Correio da Cidadania

Gaia, a incensurável

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Nesta semana, uma cientista da Northeastern University recebeu uma mensagem do Departamento de Energia dos EUA em que lhe foi solicitado que fossem retiradas do resumo do projeto por ela submetido (e aprovado para financiamento) as palavrinhas mágicas “climate change” (mudança climática).

Na verdade, o e-mail do(a) funcionário(a) é bastante explícito, pois fala abertamente da necessidade de literalmente “remover” termos como “climate change” e “global warming” (aquecimento global), a fim de se adequar a “restrições orçamentárias da presidência”. A pesquisadora publicou um print desse e-mail em sua página pessoal no Facebook, mas retirou posteriormente.

Nele, aparecia o resumo original, que mostra que a pesquisa está voltada para o comportamento dos “sapais” (ecossistema costeiro alagado pela água salgada) em condições de excesso de nitrogênio, o que poderia comprometer a sua capacidade de sequestro de carbono e até, no processo de decomposição, fazer com que eles liberem CO₂ e intensifiquem o efeito estufa.

 
A Professora Jennifer Bowen, da Northeastern University, foi surpreendida com um e-mail que impunha que a expressão "mudança climática" fosse retirado do resumo do seu projeto.

Escandalosamente, não foi a única ocorrência. Por mais que o DOE tenha publicamente desmentido Nature revelou outro caso, referente ao mesmo edital, e que é igualmente absurdo. Trata-se do projeto de Scott Saleska, da Universidade do Arizona, cujo foco é a decomposição de plantas no permafrost, com todas as implicações mais do que óbvias para as mudanças climáticas em função da liberação de metano e CO₂ nesse processo.

Mas esta não é a primeira manifestação de censura por parte da administração Trump. Na realidade, desde a posse, os ataques à Ciência do Clima foram incessantes. Já em janeiro o chefe de programas do Serviço de Conservação de Recursos Naturais (Natural Resources Conservation Service, NRCS), ligado ao Departamento de Agricultura (USDA) havia enviado um e-mail para os seus subordinados em que dizia que “uma das prioridades da administração anterior não é consistente com a nova administração, mudança climática”.

Sucessivos e-mails de funcionários em pânico se seguiram, com as pessoas querendo saber quais seriam as “palavras corretas” a serem empregadas e se haveria problemas de usar o termo proibido em publicações que não fossem do USDA. Se isso não for indicativo de um clima de terror, o que seria?

Como se isso já não fosse assustador o suficiente, uma missiva da própria Diretora de Solos do USDA traça as diretrizes da censura, ao indicar que “mudança climática” deveria ser trocada por “extremos de tempo”, “adaptação à mudança climática” por “resiliência a extremos meteorológicos”, “sequestrar carbono” e “reduzir os gases de efeito estufa” por “aumentar a matéria orgânica no solo” e assim sucessivamente. Estes e outros casos foram documentados, por exemplo, pelo periódico britânico The Guardian.

 
O novo Index Librorum Prohibitorum trumpiano, expresso na missiva do Departamento de Agricultura. Lembra totalmente a perseguição a Galileu, Copérnico e Giordano Bruno.

A censura imposta por Trump e seu time de negacionistas no governo é certamente grotesca e abertamente nociva, mas é também uma demonstração de até que ponto ilusões fundadas em uma ideologia distante da realidade podem chegar. Enterrar a cabeça na areia, não mencionar o termo e, pior, obrigar todo mundo a fazer o mesmo em momento algum teria o efeito de fazer o problema desaparecer. Pelo contrário, a imprecaução apenas amplia a vulnerabilidade.

E eis que Gaia, diferente dos funcionários amedrontados e até de vários cientistas que não assumiram os riscos da exposição e preferiram não partir para um confronto aberto, falou. De uma maneira impossível de ser silenciada. Como aplicar censura a Harvey, o furacão que inundou a região de Houston?
 

Pressão de vapor de saturação em função da temperatura: o crescimento não-linear desta função tem enormes implicações para o futuro humano sob um clima assolado por extremos.


Eis que novamente entramos na discussão que já fizemos quanto aos incêndios florestais na Europa e sobre os deslizamentos em Serra Leoa, o de que o aquecimento global, como um terrível crupiê, é capaz de produzir, com sua roleta viciada, mais catástrofes. Neste caso, evocamos novamente a chamada equação de Clausius-Clapeyron, a lei da termodinâmica que, de maneira simplificada, nos diz que quanto mais quente ficar a atmosfera mais ela vai ser capaz de armazenar água, o que tende a exacerbar tanto secas quanto tempestades.

Por exemplo, a 0°C e pressão do nível do mar, a atmosfera terrestre pode conter até 3,8 gramas de vapor d’água para cada quilograma de ar. Acrescente-se mais vapor e este condensará. Já a 10°C, o valor cresce para 7,6 gramas por quilograma, chegando a 14,5 para 20°C. A 30°C, a atmosfera já é capaz de “segurar” mais de 26 gramas de vapor para cada quilograma de ar. Se a atmosfera puder ser comparada a um balde, que armazena água (ainda que na fase de vapor), o aquecimento global está trocando esse balde por outro cada vez maior.

A equação não é linear, sendo que a capacidade da atmosfera de armazenar vapor não só cresce com a temperatura como cresce mais rapidamente quanto mais quente esta ficar. Um aumento de um décimo de grau na temperatura saindo de 10°C para 10,1°C faz com que se possa acrescentar meros 0,05 gramas de vapor para cada quilograma de ar. Mas numa atmosfera a 30°C, a mesma variação de 0,1°C permite acrescentar três vezes mais vapor d’água (0,15 gramas por quilograma de ar).

 
O Harvey chega à costa dos EUA. Vista da Estação Espacial.
Créditos: NASA.

No caso de um furacão, que é uma tempestade que se forma sobre oceanos quentes, já tivemos a oportunidade de explicar porque esperar que eles se tornem mais violentos quando analisamos, em nosso blog, os casos do Haiyan e do Patrícia, mas é fundamental recuperar e enfatizar uma informação a respeito: a quantidade de água que essas tempestades podem despejar e como isso se relaciona com um planeta aquecido. Cada décimo de grau a mais importa.

As águas do Golfo do México, próximo à costa texana, estavam com temperaturas entre 0,5 e 1°C acima dos valores típicos para o clima presente, o que implica em algo provavelmente de 1,5 a 2 graus a mais, se compararmos com o clima pré-industrial, o que nos dá 2 a 3 gramas de vapor d’água a mais para cada quilograma de ar! O que acontece quando todo esse vapor se condensa? Uma quantidade inimaginável de água surge, pronta para ser despejada sobre os assentamentos humanos.

 

Já aconteceu com a escala de temperaturas usada na Austrália. Agora é a vez da escala de precipitação nos EUA. O máximo da escala teve de ser alterado.

Enquanto escrevo, há localidades no Texas em que a chuva total já se aproxima de 800 mm. A barra de cores usada pelo Serviço Meteorológico (o National Weather Service) teve de ser mudada, por que o limite superior era de 30 “inches” (polegadas), o que equivale, no sistema métrico, a 762 mm. E como bem aponta o colega Michael Mann, há outros aspectos ligados ao aquecimento global, para além de termos uma atmosfera que funciona como um “balde maior”.

A elevação do nível do mar agrava a enchente no litoral. O calor distribuído numa camada mais profunda do oceano faz com que tempestades como Harvey, que se nutrem de águas quentes, possam persistir por mais tempo. E até alterações nos padrões de pressão atmosférica, gerando regiões de alta pressão mais persistentes podem, como foi o caso, bloquear a passagem das tempestades, deixando-as praticamente estacionárias.

Instituir ordens para que funcionários das agências de Estado e cientistas reformulem o linguajar escrito nos projetos de pesquisa e artigos é uma ignomínia, mas no limite é algo que pode ser imposto pela força por um governo negacionista discricionário. Mas isso não muda em nada as leis da Física, que o Sistema Terra obedece à risca.

Não é apenas que Gaia não negocie. Ela ignora as palavras humanas, os devaneios humanos, as bravatas negacionistas. Ela só não ignora nossas ações. E seu comportamento muda, sim, se lhe mudarmos a composição química da atmosfera, tratando esta como a lata de lixo em que despejamos incansavelmente CO₂ e outros gases de efeito estufa.

Quanto mais se censurar a Ciência do Clima, agindo ao contrário do que esta recomenda, mais se abrirá espaço para que Gaia, transformada numa Medeia vingativa, fale. E que não esqueçamos: Harvey poderá vir a se confirmar como o maior evento de inundação da história dos EUA e ainda assim ser um mero aviso.

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Alexandre Araújo Costa é cientista e autor do blog O que você faria se soubesse o que eu sei?

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