Viagem a Detroit, a cidade fantasma

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Marcello Musto
29/05/2013

 

Um garoto solitário avança ao longo da margem da estrada que liga o aeroporto ao centro da cidade. Veste a típica jaqueta esporte norte-americana, dessas que na parte de trás geralmente leva-se vistosamente o nome de um time de basquete ou as estrelas e listras da bandeira. No entanto, sua jaqueta continha uma palavra de cinco letras: black.

 

Eu me aproximo para falar e perguntar notícias sobre o lugar onde estou. Ele responde, lacônico, que vive aqui desde que nasceu, já está acostumado. O cenário onde acontece nossa conversa é surreal. Eu jamais havia visto nada igual. Eu continuo olhando ao meu redor e percebo o quanto são verdadeiras as coisas que li sobre este lugar. Estou rodeado de uma série de prédios abandonados. Velhas fábricas, abandonadas durante décadas, com a aparência de gigantescas ruínas, corroídas pelo tempo e intempéries. Prédios destripados, cacos de vidro espalhados por toda parte, máquinas cobertas por gelo e neve. Um deserto habitado apenas por cães vadios, dependentes de drogas sem abrigo e outras pessoas marginalizadas na sociedade. Estou em Detroit: a cidade fantasma. Um dos exemplos mais impactantes da outra América, aquela que nunca aparece nas aveludadas séries televisivas ambientadas em Manhattan ou nos filmes tridimensionais produzidos em Hollywood.

 

Chamavam-na de Cidade Motor

 

Se a arqueologia industrial era uma ciência, então Detroit seria sua prova irrefutável. E, no entanto, a sua história inclui o desenvolvimento e o esplendor. Conhecida como a Cidade Motor – a partir de onde surgiu a marca Motown, tomada da famosa discografia de soul e rhythm and blues –, Detroit foi durante décadas o principal centro automotivo do mundo. Em 1902, a cidade deu à luz o Cadillac. E aqui, um ano mais tarde, Henry Ford abriu fábricas onde, em 1908, veio a primeira edição do Modelo T, o primeiro carro produzido em linha de montagem. A General Motors abriu nesse ano e a Chrysler logo depois, em 1925. Em suma, tudo sobre a indústria automobilística nos Estados Unidos começou em Detroit.

 

Nas asas do progresso, a cidade cresceu consideravelmente. Na segunda década do século XX, a população dobrou e Detroit tornou-se a quarta maior aglomeração urbana do país. Uma parte importante dos seus novos habitantes veio dos estados do sul. Constituía um setor que era um grupo de afro-americanos à procura de trabalho (só neste período Detroit atingiu mais de 120.000 habitantes), que esteve envolvido no fenômeno conhecido como a "primeira grande migração".


A expansão não tem a ver só com o mundo das quatro rodas. Com a explosão da Segunda Guerra Mundial, o principal centro de Michigan foi transformado, de acordo com o slogan cunhado por Franklin Roosevelt, no "grande arsenal da democracia". Detroit desenvolveu-se rapidamente devido à produção de armas e sabe-se que contribuiu com a guerra mais do que qualquer outra cidade norte-americana (após o ataque a Pearl Harbor ,foram deslocados muitos trabalhadores de ambos os sexos). Graças a essa expansão, na década seguinte, o número de habitantes atingiu o seu máximo: 1.865.000, em 1956. Ilustres professores e os principais jornalistas da época a glorificaram como o melhor exemplo do fim da luta de classes; símbolo da meta alcançada, por grandes massas de trabalhadores, de entrar nas filas da classe média e se beneficiar dos prazeres do aburguesamento.

 

Muita coisa aconteceu desde então! Com os anos 60, começou o declínio, que se acelerou após as crises do petróleo de 1973 e 1979. Detroit tem agora apenas 700.000 habitantes, o menor número nos últimos cem anos. A espiral descendente parece não ter fim. De fato, na primeira década do século XXI, a cidade perdeu um quarto de sua população total, que continua a diminuir progressivamente: a cada 20 minutos uma família reúne seus pertences, se manda para um novo destino e deixa Detroit para trás.

 

100.000 terrenos vazios

 

Eu continuo minha jornada pelos bairros e é como estar em um lugar habitado por fantasmas. Em seu perímetro, existem mais de 100 mil terrenos baldios e casas abandonadas. Estas últimas em ruínas ou em uma situação instável. Nos próximos quatro anos teriam de ser demolidas dez mil casas, mas faltam recursos para fazê-lo. O sentimento que permeia toda a cidade é desolador, pois, muitas vezes, em todo um bloco de casas, há apenas uma ainda habitada. Detroit é totalmente deserta e seus espaços vazios caberiam todos em Boston ou San Francisco. Para contrariar este estado de extrema desolação, a administração local está tentando concentrar a população em determinadas áreas e transformar outras em fazendas. Na verdade, a crise expôs esse cenário ainda mais sombrio. A cidade está à beira da falência e do colapso econômico, e recentemente aboliu os últimos serviços públicos, incluindo o ônibus, que é o único meio de transporte para os menos favorecidos, e a iluminação noturna nas áreas periféricas.


A situação social não é melhor do que a ambiental. Em Detroit, uma em cada três pessoas é pobre, uma condição que afeta mais da metade das crianças. O grau de segregação racial ainda é muito elevado. Mais de 80% da população é afro-americana e vive no centro, enquanto os trabalhadores 'brancos', ou melhor, a última parte deles, os que ainda não conseguiram sair, se mudaram para os subúrbios protegidos por lojas de departamento. A prova de que, com uma diferença correspondente no tempo, o racismo que fez desta cidade o teatro de guerra da revolta violenta de julho 1967 – quando Lyndon Johnson enviou tanques que causaram 43 mortes, 7.200 prisões e a destruição de mais de 2.000 edifícios – ainda não foi erradicado.

 

A taxa de criminalidade é uma das mais altas do país e, ironicamente, mesmo que o carro tenha nascido exatamente nestas ruas, não há na América um lugar mais caro para comprar o seguro. O desemprego real atinge 50% e o dinheiro investido no grande cassino, que ocupa a principal artéria do centro, tem produzido uma única transformação: a de criar uma legião de desesperados que, a cada dia ou noite, apegados à amarga ilusão de salvação pessoal, fazem fila nas máquinas caça-níqueis para jogar suas últimas esperanças e as poucas poupanças ainda disponíveis.

 

Sucata para a China

 

Em 2009, golpeadas pela crise, a General Motors e a Chrysler declararam falência, enquanto a Ford padece de uma dura recessão. As ajudas às Big Three, por parte da administração de Bush e também de Obama, no final da década passada, totalizaram 80 bilhões de dólares. Tais ajudas foram acompanhadas por drástica "reestruturação", ou seja, demissões, cortes de salários e mais precarização. Em outras palavras, têm servido para ampliar ainda mais o modelo desenvolvido por empresas como a American Axle & Manufacturing, fundada em 1994 com o objetivo de fornecer, a baixo custo, componentes automotivos para a General Motors e a Chrysler.

 

Apesar de a empresa registrar lucros enormes, muitos de seus funcionários, contratados por hora, têm visto, como em fevereiro do ano passado, como se rescindem seus contratos. Depois de uma greve contra o corte salarial de 28 a 14 dólares por hora, uma outra fábrica de Detroit demitiu todos os seus trabalhadores e fechou as portas. Assim, com instituições abertas nos últimos anos pela American Axle & Manufacturing no México, no Brasil e na Polônia, em uma recente declaração, supostamente filantrópica, um de seus futuros presidentes nos ilumina o futuro: "construir a Ásia é a nossa prioridade". O próximo capítulo dessa história será escrito na China, onde, de fato, a empresa opera com duas novas fábricas desde 2009.

 

No fundo, Detroit nos fala não só do século XX, mas das mudanças de hoje e do que o futuro reserva. O epílogo da história nos conta que o desemprego e a pobreza são o resultado das ordens econômicas que impediram conquistas e melhorias tecnológicas de serem postas a serviço da comunidade. Isso mostra que as fábricas estão vazias, não porque não há trabalho, mas porque a produção foi transferida para locais onde os custos trabalhistas são mais baixos e a luta pelo reconhecimento dos direitos sociais é mais fraca.


A noite cai rapidamente no inverno de Detroit. Perto da saída da estrada, algumas pessoas pedem esmolas. Mais tarde, no coração do que foi outrora a zona industrial, pode ser visto um incêndio. Um grupo de jovens que busca desmantelar os restos de uma fábrica para depois enviá-los, por via marítima, ao Oriente. Por estes restos são pagos dois dólares e meio por quilo e são os últimos objetos úteis de que se pode conseguir algo para chegar ao fim do mês. Eles representam um dos principais produtos de exportação norte-americanos para a China, e Detroit é a cidade que mais os oferece. Eles servem para construir em outro lugar o que antes estava aqui. Para criar a infraestrutura que permitirá um maior lucro aos patrões. A exploração gerada por uma maior parcela da mais-valia, para usar as palavras de outro tempo. No entanto, não há ilusões. Com as novas fábricas, surgirão novos conflitos e novas esperanças.

 

Marcello Musto é sociólogo e filósofo italiano, professor de Teoria Política da Universidade de York (Toronto).

Traduzido por Daniela Mouro, Correio da Cidadania.

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