Correio da Cidadania

A canção de Daniel Viglietti e a construção da Pátria de todos

0
0
0
s2sdefault


Monica Fonseca Severo, Daniel Viglietti e Leonardo Severo

Era tarde da noite de segunda-feira (30), quando vi a postagem do meu irmão argentino Mariano Vázquez com a foto do cantautor uruguaio Daniel Viglietti empunhando comigo e minha companheira Monica a bandeira da liberdade para os camponeses paraguaios de Curuguaty. Vítima de uma complicação cirúrgica, Viglietti, símbolo da música de protesto latino-americana, havia nos deixado aos 78 anos.

Recordei do abraço e as lágrimas brotaram. “Faço questão de levantar esta bandeira. É uma questão de justiça para aqueles agricultores inocentes jogados na prisão e também para o Paraguai que, com uma das maiores concentrações de terras do mundo, exporta grãos com milhares de famintos”, desabafou. Falou sobre a vontade de voltar a cantar no Brasil e sorriu quando lhe lembrei, faceiro como um fã, de outras quatro oportunidades em que havíamos estado juntos.

Nosso último encontro, junto com as palavras, aconteceu na saída da apresentação musical em Vallegrande, na Bolívia, logo depois do entusiástico discurso de Evo Morales no encerramento das comemorações dos 50 anos da queda em combate do comandante Ernesto Che Guevara naqueles montes. “Evo rima com homem novo, Evo”, havia sublinhado. Mais do que sua melodiosa voz, Viglietti havia irradiado uma mensagem de esperança, profunda, fecunda, anti-imperialista. Uma vibração única, uma harmonia cheia de encanto, sentida e repassada das avós até as crianças de colo.

As lembranças vêm como disparos, em sequência. Recordo de uma entrevista concedida a mim e à jornalista Vanessa Silva, do ComunicaSul, em Caracas, onde foi apoiar a Revolução Bolivariana e o presidente Hugo Chávez, da mesma forma que já havia feito com os sandinistas na Nicarágua. Contou de seu compromisso com a integração dos nossos países e povos tomado pela mesma naturalidade com que dedilhava o violão.

“Sempre senti que tinha duas pátrias. Uma, a de nascimento, o Uruguai, e outra pátria a latino-americana que gosto de chamar de ‘nuestroamericana’ (nossamericana). Inventei esta palavra a partir da expressão de José Martí, que contrapunha a Nossa América, a América deles, do império do Norte. Percebi que as fronteiras são artificiais além da língua e da cultura, que têm seu peso em diferentes regiões, mas estas fronteiras, as aduanas, os escritórios de imigração são invenções feitas para nos dividir. Quando entro no Brasil, na Venezuela, em Cuba ou em tantos países progressistas, sinto que é irreal precisar de passaporte. A canção não tem de pedir vistos para entrar em lugar nenhum. A música entra naturalmente e, quando é necessário, se traduz, como fiz com algumas canções do meu amigo Chico Buarque”.

Sua obra tem o dom único de mesclar a música clássica com o folclore uruguaio e latino-americano, musicar poemas do colombiano César Vallejo, do cubano Nicolás Guillén, do espanhol Federico García Lorca e tantos outros gigantes. Sua grandiosa elaboração tem projeção mundial, sendo interpretada por diamantes de várias nacionalidades como os chilenos Víctor Jara e Isabel Parra, o espanhol Joan Manuel Serrat, o venezuelano Alí Primera e a argentina Mercedes Sosa, sem falar na mágica parceria com o poeta uruguaio Mario Benedetti ou a identidade singular com o cubano Silvio Rodriguez.

Identificado com as lutas sociais de seu tempo, Viglietti reverberou pelo planeta a mobilização pela reforma agrária em A desalambrar (A desaramar, Arrancar as cercas): “Eu pergunto aos presentes se não se puseram a pensar, que esta terra é nossa e não de quem tenha mais/ Eu pergunto se na terra, nunca haverá pensado você, que se as mãos são nossas, é nosso o que nos dê... A desaramar, a desaramar, que a terra é tua e daquele, de Pedro, Maria, de João e José”. E ia direto ao assunto: “Se incomodo com meu canto alguém que anda por aí, lhe asseguro que é um gringo ou um dono do Uruguai”.

Como sou gaúcho da fronteira, nascido próximo ao Uruguai e à Argentina, sempre fui cativado por sua mensagem da Pátria Grande, profundamente vinculada ao seu canto de igualdade e justiça, tão candente quanto presente na letra do “Chueco (“torto”) Maciel”. Este era o apelido do jovem infrator Julio Nelson Maciel Rodríguez, abatido pela polícia uruguaia em junho de 1971, em meio à violência que sacudiu o país vizinho e desembocou no golpe de 1973.

Inconformado com a praga da fome, da miséria e do desemprego que abatia e esmagava a periferia, Maciel – tal qual os guerrilheiros do Movimento de Libertação Nacional Tupamaros contra a ditadura – roubava dos endinheirados, como um Robin Hood de verdade, para distribuir os frutos entre os seus. Nos versos da canção com que Viglietti o imortalizou, vejo a síntese maior de sua mensagem, mais do que imprescindível nestes tempos sombrios de neoliberalismo e neocolonialismo: “os tortos se juntem bem juntos, bem juntos os pés, e logo caminhem buscando a pátria, a pátria de todos, a pátria Maciel, esta pátria torta que não vão torcer com duras correntes, os pés todos juntos vamos vencer”.

Daniel vive!

Leonardo Wexell Severo é jornalista.
Publicado originalmente em Hora do Povo.

0
0
0
s2sdefault