Correio da Cidadania

Mario Filho, o criador das multidões

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Mario Filho com Pelé
                                                           
 “Mario Filho foi tão grande, que deveria ter sido enterrado no Maracanã”.
Nelson  Rodrigues.
   
O jornalismo esportivo brasileiro hoje se arrasta pelas TVs, jornais e rádios nas suas mais variadas vertentes, cultivando e produzindo ídolos, fazendo negócios espúrios com marcas esportivas, empresas multinacionais e jogadores famosos, visando lucros espetaculares e escondendo dirigentes e jogadores corruptos dos noticiários. Dispõe de fantásticos recursos tecnológicos, com jornalistas formados em universidades famosas, com doutorado e pós-doutorado, mas marcados por doutrinas baseadas no reacionarismo e extrema miséria intelectual. Mas nem sempre foi assim.
 
A raiz do jornalismo esportivo nacional remonta à década de 30 do século 20 e tem seu nome estreitamente vinculado a um novo momento político e econômico da vida nacional, assim como também diretamente relacionada a um jornalista em particular: Mario Rodrigues Filho (1908-1966). Mario Filho teve uma vida breve e extremamente produtiva, morrendo aos 58 anos. Vindo de uma família de 13 irmãos, o pai, Mario Rodrigues, era jornalista político em Recife.

Mudaram-se para o Rio de Janeiro em 1916, devido a disputas e divergências políticas das elites locais. Logo a seguir o pai organizou seu próprio jornal, “A Manhã”, do qual Mario Filho ocupou o papel de gerente então com 18 anos, administrando a página de “Arte e Cultura”, para logo depois assumir também a seção de esportes, naquela época sem muito prestígio. É nesse momento que tem início um novo jornalismo esportivo, pois a linguagem esportiva começou a mudar, saindo das antigas normas do doutrinado esporte “bretão”.    
      
Mario Filho foi buscar nas arquibancadas, bares, ruas e cafés a forma afetiva como o povo via o futebol, fazendo um diálogo constante com o público e, de maneira criativa, alterando os termos utilizados no futebol, criados pela elite, assim como criando outros baseados no discurso popular. O futebol das elites com designações de jogadas verbalizadas em inglês foi ficando no passado e Mario começou a usar termos em português, aproximando-se da maioria dos aficionados.

Em 1930, Roberto Marinho, tendo em vista o sucesso de Mario Filho, convida-o para trabalhar no “O Globo”, onde ele expandiu sua rede de contatos com o jornalismo esportivo, incorporando políticos e intelectuais. No então famoso Café Nice, onde se reuniam jogadores, jornalistas, intelectuais e compositores como Noel Rosa, Mario produzia uma nova linguagem jornalística. Estava em todas as rodas da linguagem popular do futebol.

Quando o assunto era Flamengo, lá estava ele no café Rio Branco, quando o debate envolvia o Vasco da Gama, Mario Filho estava no Lamas e no Largo do Machado. Nos grandes momentos do América no Mourisco, ia para a confeitaria Colombo e também frequentava a livraria José Olympio, garantindo encontros com intelectuais quando fazia inúmeras entrevistas com convidados. Mario Filho foi beber água no meio popular para criar uma linguagem nacional no futebol.

Outro momento importante na projeção de Mario Filho foi a compra do “Jornal dos Sports”, com a qual aumentou mais ainda sua rede de contatos, ampliando a abordagem sobre o esporte, através de intelectuais como José Lins do Rego, José Lyra Filho, Manuel Vargas Neto.

Mario Filho viveu um momento histórico muito rico da luta de classes no Brasil, marcado por disputas políticas intensas entre a classe dominante e os movimentos sociais, e as ideias aí desenvolvidas influenciavam enormemente Mario Filho e estão presentes em seu discurso.

O Rio de Janeiro, onde Mario Filho morou, era o centro do poder e da produção cultural brasileira nos anos entre 1920 e 1950. O processo histórico havia acumulado mudanças sociais, políticas econômicas e culturais profundas, Mario Filho é aprendiz desta situação e protagonista destas transformações no futebol e no jornalismo esportivo. Em 1922, no Teatro Villa Lobos, surgiu a semana da Arte Moderna com intelectuais e artistas como Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Mario de Andrade e Oswaldo de Andrade, marco que procura definir nossa independência da produção cultural e a afirmação de uma cultura nacional, renovação da linguagem e experimentação na criação cultural, uma vanguarda modernista.

Da mesma forma, o rádio começou a chegar à vida dos brasileiros, de maneira tímida, mas logo se projetou com força imensa, fazendo todo processo de integração nacional. O catarinense, por exemplo, aprendeu a amar o Grêmio e o Internacional através das rádios Guaíba e da Gaúcha, sem nunca ter visto as equipes.

O esporte então não poderia ficar de fora de todo esse processo de descoberta de uma cultura nacional, que resgatasse a formação histórica de índios, negros, mulatos, imigrantes brancos. Tudo constituía uma nova nação, um novo povo, como diria Darcy Ribeiro, um povo nada inferior, pelo contrário, forte e buscando sua afirmação com uma identidade cheia de qualidades, aspirações e criações. Mario Filho mergulhou neste universo e concretizou todo o debate ao seu redor numa publicação fantástica e consagrada: o livro “O negro no futebol brasileiro”.
 

Um clássico do jornalismo esportivo

“O negro no futebol brasileiro” foi publicado pela primeira vez em 1947. Uma edição limitada a cem exemplares, estrategicamente direcionada aos intelectuais, políticos e pessoas que ele julgava importantes para a época. Mario Filho pegou carona nas manifestações, nos movimentos populares, sindicatos, no fortalecimento dos clubes de futebol e de seus campeonatos estaduais, regionais. Ele percebia a força do futebol assim como a sua raiz conservadora inglesa, vinculando os nomes e designações esportivas ao palavreado inglês.

Mario Filho entendeu, com clareza e inteligência, o processo de mestiçagem que já tomava conta do futebol brasileiro de baixo para cima. Negros, índios, italianos, alemães, o povo pobre, as massas, todos, de uma forma ou de outra, estavam construindo a raiz do futebol brasileiro. Neste período ele era amigo de Gilberto Freyre, com quem conversava muito, e lhe seduziu a ideia de que o futebol, a partir da ascensão dos pobres, constituía a formulação da “democracia racial brasileira”, o conceito de Freire que incorporou. Mas, depois de alguns anos, em outras publicações, diante da realidade explícita dos negros e pobres no futebol, fez questão de renegar. Entendia então que a democracia racial era uma falácia.

Mario Filho também esteve presente no debate e nas determinações da Copa do Mundo de 1950 e colocou seu Jornal dos Sports como instrumento de discussão acerca da necessidade de construção do maior estádio do mundo, o Maracanã, como símbolo das grandes massas. Defendeu com audácia o projeto arquitetônico de Mendes de Moraes e o local para a construção, do qual Carlos Lacerda discordava. Defendia um estádio monumental para a época, e não mais a reformulação do estádio de São Januário, onde Getúlio Vargas festejava o 1º de maio.

Defendeu também o nome, Maracanã, nome indígena, que advém de maracá, ou seja, um chocalho, que emite um som turbulento, uma música e a terminação nã (semelhante). Esse nome apareceu baseado em um papagaio grande do norte que recebia o nome de maracá-guaçu (dado pelos indígenas), que emitia um som semelhante ao do chocalho e era abundante na região do Derby carioca, onde foi construído então o estádio maior do mundo; Tinha, ainda, o mesmo nome do rio que passa na frente do estádio e recebe o nome do bairro onde está localizado.

Para garantir o Maracanã, Mario Filho criou uma coluna específica no Jornal dos Sports, denominada: “A batalha do Estádio”, na qual o perfil dos debates se traduzia em um de seus artigos: “Quem obstrui os trabalhos são os inimigos do esporte”. Mario filho defendia a proposta de estádio para as grandes massas, onde pobres, ricos, classe média, negros, brancos, enfim, toda a gente pudesse se encontrar, algo que dimensionasse o nacionalismo, o orgulho carioca e brasileiro, o maior e melhor estádio do mundo, o estádio do povo, em pleno governo de Eurico Gaspar Dutra.

Sua batalha acabou vitoriosa em 17 de junho de 1950, data da inauguração com o jogo entre o selecionado do Rio de Janeiro contra o de São Paulo. O Estádio recebeu o seu nome e Nelson Rodrigues afirmou solenemente que este deveria ter sido o local do seu túmulo.

No período neoliberal da última Copa de 2014, realizada no Brasil da então presidente Dilma, toda esta perspectiva rompeu-se, pois o estádio das multidões de Mário Filho passou a ser elitizado. O povo, a massa pobre, foram jogados para fora do estádio em nome de um modelo europeu e das exigências da multinacional FIFA.

Tristemente, o jornalismo esportivo brasileiro, já totalmente colonizado, apoiou tais mudanças e calou a voz e a memória de Mário Filho. Não para sempre, porque há quem lembre. E enquanto a história continuar sendo contada e recontada haverá chance de mudança. Mario Filho teria vergonha do jornalismo esportivo de hoje.

Nilso Ouriques é professor de educação física.
Publicado originalmente no Instituto de Estudos Latino-Americanos da UFSC.

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