Correio da Cidadania

Cadê o aquecimento global? Frio nos EUA (1)

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Para sermos mais precisos, se a esmagadora maioria de especialistas em clima nas universidades e institutos de pesquisa ou meia dúzia de pessoas mal informadas ou com extrema má fé...

"E esse frio todo?" é uma pergunta usada de maneira recorrente, explícita ou implicitamente para questionar as mudanças climáticas, seja ela referente a dias muito frios em sequência no Sul e Sudeste do Brasil seja na costa leste dos EUA. Incautos e militantes do negacionismo adoram fazer distorções em tornos desses eventos (e outros como neve no Saara e até granizo no sertão), não sem uma confusão completa entre tempo e clima, para provocar confusão na opinião pública.

É algo inclusive praticado por jornalistas sem compromisso com a informação como Alexandre Garcia (que recebeu resposta minha à altura no twitter) e por políticos não apenas de direita (como o filho de Bolsonaro), mas também de esquerda como Aldo Rebelo. Este é o primeiro de uma série de artigos sobre esse tópico com o objetivo precisamente de separar o joio do trigo e contribuir não apenas para desfazer a confusão entre tempo e clima relacionada a esses eventos, mas também para trazer informações sobre a formação de eventos extremos dessa natureza.

 
Anomalia de temperatura de 1880 a 2017 segundo o Instituto Goddard de Estudos Espaciais da NASA, em que 2017 aparece como o segundo ano mais quente do registro histórico.

Respondendo de cara à pergunta do título ("cadê o aquecimento global?"), afirmamos sem titubear que na verdade o aquecimento global segue "firme e forte" (infelizmente). O ano de 2017, segundo dados da NOAA, foi o terceiro mais quente de todo o registro histórico desde 1880, atrás apenas de 2016, recordista absoluto, e 2015.

Segundo a NASA, 2017, teria sido o segundo, superando 2015. A diferença nesse caso é que a anomalia de temperatura no final de 2015 e durante boa parte de 2016 contou com a contribuição do segundo maior evento de El Niño já registrado, enquanto a anomalia de 2017, com o Pacífico com condições entre neutralidade e La Niña, se deveu basicamente ao efeito antrópico puro.

Pode-se afirmar, sem sombra de dúvidas, que 2017 foi o ano mais quente sem influência da mais importante fonte natural de variabilidade climática na escala interanual.

Mais uma vez, a estatística

Não apenas a temperatura média do planeta segue subindo, como a ocorrência de recordes de calor vem superando de longe a ocorrência de recordes de frio. É o que mostra, por exemplo, este serviço da NOAA, que indica, dentre outras informações, que nos últimos 365 dias, considerando data por data, houve 53.810 quebras de recorde de maior temperatura máxima nas estações da rede mundial de observações (a Global Historical Climatological Network), enquanto tivemos 18.109 recordes de menor temperatura mínima, uma proporção de 3 para 1.

Já olhando para as quebras de recorde absoluto, tivemos globalmente 144 quebras de recorde de calor para 26 quebras de recorde de frio, uma desproporção ainda maior (5,5 para 1).

 
Como mostra o site "Climate Signs", a desproporção entre recordes de temperatura máxima e recordes de mínima nos EUA vem crescendo de modo acelerado. Hoje, há bem mais recordes de calor do que de frio em contraste com os anos 1950, por exemplo.

Este outro site, o "Climate Signs" mostra de maneira interativa que, nos EUA, os recordes (máxima e mínima combinados) de maior temperatura nos últimos 365 dias superam os de menor temperatura numa proporção de 2,37 para 1, um aumento muito significativo em relação à década de 1990 (1,36 para 1) e principalmente em relação aos anos 1950, quando tínhamos uma situação bem mais próxima à de um clima ainda não desestabilizado (1,09 para 1).

Explicando: estatisticamente, num clima estável, a chance de ocorrer um recorde local de frio ou de calor é a mesma. No entanto, num clima em mudança, essas probabilidades ficam desequilibradas, como num dado viciado. O aquecimento global não implica a inexistência de recordes de frio assim como um eventual resfriamento global não implica a inexistência de recordes de calor. O que acontece, porém, é que muda a probabilidade de ocorrência. Recordes de calor hoje estão muito mais prováveis que recordes de frio.

Há negacionistas que se queixam quando uma onda de calor (ou outro evento extremo cuja probabilidade aumenta com o aquecimento global) é usada para ilustrar os impactos das mudanças climáticas. Querem estabelecer uma falsa simetria. A rigor, o mais correto é sempre colocar a questão do ponto de vista da estatística, que indica nitidamente que 3 em cada 4 das ondas de calor atuais está relacionada ao aquecimento global antrópico, mas trata-se de um argumento válido mesmo que essa consideração probabilística não seja colocada de maneira explícita.

Afinal, é o tipo de evento representativo do "novo normal". O oposto ocorre quando uma ou outra onda de frio é usada para "refutar" o conhecimento estabelecido pela comunidade científica. É o mesmo que pegar os dez jogadores em quadra numa partida da NBA como amostra para a população humana (e concluir que a humanidade só é composta de indivíduos do sexo masculino com 2 metros de altura ou mais...).

Estava frio nos EUA, mas fez calor recorde em outros locais

 
"No leste poderá ser a véspera de ano novo MAIS FRIA da história. Talvez possamos usar um pouco desse bom e velho Aquecimento Global do qual o nosso país, mas não os outros, está pagando TRILHÕES DE DÓLARES para se proteger. Agasalhem-se!"


Trump, para variar, com a irresponsabilidade e ignorância costumeiras, conseguiu em duas centenas de caracteres misturar conceitos e mentir sobre valores financeiros. Mas não obstante o destaque dado pela mídia e apesar da bravata infantil de Trump, o frio recorde no leste dos EUA não apenas não era representativo de tendências de longo prazo como sequer era representativo espacialmente. Tampouco foi capaz de produzir grande impacto nas médias globais mesmo tomando apenas o mês de dezembro especificamente.

Vejamos?

 
Anomalia de temperatura para o mês de dezembro/2017

Usando os dados da NOAA (que colocam 2017 como terceiro e não como segundo ano mais quente), constata-se que dezembro do ano passado foi o 4º dezembro mais quente do registro histórico, 1,13°C mais quente do que o normal. Uma anomalia negativa (isto é, temperaturas mais frias do que o normal) aparece nitidamente no Nordeste dos EUA, além de outras regiões do globo incluindo o Pacífico equatorial central e leste, assinatura típica de um evento de La Niña.

Mas, obviamente, a maior parte do mapa está pintada em tons de vermelho, que representam anomalias positivas, e merece destaque justamente o calor anômalo em áreas como o oeste da Rússia e o Alaska, cujas temperaturas ficaram vários graus acima do normal naquele mês. Em meio ao calor anômalo de dezembro de 2017, vale ressaltar a onda de calor na Austrália, com um subúrbio de Sidney atingindo impressionantes 47,3°C.

 
Rankings de temperatura para o mês de dezembro nos EUA,
por estado: 1 = recorde de frio, 123 = recorde de calor.

Mesmo considerando apenas os EUA e apenas o mês de dezembro, os dados da NOAA não deixam dúvida: o sinal que prevalece nos recordes não é o do frio a Nordeste, mas o calor a Sudeste, como mostra a figura ao lado. Enquanto nos estados do Nordeste tivemos temperaturas médias mensais que ficaram entre as 40 a 50 mais frias em 123 anos de registro histórico, do outro lado do país a situação foi completamente oposta. Além do Alaska, que esteve em média 8,7°C mais quente do que o normal, o Arizona teve o terceiro mês de dezembro mais quente desse período e a Califórnia, o quarto mais quente, com Novo México e Colorado também entrando na lista dos estados com anomalias quentes entre as 10 maiores do registro.

Óbvio: a conclusão a que se chega é que uma onda de frio localizada de alguns dias, mesmo severa e que envolva quebras de recordes de temperaturas mais baixas, sequer tem sido suficiente para alterar sensivelmente as estatísticas mesmo ao longo de um mês, especialmente na escala global. Fisicamente não há como, aliás.

Por conservação da energia, o calor-extra, acumulado pelo aquecimento global, pode até ser transportado de um lugar para o outro e transferido de uma para outra componente do sistema climático, mas não pode desaparecer num passe de mágica.

Ilusões a esse respeito só deveriam encontrar eco na cabeça de pessoas pouco informadas ou de má fé. O que lamentamos é que nesse rol se encontram alguns jornalistas ignorantes, mas famosos, e alguns políticos com poder de decisão em suas mãos, incluindo o presidente do Estado-nação mais poderoso do planeta...

 

Alexandre Araújo Costa é climatologista.

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