascos mais cruéis dos menos cruéis.

 

(2) Segundo a primeira pesquisa de âmbito nacional realizada pelo DataFolha: “No Brasil, há uma quantidade bem maior de eleitores identificados com valores de direita do que de esquerda. O primeiro grupo reúne 49% da população, enquanto os esquerdistas são 30%. Isso, porém, produz pouco impacto nos índices de intenção de voto para presidente em 2014. Os dados são do Datafolha, que na pesquisa eleitoral(...)também investigou a inclinação ideológica do eleitorado. Conforme os dados do instituto, a presidente Dilma Rousseff (...) tem praticamente o mesmo padrão de votação entre eleitores identificados com valores de direita, centro-direita, centro e centro-esquerda.(...) É a primeira vez também que os pesquisadores classificaram os entrevistados numa escala da esquerda à direita. Antes, as denominações eram diferentes. A escala ia de extremo liberal (o equivalente a esquerda agora) a extremo conservador (direita) (...) Para identificar e fazer os agrupamentos ideológicos dos eleitores, o Datafolha faz um conjunto de perguntas envolvendo valores sociais, políticos e culturais.” http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/10/1356184-ideologia-interfere-pouco-na-decisao-de-voto-diz-datafolha.shtml - Consulta em 02/09/2014.

 

(3) Sobre o tema da consciência de classe, uma das obras de referência no marxismo foi História e consciência de classe, hoje muito desvalorizada pelo entusiasmo com que defende o protagonismo do proletariado. Nesse texto, Lukács sistematiza de forma irretocável algumas conclusões teóricas sobre as contradições entre a existência, enquanto classe, e a formação da consciência de classe, que permanecem até hoje, para o fundamental, insuperáveis. Lukács insiste que nas condições de miséria material e cultural em que está mergulhado, o proletariado sofre a mais abjeta brutalização e desumanização, e que só pela ação coletiva e solidária pode apreender a sua força social e forjar as armas de sua organização independente que lhe poderá permitir uma negação da ordem e sua afirmação como classe para si. A seguir, um pequeno trecho de História e consciência de Classe, onde podemos encontrar, em repetidas passagens, conclusões como a que transcrevemos: “o proletariado surge como produto da ordem social capitalista (...) as suas formas de existência estão constituídas de tal forma que a reificação tem, necessariamente, de se exprimir nelas de forma mais flagrante e mais aguda, produzindo a mais profunda desumanização. O proletariado compartilha, pois, a reificação de todas as manifestações de vida com a burguesia (grifo nosso) (LUKÁCS, Georgy. História e consciência de classe. Porto, Escorpião, 1974. p. 35).

 

 

Valerio Arcary é professor titular no IFSP – Página na web: http://marxismo21.org/wp-content/uploads/2014/09/Val%C3%A9rio-Arcary-dossie.pdf


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