Correio da Cidadania

A mãe terra é quem nos culpa

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Nas vésperas da festa de São João, festa da colheita do milho no Nordeste brasileiro, assistimos com muita tristeza as enchentes na Zona da Mata Sul de Pernambuco e Zona da Mata Norte de Alagoas. Foram vidas ceifadas, casas destruídas, escolas e hospitais sem condições de funcionarem, pontes levadas pela força das águas, um verdadeiro cenário de guerra. As últimas estimativas falam em 59 mortes, sendo 39 em Alagoas e 20 em Pernambuco. No estado alagoano, passa de 26 mil o número de desabrigados e 47 mil o de pessoas desalojadas. Já em Pernambuco, são mais 26 mil desabrigados e mais de 55 mil desalojados. Mas, como todo cenário de guerra tem sempre inimigo e culpados, escolheram desta vez a Natureza como responsável.

 

Não podemos negar que existem fatores climáticos por trás da tragédia ocorrida. Durante quatro dias choveu mais de 400 mm³ nas regiões afetadas. Precipitação essa, provocada, segundo os especialistas, pelo aquecimento do Atlântico. No entanto, é preciso ter um olhar mais profundo do ocorrido. As regiões atingidas pelas enchentes são marcadas pala concentração da terra, pelo monocultivo exportador da cana-de-açúcar, pelo trabalho precarizado e análogo ao trabalho escravo e pela degradação ambiental. Municípios da Zona da Mata Pernambucana, por exemplo, possuem índices GINI de concentração de terras que chegam a atingir 0,9 (pelo índice de GINI, quanto mais próximo do número 1, maior é a concentração de terras).

 

O modelo de desenvolvimento, histórica e geograficamente implementado no Brasil, e em especial no Nordeste, tem sacrificado o meio ambiente e empurrado populações empobrecidas para lugares menos propícios para a ocupação humana. Na Zona da Mata de Pernambuco, nos últimos 30 anos, mais de 150 mil trabalhadores perderam seus trabalhos no setor canavieiro e estima-se que mais de 40 mil sítios foram destruídos durante os primeiros anos do Pró-álcool (1975) - um dos maiores períodos de expansão da cana no estado e no Brasil. As matas foram "dando" espaço à cana e as populações, sem trabalho, privadas das terras e sem alternativa econômica foram sendo empurradas para as periferias das cidades, para as chamadas áreas de risco e "pontas de ruas", como é chamado por eles.

 

As cidades da Região Canavieira, como é chamada por muitos, se transformaram em um verdadeiro confinamento de populações empobrecidas e privadas dos seus direitos. Pernambuco aparece com o 5º pior IDH do país, e é justamente na região da Zona da Mata que se concentra um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano do estado e um dos piores índices de saneamento e água em rede domiciliar. As populações das cidades desta região vivem com saneamento básico precário, sem abastecimento de água potável regular, sem assistência médica que atenda as necessidades das pessoas, ou seja, sem a mínima infra-estrutura social eficaz.

 

Foi justamente nessa região que os usineiros cometeram um dos piores crimes ambientais da humanidade. Da mata Atlântica original, restam apenas menos de 3%. Em 2008, depois de muitas denúncias de movimentos sociais no estado, o IBAMA autuou as 24 usinas pernambucanas por crime ambiental por elas não terem os 20% de reserva legal e as matas ciliares estarem quase que dizimadas em todas as usinas fiscalizadas pelo Instituto. Não há matas nos topos de morros e nas encostas para facilitar a infiltração das águas no solo e diminuir o escoamento superficial das águas de chuvas. Não existem mais matas ciliares, que servem, entre outras coisas, para proteger os rios e servir de "barreiras" da contenção dos grandes volumes de águas. A Mãe Terra não merece e não deve ser culpada pelas conseqüências desta catástrofe, que é muito mais de responsabilidade do modelo de ‘des-envolvimento’ do que de uma ação incontrolável da natureza.

 

Vale a pena lembrar Josué de Castro, no livro "Geografia da Fome", que denuncia a região da Zona da Mata de Pernambuco como a de maior pobreza e fome no estado. O "cidadão do mundo" denunciava também a concentração de terra e o sistema do monocultivo da cana como um dos elementos principais da fome e da pobreza na região. A combinação de fatores climáticos com as ilhas de pobrezas no "mar" de cana que é a Zona da Mata em Pernambuco tornou vulneráveis as cidades de seu território às catástrofes ditas "naturais". A Mãe Terra é quem nos culpa.

 

Plácido Junior é geógrafo e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Regional Nordeste 2.

Renata Albuquerque é jornalista e do setor de comunicação da CPT, NE-2.

 

Leia mais:

 

Ignorando mudanças climáticas, Brasil continuará sofrendo com ‘catástrofes naturais’

Entrevista com o pesquisador do INPA Philip Fearnside sobre as chuvas no Nordeste

 

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Comentários   

0 #1 Débora Albuquerque 14-07-2010 17:37
Acho importantíssimo do ponto de vista pedagógico que as questões ambientais comecem a ser tratadas com este enfoque. É preciso que a classe trabalhadora incorpore a dimensão ambiental em suas lutas, até porque os pobres são, hitóriamente, sempre acusados pelas desgraças que assolam a Terra. É preciso que se diga porque estão ocorrendo essas alterações no clima e que o modo de produção capitalista, de acumulação de riquezas, a primeira coisa que \"despreza\" são os bens ambientais..ele têm um unico valor, o do dinheiro. Tudo o que o ambiente equilibrado pode proporcionar inclusive à economia é desprezado pelas elites. Haja vista as desgraças que advem com a reforma do código florestal. Quando o bem ambiental é importante para o capital, aí ele é privatizado, como no caso das águas. Nos dois casos, os direitos dos povos e da classe trabalhadora são rechaçados. Principalmente o direito à saude, retirados ou privatizados com a morte da biodiversidade. Nesta mesma linha, áreas em geral totalmente poluídas, devastadas, exauridas ambientalmente, são destinadas às populações pobres. Os trabalhadores e trabalhadoras precisam urgentemente assumir a bandeira ambiental na perspectiva da mudança no modo de produção e consumo, e saber que se assim não fôr, serão as maiores vítimas do processo de devassa ambiental.
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