Correio da Cidadania

A resposta, meu amigo, está soprando ao vento...

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Irma, chegando a Cuba. Imagem da NASA.

"Quantas vezes um homem deve olhar para cima antes de conseguir ver o céu?
Sim, e quantos ouvidos um homem deve ter para poder conseguir ouvir as pessoas chorarem?
Sim, e quantas mortes serão necessárias até ele saber que pessoas demais morreram?
A resposta, meu amigo, está soprando ao vento!
A resposta está soprando ao vento..."  

Bob Dylan


A resposta está nos ventos de 297 km/h do Irma; nos 1200 milímetros de chuva do Harvey; nos milhares de mortos nas cheias no sul da Ásia e África. A resposta está sendo esfregada na cara da humanidade e de sua elite capitalista fóssil. A resposta está sendo esfregada nas fuças dos patifes que infestam as redes sociais com negacionismo climático e está sendo pintada em letras garrafais inclusive diante daqueles que se dizem defensores de um mundo justo e até falam de “socialismo”, mas vendem a falsa ideia de que será possível financiar a retirada de pessoas da condição de miséria às custas do “passaporte para o futuro” chamado pré-sal.

Foram inúmeros recordes batidos em menos de um mês, a começar pelo dilúvio na costa do Texas, que descrevemos em nosso artigo anterior (Gaia, a incensurável). Foi o tipo de chuva que, como mostra um breve estudo, ao extrapolarmos a curva de distribuição de probabilidades de precipitação acumulada, esta só deveria ocorrer uma vez a cada 25 mil anos e, em certos pontos isolados, sendo a chance de ocorrência de menos de 0,0002%, uma vez a cada meio milhão de anos ou mais.
 


Em alguns pontos do Texas, a chuva despejada pelo Harvey seria, teoricamente, aquela que só aconteceria uma vez a cada 540 mil anos!

Com Irma e José já em cena, tivemos pela primeira vez na história três furacões consecutivos a atingirem a categoria 4 ou superior. Pela primeira vez um CAT5 (Irma) atingiu Cuba. Também pela primeira vez dois CAT4 (Harvey e Irma) desembarcaram em território dos EUA no mesmo ano.

Irma foi o furacão de vida mais longa e o que mais produziu energia cinética desde a ocorrência do Ivan (em 2004), com um total de energia equivalente à média de uma temporada de furacões inteira. Além disso, o dia 8 de setembro de 2017 passou à história como aquele em que havia mais energia em furacões no Atlântico na história.

Ainda estamos em setembro, há muitos dias pela frente nesta temporada de furacões, e o número de dias acumulados com furacões de grande porte (categoria 3 ou mais) de 2017 já aparece em 3º no registro histórico (atrás dos longínquos 1899 e 1933). Os ventos de Irma, que chegaram a 297 km/h, foram os mais intensos já registrados na porção aberta da bacia do Atlântico (ficou em 2º, atrás de Allen, considerando a bacia inteira, o que inclui Caribe e Golfo do México). Com três dias consecutivos como categoria 5, o Irma não teve adversário nesse quesito.

A física por trás, não cansaremos de explicar, é relativamente simples. Sobre água quente, o ar úmido e aquecido sobe e produz nuvens, gerando uma baixa pressão na superfície. Pelo “efeito de Coriolis”, isto é, sob influência da rotação da Terra, essa baixa pressão produz ventos horizontais, que extraem mais vapor e energia do oceano. Assim, o fenômeno evolui das fases de depressão tropical, tempestade tropical, até chegar a furacão, com ventos de mais de 119 km/h (CAT1) e a formação do olho. Em outras palavras, o furacão surge e se mantém enquanto houver água quente sob ele. Eventualmente, podem chegar a CAT3 (ventos de mais de 178 km/h), limite para ser classificado como “de grande intensidade” ou, como o Irma, entrar na categoria mais alta, CAT5, na qual os ventos excedem 252 km/h.

 
Da esquerda para a direita: Kátia, Irma e José

No momento, o planeta tem um desequilíbrio energético devido ao excesso de gases de efeito estufa na atmosfera, com destaque para o CO₂, de 2,29 W/m² (watts por metro quadro, medida de intensidade da energia solar). Esse calor equivale à explosão de 18 bombas de Hiroshima a cada segundo. E 93% dele se acumulam justamente onde? Nos oceanos, já que pelo elevado calor específico da água, os oceanos funcionam como o maior reservatório térmico do planeta.

Mas mesmo em seu gigantismo, os oceanos terrestres não conseguem acumular energia indefinidamente e em algum momento precisam liberá-la para a atmosfera e os furacões, com muita energia térmica convertida em cinética, e liberando calor latente nas porções superiores da atmosfera, são muito eficientes nesse sentido. Em suma, o que esperar de um mundo 71% coberto por oceanos se estes se aquecerem? A resposta é óbvia: as condições se tornam não apenas mais favoráveis para a formação de furacões, mas mais favoráveis para a formação de furacões cada vez mais intensos.

Daí, se o combustível para furacões é água quente, a irresponsável liberação de gases de efeito estufa que aquecem os oceanos é garantia de abastecimento para eles. Abastecer carros, caminhões e termelétricas com carvão, gás e derivados de petróleo é também abastecer essas bestas-feras. A relação com o aquecimento global é cristalina e negar tal fato é uma demonstração de ignorância, pura e simples. Claro, na era do narcisismo virtual, tem gente que se encanta com a própria estultice.
 
A batalha segue sendo a de vencer os setores da mídia e o negacionismo nas redes, cuja agenda é, não importando quais os tamanhos das evidências, evitar que “caia a ficha” e a sociedade se aperceba da dimensão do risco climático e da urgência em enfrentar a questão. Em meio ao luto pelas vidas perdidas e aos esforços de reconstrução material nas pequenas ilhas caribenhas, em Cuba e nos EUA, acreditem, cinicamente dizem que não devemos falar de aquecimento global no momento, “em respeito”. No Titanic, diriam "não é hora de falar de icebergs". Cínicos, não querem que se mude nada! No Titanic, insistiriam: "toca, orquestra, toca".

Até seu instinto de autopreservação de classe (dos ricos) é precário, pois se iludem de que herdarão o mundo. No Titanic, ordenariam "Tranquem os porões!”, confiantes de que tudo seriam flores nos botes. Mais ridículo ainda, têm seus cães de guarda negacionistas enlouquecidos que seguem negando. Num Titanic diante de um iceberg gigante, afirmariam: “podem seguir em frente. Não tem como este navio afundar!".

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Alexandre Araújo Costa é cientista e autor do blog O que você faria se soubesse o que eu sei?
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