“A grande maioria dos ucranianos não quer esta nova guerra civil”

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Jean Pestiau
05/02/2014

 

 

A Solidaire, semanário do Partido do Trabalho da Bélgica, entrevistou Jean-Marie Chauvier para melhor compreender a situação atual da Ucrânia. Ele é um jornalista e ensaísta belga, especialista em Ucrânia e ex-União Soviética. Conhecendo esses países e a língua russa há muito tempo, colabora hoje para o Le Monde Diplomatique e em diversos outros jornais e sites de internet.

 

Quais são os problemas econômicos mais prementes enfrentados pela população ucraniana, principalmente os trabalhadores, os pequenos camponeses e os desempregados?


Jean-Marie Chauvier. Desde o desmembramento da União Soviética, em 1991, a Ucrânia passou de 51,4 milhões a 45 milhões de habitantes. Esta diminuição se explica por uma baixa taxa de natalidade e um aumento da mortalidade devido, em parte, ao desmantelamento dos serviços de saúde. A emigração é muito forte; 6,6 milhões de ucranianos vivem atualmente no estrangeiro. Numerosas são as pessoas do leste da Ucrânia que foram trabalhar na Rússia, onde os salários são sensivelmente mais elevados, enquanto que aqueles do oeste se dirigiram em sua maioria para a Europa ocidental, por exemplo, para as serras da Andaluzia ou para o setor de construção civil em Portugal. A emigração faz entrar, anualmente, 3 bilhões de dólares na Ucrânia.

 

Enquanto o desemprego é oficialmente de 8% na Ucrânia, uma parte importante da população vive abaixo da linha da pobreza: 25%, segundo o governo, até 80% segundo outras estimativas. A extrema pobreza, acompanhada de subalimentação, é estimada entre 2% a 3% até 16%. O salário médio é de U$ 332 dólares por mês, um dos mais baixos da Europa. As regiões mais pobres são as regiões rurais a oeste. As alocações de desemprego são baixas e limitadas no tempo.

 

Os problemas que mais pressionam acentuaram-se pelos riscos ligados à assinatura de um tratado de livre comércio com a União Europeia (UE) e à aplicação de medidas preconizadas pelo FMI. Existe, portanto, a perspectiva de fechamento de empresas industriais, sobretudo no leste. Ou a recuperação, reestruturação e desmontagem das multinacionais. No que diz respeito às terras férteis e à agricultura, vê-se no horizonte a ruína da produção local, que é assegurada atualmente pelos pequenos camponeses e pelas sociedades por ações herdeiras dos kolkhoses e a chegada de grande número de multinacionais da agro-alimentação. A compra maciça de terras férteis se acelerará. Desse modo, Landkom, um grupo britânico, comprou 100.000 hectares (ha) de ricas terras e um fundo de reserva russo, Renaissance, comprou 300.000 hectares de terras (este número representa um quinto das terras agrícolas da Bélgica).

 

Para as multinacionais, há, portanto, bons pedaços a tomar: certas indústrias, os oleodutos e gasodutos, as terres férteis e a mão de obra qualficada.

 

Quais seriam as vantagens e desvantagem de uma aproximação com a União Europeia?

 

Jean-Marie Chauvier: Os ucranianos – a juventude antes de tudo – sonham com a UE, com a liberdade de viajar, com as ilusões de conforto, bons salários, prosperidade etc., a respeito dos quais os governos ocidentais especulam. Mas, na realidade, não se trata da adesão da Ucrânia à UE. Não se trata da livre circulação de pessoas. A UE propõe poucas coisas a não ser o desenvolvimento do livre comércio, da importação massiva de produtos ocidentais, da imposição de padrões europeus nos produtos suscetíveis de serem exportados para a UE, o que levanta temíveis obstáculos à exportação ucraniana.

 

A Rússia – em caso de acordo com a UE – ameaça fechar seu mercado aos produtos ucranianos. O mercado russo já está fechado. Moscou ofereceu compensações como a redução de um terço do preço do petróleo, uma ajuda de 15 bilhões de dólares, união aduaneira com a própria, com o Cazaquistão, com a Armênia... Putin tem um projeto euro-asiático que engloba a maior parte do antigo espaço soviético (inclusive os países bálticos), reforçando os laços com um projeto de coopeeração industrial com a Ucrânia e integrando as tecnologias em que a Ucrânia era performática desde os tempos da URSS: aeronáutica, satélites, armamento, construções navais, modernização dos complexos industriais. É, evidentemente, a parte leste da Ucrânia que está mais interessada nessa perspectiva.

 

O senhor poderia nos explicar as diferenças regionais da Ucrânia?

 

Jean-Marie Chauvier: Não há um Estado-Nação homogêneo na Ucrânia. Há uma diversidade de Ucrânias. Há contradições entre as regiões. Há uma diversidade de história. Rússia, Bielorrússia e Ucrânia têm um berço comum: o Estado dos eslavos orientais (séculos 9 a 11), a capital Kiev, que é chamada “Rous”, “Rússia” ou “Ruthenia”. Além disso, seus cursos se diferenciaram: línguas, religião, pertencimentos a Estados. O oeste foi ligado muito tempo ao Grande Ducado da Lituânia, aos reinos poloneses, ao Império Áustro-Húngaro. Depois da revolução de 1917 e da guerra civil, nasceu a primeira formação nacional chamada “Ucrânia”, co-fundadora em 1922 da URSS. A parte ocidental anexada notadamente pela Polônia foi “recuperada” entre 1939 e 1945, pois, ao território atual da Ucrânia, agregou-se ainda a Crimeia, em 1954.

 

O leste da Ucrânia é mais industrializado, mais operário, mais de língua russa, enquanto que o oeste é mais rural, camponês, língua ucraniana. O leste é ortodoxo, ligado ao patriarcado de Moscou, enquanto que o oeste é ao mesmo tempo grego-uniate, católico e ortodoxo, ligado ao patriarcado de Kiev desde a independência em 1991. A igreja uniate Católica, notadamente a oeste na Galícia, foi tradicionalmente germanófila, muitas vezes em conflitos com a igreja católica da Polônia. O centro da Ucrânia, com Kiev, é uma mistura de correntes do leste e do oeste. Kiev é, muito majoritariamente, de língua russa, suas elites são pró-oposição e muito ligadas aos ultraliberais de Moscou.

 

A Ucrânia, portanto, foi dividida – historicamente, culturalmente, politicamente – entre o leste e o oeste, e não há sentido algum em jogar uma parte contra a outra, sob o risco de provocar a sua divisão, ou seja, a guerra civil, o que está, sem dúvida, no cálculo de alguns. A força de provocar a ruptura, como fazem os ocidentais e seus soldadinhos atuais, pode bem chegar ao momento em que a UE e a OTAN obterão “sua parte”. Mas também a Rússia pegará a sua!

 

Não seria o primeiro país em que se haveria feito, deliberamente, explodir. Ninguém deve ignorar também que a escolha europeia será igualmente militar: a OTAN seguirá e logo se colocará a questão da base russa de Sebastopol na Crimeia, majoritariamente russa e estrategicamente crucial para a presença militar no mar do Norte. Pode-se imaginar que Moscou não deixará instalar uma base norte-americana nesse lugar!

 

O que pensa da maneira pela qual o atual conflito está sendo apresentado pela nossa mídia?

 

Jean-Marie Chauvier: É um faroeste! Os bons “pró-europeus”, os maus “pró-russos”. É maniqueísta, parcial, ignorante da realidade da Ucrânia. Na maior parte do tempo, os jornalistas entrevistam as pessoas que pensam como eles, que dizem o que os ocidentais têm vontade de ouvir, que falam inglês ou outras línguas ocidentais. E, ademais, existem mentiras por omissão.

 

Primeiro, houve uma notável ausência: o povo ucraniano, trabalhadores, camponeses, submetidos a choques de capitalismo, à destruição sistemática de todas as suas conquistas sociais, os poderes da máfia de todos os lados.

 

Há em seguida a ocultação ou a minimização de um fenômeno que se qualifica de nacionalista e que é, de fato, neofascista, ou seja, claramente nazista. É principalmente (mas não unicamente) localizado no partido SVOBODA, seu chefe Oleg Tiagnibog e a região ocidental que corresponde à antiga “Galícia Oriental” polonesa. Quantas vezes tenho visto, escutado, lido na mídia, citações deste partido e de seu chefe como “opositores”, sem qualificação?

 

Fala-se de jovens simpáticos, “voluntários da autodefesa”, vindos de Lviv (Lwow, Lemberg) à Kiev, quando se trata de comandos formados pela extrema-direita nessa região (Galícia) que é a sua fortaleza. Pesada é a responsabilidade daqueles – políticos, jornalistas – que jogam este jogo a favor de correntes xenófobas, russofóbicas, antissemitas, racistas, celebrando a memória do colaboracionismo nazista e da Waffen SS, do qual a Galícia (não toda a Ucrânia!) foi a pátria.

 

E enfim, a mídia omite as múltiplas redes financiadas pelo ocidente (EUA, UE, Alemanha) para a desestabilização do país, as intervenções diretas de personalidades políticas ocidentais. Imaginemos a zona neutra em Bruxelas ocupada durante dois meses por dezenas de milhares de manifestantes, exigindo a demissão do rei e do governo, tomando de assalto o Palácio Real, e aclamando ministros russos, chineses ou iranianos na tribuna! Imagina-se isto em Paris ou em Washington? É o que se passa em Kiev, na praça Maïdan.

 

Meu espanto aumenta a cada dia ao constatar a diferença entre as “informações” dadas por nossa mídia e as que posso coletar nas mídias ucranianas e russas. As violências neonazistas, as agressões antissemitas, as tomadas de assalto das administrações regionais: na nossa grande mídia, nada disso! Só se ouve um ponto de vista: os opositores de Maïdan. O resto da Ucrânia não existe!

 

Quais são os principais atores atuais? Quem são os manifestantes em Kiev e em outros lugares? O que é que os federaliza? Qual é a natureza do poder atual?

 

Jean-Marie Chauvier. A oligarquia industrial e financeira, beneficiária das privatizações, está dividida por grupos rivais entre a Rússia e o Ocidente. Viktor Ianoukovitch e seu Partido das Regiões representam os clãs (e a maior parte das populações) do leste e do sul. O Partido das Regiões ganhou as eleições presidenciais e parlamentares no outono de 2013. Há igualmente fortes disputas políticas no oeste, na Transcarpatia (também chamada Ucrânia subcarpática), uma região multiétnica que resiste ao nacionalismo. Mas a crise atual, as hesitações e fraquezas do presidente podem lhe custar muito caro e desacreditar o seu partido.

 

O poder atual é altamente responsável pela crise social que favorece a extrema-direita e as enganadoras sirenes da UE e da OTAN. Poder impotente, de fato, defensor de uma parte da oligarquia, e não da “pátria” a que diz pertencer. Ele favoreceu a extensão da corrupção e das práticas mafiosas.

 

Diante dele, três formações políticas que têm sua base, sobretudo, no oeste e também no centro da Ucrânia. Há, primeiramente, o Batkivschina, “Pátria”, cujo dirigente é Arseni Iatseniouk. Ele sucedeu Ioulia Timochenko, doente e prisioneira. Em seguida, o partido Oudar (Partido Democrático das Reformas), cujo líder e fundador é o ex-boxeador Vitali Klitschko. É o queridinho de Angela Merkel e da UE. Os quadros do seu partido são formados pela fundação Adenauer. Por fim, o partido neofascista Svoboda (“Liberdade”) dirigido por Oleg Tiagnibog. O Svoboda filia-se diretamente à Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN) – fascista, o modelo de Mussolini –, fundado em 1929 na Galícia oriental, então sob o regime polonês. Com a chegada de Adolf Hitler em 1933, tomou contato com o mote “nós nos serviremos da Alemanha para avançar nossas reinvidicações”.

 

As relações com os nazistas foram algumas vezes tumultuosas – porque Hitler não queria uma Ucrânia –, mas todos estavam firmemente unidos no seu objetivo comum de eliminar os comunistas e os judeus e de sujeitar os russos. Os fascistas ucranianos opõem o caráter “europeu” da Ucrânia àquele “asiático” da Rússia. Em 1939, Andriy Melnik dirigia o OUN, com o apoio de Andriy Cheptytskyi, da Igreja Greco-católica (uniate), germanófila, “líder espiritual” da Galícia, que caiu em 1939 sob o regime soviético.

 

Em 1940, o radical Stepan Bandera abriu uma dissidência: seu OUN-b forma dois batalhões da Wehrmacht, Nachtigall e Roland, a fim de tomar parte na agressão da Alemanha e seus aliados contra a Rússia, no dia 22 de junho de 1941. Imediatamente, desata uma onda de pogroms.

 

Após muitos escrutínios, após a “revolução laranja” de 2004, a influência do Svoboda aumenta na Galícia e em todo o oeste da Ucrânia, compreendendo-se aí as grandes cidades com 20% a 30% dos votos. Para o conjunto da Ucrânia, o Svoboda conta com 10% dos votos. O Svoboda foi “ultrapassado” por grupos neonazistas ainda mais radicais do que ele.

 

As três formações políticas, Batkivschina, Oudar e Svoboda, apoiadas pelo ocidente, reclamam após dois meses a derrubada do governo e do presidente da República. Eles exigem novas eleições. O Svoboda os leva mais longe, organizando um golpe de Estado num nível local,  lá nos lugares em que fez reinar seu regime de terror. O Svoboda proibiu o Partido das Regiões e o Partido Comunista ucraniano.

 

O Partido Comunista ucraniano chama à razão já há várias semanas. Coletou mais de 3 milhões de assinaturas para exigir um referendo que deveria decidir se a Ucrânia quer um tratado de associação com a UE ou uma união aduaneira com a Rússia. A situação insurrecional diz respeito não somente aos três partidos da oposição, mas também ao poder oferecido do país e do povo “de bandeja” aos diregentes da pseudo-oposição, aos grupos de extrema-direita neonazis, às organizações nacionalistas violentas, aos políticos estrangeiros que conclamam as pessoas a “radicalizar os protestos” e a “lutar até o fim”. O PC destaca os problemas sociais. Ele tem a posição mais democrática entre os partidos políticos. Mas sua influência limita-se à parte leste e ao sul da Ucrânia.

 

Que papel jogam as grandes potências (EUA, União Europeia, Russia) no enfrentamento atual? O que buscam?

 

Jean-Marie Chauvier. Zbigniew Brzezinski, célebre e influente, geoestrategista estadunidense, de origem polonesa, traçou nos anos 1990 a estratégia estadunidense para comandar a Eurásia e instalar duravelmente a hegemonia do seu país, tendo a Ucrânia como elo essencial. Para ele, havia os “bálcãs mundiais”, de um lado, a Eurásia e, do outro, o Oriente Médio. Esta estratégia deu seus frutos na Ucrânia com a “revolução laranja” de 2004. Ela instalou uma rede tentacular de fundações estadunidenses – como Soros e a Fundação Nacional para a Democracia (NED) –, que remuneraram milhares de pessoas para “fazer progredir a democracia”. Em 2013-2014, a estratégia foi diferente.

 

Sobretudo, a Alemanha de Angela Merkel e a UE estão no comando, ajudados por políticos estadunidenses, como McCain. Eles discursam para as massas a respeito de Maidan e de outros com uma grande irresponsabilidade: para atingir facilmente seu objetivo de atrair a Ucrânia para o campo euro-atlântico, donde a OTAN se apoia nos elementos mais antidemocráticos da sociedade ucraniana.

 

Mas este objetivo é irrealizável sem dividir a Ucrânia entre leste e oeste e com a Criméia, que se juntará novamente à Russia, como sua população deseja. O parlamento da Crimeia declarou: “não viveremos jamais sob um regime bandeirista (fascista)”. E para Svoboda e outros fascistas, é a revanche de 1945 que eles vivem. Eu creio que, apesar de tudo, o que a grande maioria dos ucranianos não quer é esta nova guerra civil nem a divisão do país, mas, sem dúvida, a sociedade está para ser reconstruída!

 

Para saber mais: Jean-Marie Chauvier, Euromaïdan  ou a batalha da Ucrânia, 25 de janeiro de 2014 -  http://www.mondialisation.ca/euroma... e Ucrânia: que posição?

 

Mais:

A política antissocial revelada pelo Wikileaks

 

Viktor Pynzenyk, antigo ministro das finanças e hoje membro do partido de oposição, ou OUAR, de Vitali Klitchko, explicou em 2010 ao embaixador dos EUA o que ele desejava para a Ucrânia:

 

 

Fonte: Cabo diplomático revelado por Wikileaks

http://www.cablegatesearch.net/cabl...;;q=elections+ukraine

 

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