Um homem no seu tempo

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Grupo de São Paulo, Boletim da Rede
15/08/2014

 

 

 

"A escolha de categorias marxistas para fazer uma leitura primeira da realidade é, para o cristão, colocar-se em uma encruzilhada, declarar uma tensão, viver um conflito. Para dar o passo, é preciso estar intelectual e espiritualmente preparado. Intelectualmente, pelo estudo sistemático e rigoroso dos métodos da análise social e, espiritualmente, pelo engajamento sincero na caminhada do povo de Deus conjugado com a oração pessoal e comunitária."

Plinio de Arruda Sampaio, "O cristianismo social no século XXI"

 

 

Plínio foi um desses homens raros cujas biografias se entrelaçam radicalmente com as correntes históricas mais profundas de suas épocas. É curioso que tivesse nascido em 1930. Nessa época, o capitalismo mundial vivia as grandes rupturas produzidas pela Primeira Guerra e pela grande crise de 1929. A luta de classes se radicalizava. A recente Revolução Russa de 1917 abria, para os proletários do mundo, novos horizontes. No Brasil, 1930 foi o ano da revolução que pôs fim à chamada República Velha e levou a transformações substanciais do Estado oligárquico, precisamente no momento em que tomava corpo o processo de industrialização que viria transformar também o caráter de nossa economia. Naturalmente, esses homens nascidos no início da década experimentariam a passagem da infância à juventude, mais ou menos entre 10 e 15 anos de idade, durante a Segunda Guerra Mundial. Digamos que o “jovem Plínio” nasce junto com o mundo do pós-guerra.

 

Nesse mundo, sua biografia vai se entrelaçando com correntes decisivas. Plínio não foi, de um ponto de vista ortodoxo, um marxista. Mas é preciso considerar a força do que o filósofo francês Jean-Paul Sartre entendeu como a “filosofia insuperável do nosso tempo”, que, nessa quadra histórica, era precisamente o marxismo. Às duas Grandes Guerras se seguiram duas ondas revolucionárias: a primeira na Rússia em 1917 e a outra na China, em 1949. Nesse contexto, os processos de descolonização dos velhos impérios europeus colocavam na ordem do dia novos alinhamentos geopolíticos diante das potências que polarizavam a chamada Guerra Fria – Estados Unidos, no bloco capitalista; União Soviética, no bloco socialista. No pós-guerra, a possibilidade histórica da revolução socialista estava no horizonte das lutas econômicas, políticas e culturais. Parte considerável da população mundial vivia sob regimes proclamados socialistas. Na América Latina, basta lembrar o exemplo emblemático da Revolução Cubana. Ao longo da vida, Plínio esteve sempre do lado das forças da transformação social.

 

Sob os escombros da Primeira Guerra Mundial e da grande crise, e diante da sombra da possibilidade concreta da revolução, o liberalismo do século XIX fora definitivamente sepultado e o mundo que surgiu no pós-Guerra fora marcado por diversas formas de planificação da vida econômica pelo Estado. Em grande parte da periferia, no Brasil, particularmente, esse quadro colocava de modo mais premente a questão do desenvolvimento nacional. À esquerda, Plínio foi sempre um nacionalista. No Brasil, como na América Latina, para o nacionalismo de esquerda, tratava-se da defesa de um programa de ruptura com as heranças mais profundas de nosso passado colonial e escravista. Tratava-se de superar o nosso ancestral apartheid social e a dependência em relação às forças do capitalismo mundial, como base para a construção de uma sociedade propriamente nacional, mais homogênea e mais integrada. Algo que, em formulações radicais, tinha a envergadura de uma verdadeira revolução brasileira.

 

Plínio era essencialmente um cristão. Um cristão formado, na raiz, pelas mudanças ocorridas, nessa época, na Igreja e que, exprimindo também o espírito do tempo, se consumaram no Concílio Vaticano Segundo. Porquanto a opção preferencial pelos pobres alçava-se ao centro do cristianismo, a militância política movida nessa direção elevava-se a uma espécie de forma superior da solidariedade e uma expressão mesmo da fé. A sociologia chamaria de “ética da convicção”: o caso é que as trajetórias de cristãos como Plínio exemplificam uma ação orientada por valores éticos mais fundamentais e, digamos, exteriores à racionalidade própria da luta pelo poder a qualquer custo. Na base de suas posições políticas estava sempre a opção cristã pelos pobres; como se a luta pela liberdade e igualdade só adquirisse pleno sentido à luz da utopia da fraternidade.

 

Na quadra histórica do pós-guerra, pelo menos até 1964, Plínio esteve no centro nervoso da luta política brasileira. É sintomático que, no momento crítico em que as pressões sociais que se acumulavam desde a revolução de 30 – ou desde antes – culminavam, no governo de João Goulart, na luta pelas reformas de base, Plínio, deputado do Partido Democrata Cristão, elaborou precisamente o programa de reforma agrária. Aí esboçava-se uma ruptura com uma das permanências mais estruturais herdadas de nosso passado colonial. Não por outra razão, quando o capital estrangeiro, o latifúndio e a burguesia brasileira deflagraram o golpe de 64, que decretou definitivamente a vitória da “contrarrevolução permanente”, Plínio foi um dos primeiros banidos do país. Interrompia-se o processo secular de formação de uma nação civilizada.

 

Décadas mais tarde, quando o edifício construído no pós-guerra ruiu, precisamente no momento do ocaso da experiência soviética, as novas configurações do capitalismo tornaram bem mais estreitos, para a periferia, quaisquer horizontes civilizatórios. A possibilidade de reformas substanciais nos marcos do capitalismo praticamente se esgota. Com os mesmos valores e as mesmas convicções, à diferença de muitos de sua geração, Plínio tende, no novo contexto, à radicalização. Desde 1989, conforme o PT foi progressivamente se adaptando à nova ordem, convertendo-se à direita com vistas à conquista da presidência, Plínio saía em defesa de um programa socialista para o Brasil. No primeiro mandato de Lula, viu novamente seu projeto de reforma agrária derrotado pela burguesia e pelo imperialismo. Em 2010, candidato à presidência, com entusiasmo e ousadia, foi ouvido, principalmente por jovens, por trazer de volta à cena uma discussão propriamente política, no sentido mais profundo do termo, descortinando nossos problemas mais estruturais, os verdadeiros conflitos em jogo e os dilemas mais fundamentais postos para o futuro do Brasil.

 

Naturalmente, Plínio não caminhou só. Caminhou com seus companheiros, reconhecendo-os e, no mais das vezes, buscando-os. Caminhou, sobretudo, com Marieta. Companheira de luta, de fé, de vida.

 

Ligado às correntes históricas mais profundas de seu tempo, Plínio será lembrado nas lutas que se renovam. Em seu velório havia muitos jovens. E havia, misturada ao sentimento da morte, uma celebração da vida. Plínio não verá os desdobramentos das manifestações que irromperam no Brasil em junho de 2013. Deixou-nos no último 8 de julho. Para os brasileiros mais explorados e despossuídos, cumpre cultivar a luta, para que floresçam as sementes que homens como Plínio ajudaram a plantar para o futuro.

 

 

Grupo de São Paulo:  Carlos Alberto Cordovano Vieira; Marieta Sampaio; Teca Carvalho; Silvio Mieli; Andrea Alberico; Thomaz Jensen; José Juliano Carvalho; Gustavo Dorea; Frei João Xerri.

Texto produzido e publicado pelo Boletim da Rede.


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