Correio da Cidadania

Sangue, suor e lágrimas

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Gabriel Brito, da Redação

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Cinelândia

Uma tarde-noite de muita comoção por diversas capitais marcou os momentos do velório e enterro da vereadora socialista Marielle Franco e de Anderson Gomes, que fazia bico de motorista e também morreu naquilo que se evidencia como emboscada de milicianos – nesta sexta já se sabe que a munição foi contrabandeada da Polícia Federal, num lote comprado em 2006.

No Rio de Janeiro dezenas de milhares se movimentaram pela Cinelândia e ruas do centro. Em São Paulo, os protestos foram os mais dinâmicos porque se somaram com a forte mobilização que servidores públicos municipais fizeram em frente à Câmara dos Deputados na quarta e na quinta, a fim de barrar a reforma da previdência municipal que o prefeito ultraliberal deseja emplacar, antes de iniciar sua campanha rumo ao governo do estado.

Na cidade da vereadora, a comoção foi fortíssima, desde a cerimônia de velório da Câmara até o enterro de Marielle, no Cemitério do Caju, finalizada com grande concentração de pessoas no centro da cidade por quase toda a noite.

Muitas pessoas choravam e bradavam indignação, fossem em pequenos ou grandes grupos, com ou sem aparelhagens de som de algum alcance.

Em São Paulo, eram no mínimo 50 mil pessoas no centro da cidade a acompanhar a audiência pública que discutiu o projeto de lei 621/2016, marcada somente após as fortes confrontações iniciadas pela Polícia Militar na véspera e respondidas com vigor pelos presentes.

Como se vê, a classe política mais uma vez se viu à vontade para aprovar decisões que visam satisfazer os arautos da austeridade econômica sem grandes consultas e teve de recuar após ser intimidada pela massiva e combativa mobilização.

No entanto, era uma tarde de inconformismo e tristeza, de modo que em lugar nenhum do Brasil a polícia militar ousou reprimir, cercear ou provocar os manifestantes, que mantiveram o caráter pacífico das marchas. À noite, ambas se encontraram entre a Avenida Paulista e a Rua da Consolação.

Resta saber se será possível manter esse viés pacífico das manifestações políticas a considerar a espiral de violência que marca o país e levanta questionamentos sobre a possível infiltração de grupos mafiosos dentro do Estado Brasileiro, a exemplo de México e Colômbia, dois países corroídos em suas instituições e denominados por diversos analistas como narco-Estados.

Sobre o acontecimento inominável, fica patente que as armas de que dispõem o crime organizado são conseguidas por dentro das fronteiras, em conluio com corrompidos agentes de Estado.

Enquanto Raquel Dodge, Procuradora Geral da República, se desdiz de um dia para outro sobre a possível federalização da investigação dos assassinatos, precisamos urgentemente questionar até onde estará instalada a ramificação das facções criminosas nos aparatos do poder.

Que as milícias são filhos bastardos de um Estado falido e incompetente na gestão das sociedades todos já sabem. E que as milícias estão em todas as grandes metrópoles e capitais do país já é outro dado firme.

No entanto, a profundidade desses laços é que mereceria uma amplíssima investigação. O problema é saber quem faria esse movimento.

Por ora, o governo tenta mostrar sensatez, lamenta o ocorrido e diz que continua a acreditar na intervenção federal no Rio. De outro lado, grupos e entidades de esquerda dizem se tratar de instrumentalização da tragédia.

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São Paulo

Mas é preciso cautela. De fato, é muito incômodo para o governo e os defensores da democracia liberal ver a 5ª vereadora mais votada de uma cidade como o Rio ser morta de forma tão bestial e covarde. Mais ainda em ano eleitoral dentro de um quadro de instabilidade institucional que anda no fio da navalha, complementado por uma crise econômica monumental.

Isso porque o alardeado fim da recessão, definição tecnicamente válida, pois o PIB nacional cresceu 1%, não se reflete em nada nos bolsos do cidadão médio. O resultado se deu através das vendas do agronegócio, que prospera sozinho no meio de um país em frangalhos. Além do mais, vem acompanhado da informação de que o desmatamento aumentou mais de 50% nos últimos dois anos, consequência mais que óbvia da extinção – em termos práticos – do Código Florestal e descontrole total na fiscalização do campo brasileiro.

Ou seja, um crescimento baseado em premissas trágicas sob todos os aspectos. De modo que a mídia mantém seu esforço de vender otimismo às pessoas, com notícias que falam de 50 mil vagas de empregos abertas em determinado período, sem jamais qualificar o tipo e condições de tais vagas, entre outras tentativas malsucedidas de dourar a pílula.

Dessa forma, é praticamente impossível conter, mesmo pela bala, a insatisfação popular e o próprio desespero social. E, com uma pauta neoliberal tão agressiva, é dificílimo não atribuir o aumento da criminalidade e do próprio Estado paralelo a tais condições socioeconômicas, ditadas por uma classe política que representa tão somente a si mesma e os monopólios que mandam na economia nacional.

Por isso mesmo também devemos olhar com cautela a atitude do Exército. Para além de coléricas críticas à sua mera aparição em terra arrasada, é preciso notar as entrelinhas das declarações de generais, em especial o interventor Braga Neto.

As forças armadas não estão satisfeitas com o papel que lhes foi incumbido e sabem perfeitamente do uso político e eleitoral que governos destruídos perante a opinião pública – em especial o de Pezão – estão aplicando sobre elas.

Sabem que vão enxugar gelo, mesmo que consigam um ou outro sucesso operativo ocasional, a exemplo da diminuição do número de tiroteios, divulgada nesta sexta. O que não significa que tenham sobrado poucos tiroteios...

Desse modo, não parece tão útil ou estratégico bradar contra a postura crítica de Globo e Veja. O semanário paulistano tem na capa desta sexta Marielle e questiona: “a quem interessa matar essa mulher?”, acompanhado de declarações de Temer.

Claro que a matéria não atrela o crime ao caráter mafioso e de crise insolúvel do capitalismo de espoliação primária que marca o Brasil. Mas depois de passar uma década deformando a opinião pública com um viés jornalístico alucinadamente anticomunista, que só serviu para criar sociopatas e cães raivosos que agora pedem passagem, simbolizados na figura de Jair Bolsonaro, é visível uma guinada rumo à razoabilidade nos últimos dois anos.

Aliás, nota-se a pequenez mental e política da família Bolsonaro nestes dias de silêncio e incapacidade de se pronunciar sobre o crime. Perceberam que o discurso armamentista e defesa da violência contra ativistas de direitos humanos – o inimigo imaginário sobre o qual pai e crias fizeram seus nomes – é uma incontrolável caixa de pandora.

Trata-se da pura e simples lei do mais forte num país onde o Estado perdeu o controle sobre parcelas consideráveis da população, como escancaram as milícias, que agem descompromissadas de qualquer prurido político, jurídico e democrático, pelo simples fato de operarem fora deste universo. Ali Bolsonaro é só um fiapo humano, descartável a qualquer momento.

E, apesar do recuo de Dodge, seus assessores já ventilam – de forma aparentemente correta – que os assassinatos de quarta-feira se assemelham muito ao da juíza Patrícia Accioly, morta no Rio por um batalhão quase integralmente tornado milícia.

Portanto, não se trata de uma mera oposição política de esquerda e direita, que supostamente faz o que quer depois do ‘golpe’, como já tentam encampar alguns que passaram os últimos anos distantes das lutas sociais e continuam com a mente completamente voltada ao jogo eleitoral.

O descontrole social é totalmente disfuncional aos próprios interesses dominantes na cena política, institucional e econômica. A repercussão internacional “sem massagem” arranha de forma lastimável a imagem do Brasil, a ponto de por em risco negociações entre Mercosul e União Europeia – sem entrar aqui no mérito de tais negociações. Ou seja, um capitalismo tragado por máfias, ainda que represente sua própria metástase, é uma péssima notícia para seus próprios protagonistas.

O discurso de ódio conservador sai enfraquecido, até por se tratar de algo superdimensionado por redes sociais cada vez mais distantes da concretude dos fatos. Pesquisa da FGV divulgada na tarde desta sexta mostra que apenas 7% das mensagens no Twitter sobre as mortes de Marielle e Anderson tinham conteúdo de ódio. Se juntarmos com as recentes matérias de órgãos diversos, a dar conta da indústria de robôs e perfis falsos financiados por atores políticos, sempre carregados de tais discursos, podemos inferir que no chão social, na cidadania que se encontra e articula, a dita onda conservadora é muito menos potente do que pensamos ao nos conectar a internet e desesperar com estupidez de todo tipo.

Como já escrevemos neste Correio, o pacto social deixou de vigorar no Brasil e estamos diante de uma casta que visa o puro e simples assalto neocolonial, em prazos curtíssimos, de todos os recursos públicos, estatais, humanos e naturais. E antes que as máfias – oficiais ou não – tornem este lugar irrespirável, a mobilização e retorno a pautas combativas, que exijam sem grandes concessões as transformações sociais historicamente aguardadas, são simplesmente a única saída. Caso contrário, nos uniremos apenas para chorar tragédias.

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Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

Gabriel Brito, da Redação

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