Correio da Cidadania

Eleições italianas: um golpe institucional

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As eleições legislativas italianas, de 24 e 25 de fevereiro, aprofundaram os sentimentos de desalento e confusão já difusos na sociedade peninsular, sobretudo desde que, em final de 2011, Mario Monti fora encarregado, sem ter passado pelo processo eleitoral, de formar um governo conservador, apelidado de “técnico”, após a demissão forçada do então Primeiro Ministro Silvio Berlusconi. A ação do governo encabeçado por Monti foi radical e sempre a favor dos chamados poderes fortes, entre eles o financeiro, segundo os mandamentos das instituições centrais européias.

 

Tudo começou com uma idéia do presidente da República, Giorgio Napolitano, no passado distante membro do PCI, desejoso de acabar com os obstáculos políticos, de vários tipos, ao alinhamento da Itália com os ditames financeiros dos grandes países europeus, com destaque para a Alemanha.

 

Mario Monti, que sempre trabalhara em agências internacionais e que fora comissário na União Européia, foi nomeado senador a toque de caixa por Napolitano e, a seguir, investido no cargo de Primeiro Ministro. Após mais de doze meses de sangria das classes trabalhadoras – através de cortes de salários, de aposentadorias, de direitos sociais etc. –, alguns meses antes do final natural da legislatura, começou a rachar-se a coesão dos parlamentares. Até então, estes últimos apoiavam respeitosamente a tentativa de Mario Monti de sanear as contas públicas e a economia, sempre a partir dos interesses dominantes. Nessa conjuntura política, Napolitano antecipou as eleições de alguns meses.

 

A situação tornou-se rapidamente conflitiva entre os grandes partidos conservadores (da direita à centro-esquerda), que até então cavaram seu apoio político ao governo de Mario Monti. Na centro-direita, o Povo da Liberdade (PDL), estava revigorado graças à volta decisiva à cena política de seu mentor, Silvio Berlusconi, aparentemente derrotado, alguns meses antes, em razão de suas peripécias judiciárias, boccacescas e da situação econômico-social do país. Na centro-esquerda, o Partido Democrático (PD), dirigido por Pier Luigi Bersani, originário do antigo PCI, auto-dissolvido no início da década de 90.

 

Bersani  encabeçava uma equipe do PD, presidida por Rosy Bindi, proveniente da antiga Democracia Cristã (DC), partido de centro que, junto com diversos aliados conjunturais, governara a Itália por cerca de meio século. Entre os outros partidos presentes na disputa eleitoral, havia a chamada esquerda radical. Parte dela, guiada por Nicky Vendola, atualmente presidente da Região da Púlia, entrou na campanha eleitoral em uma coalizão com o PD de Bersani. A outra parte se constituía em aliança conjuntural de formações de esquerda e de partidos genericamente de oposição, encabeçada por um juiz anti-máfia, Antonio Ingroia. O Partido Refundação Comunista, antiga principal força da esquerda marxista e operária, diluiu-se nessa aliança.

 

Havia igualmente outra força política em disputa, constituída pelo Movimento 5 Estrelas (M5S), lançado alguns meses antes pelo cômico-dramaturgo Beppe Grillo, construído sobretudo através do blog de Grillo, que todas as pesquisas apresentavam em forte crescimento. O resto das forças políticas em disputa era insignificante.

 

O movimento de Grillo obteve um ótimo resultado na eleição, ao ponto de ser considerado uma espécie de tsunami, como o próprio Grillo gosta de enfatizar. Das urnas resultou que cerca de 25% dos eleitores italianos votaram nele, embora, paradoxalmente, o próprio Grillo não fosse candidato, preferindo guiar seus eleitos de fora do Parlamento.

 

Berlusconi quase alcançou a vitória, com apenas algumas centenas de votos a menos que o PD, cuja aliança eleitoral venceu o pleito. Entretanto, obteve número significativo de deputados, devido à lei eleitoral que privilegia fortemente o partido vencedor na câmera. O Parlamento italiano ficou assim fragmentado entre três forças políticas, às quais se acrescentaram alguns poucos representantes do partido que Mario Monti juntara, no fechar dos olhos, com aliados centristas, mas que não conseguiu superar os 10% dos sufrágios, apesar de a imprensa nacional o ter apresentado como o provável grande salvador da pátria.

 

Dá para dizer que os eleitores italianos expressaram um voto em parte consciente, não votando em quem os despojara por diversos meses do exercício do governo, para aprofundar, em vez de resolver, seus problemas reais, apesar do apoio que sua política recessiva recebera da grande mídia e até mesmo de um setor da intelectualidade italiana.

 

A formação de esquerda encabeçada por Ingroia, com seus deprimentes 2% dos votos, não alcançou o mínimo necessário para entrar no Parlamento. Quanto ao pequeno partido de Vendola – Esquerda, Ecologia e Liberdade (SEL) –, apesar de não ultrapassar 3% dos votos, conseguiu eleger alguns deputados graças à sua participação na aliança encabeçada pelo PD.

 

O abstencionismo foi o grande vitorioso das eleições italianas, alcançando trinta por cento dos eleitores.

 

A Itália ficou com um Parlamento engessado. Na Câmara dos Deputados, em razão do citado prêmio ao partido majoritário, o PD conseguiu uma maioria esmagadora. No Senado, para poder governar, este partido precisaria formar alianças, o que constituía uma missão quase impossível. A situação era ideal para que Berlusconi pudesse voltar aos palcos da política.

 

A catarse deu-se quando expiraram os sete anos de mandato do presidente Napolitano, sem que Pier Luigi Bersani tivesse conseguido formar um governo. Situação insólita da qual o Parlamento saiu reelegendo outra vez Giorgio Napolitano ao máximo cargo do Estado –  reeleição por ele perseguida, apensar de a rejeitar em voz alta. Napolitano, que está por completar 84 anos, fora um homem forte do antigo PCI. Com o tempo, abandonara suas posições filo-soviéticas para se aproximar mais e mais da direita liberal, acabando por merecer a confiança do grande capital internacional e mais, especificamente, estadunidense, e das classes dominantes italianas.

 

Em tempo recorde, Napolitano foi reeleito e aquilo que parecia impossível resolveu-se. Formou-se um governo de aliança entre a centro-direita, do PDL, a centro-esquerda, do PD, e o pseudo-partido de Monti. No geral, o antigo governo técnico, sem Monti na presidência e sem a Liga Vêneta. Ficou fora do governo o pequeno partido de Nicky Vendola, que trouxera tantos votos a Bersani e ao PD. Grillo e seu movimento não entraram no governo.

 

O que esperar disso tudo? Os primeiros passos da nova equipe governamental, encabeçada por um homem da ala direita do PD, Enrico Letta, pretendem superar apenas o impasse político, não a crise econômica e social que tomou conta da Itália. As discussões que o novo primeiro-ministro Letta teve com a alemã Angela Merkel e o francês François Hollande miravam obter a confiança internacional para sua tentativa de tornar a Itália inteiramente compatível com os padrões econômicos europeus. Crescimento passou a ser a nova palavra mágica.

 

O novo governo apropriou-se dela, como se fosse uma absoluta novidade. Como se, para o homem moderno, produzir mercadorias e vendê-las para fazer a economia girar não fosse algo fisiológico. É como se nós disséssemos a uma criança: “Agora vamos falar do teu crescimento”, enquanto toda criança cresça naturalmente se ela for alimentada de modo adequado. Do mesmo modo, cada Estado cresce na medida em que ele produz de modo útil para seus habitantes. E isso não é o que acontece neste momento, quando a única preocupação continua sendo o lucro do capital, a saúde financeira, a confiança dos mercados, a avaliação positiva das agências de rating.

 

Este governo, como outros antes dele, mede seu estado de saúde na moderação atribuída a seu chefe, Enrico Letta, sobrinho de Gianni Letta, conselheiro de Berlusconi desde 1994. O mesmo Berlusconi que, no novo governo, já propôs seu nome para a presidência de uma espécie de comissão bicameral destinada a reformar toda a estrutura constitucional, devendo naturalmente levar em conta também o equilíbrio entre os poderes. E sabemos que um deles, a justiça e os magistrados, nas últimas décadas, tem se endereçado sobremaneira a Berlusconi, instruindo dezenas de processos contra ele, sem jamais conseguir condená-lo, por razões várias.

 

É claro que, tornando-se de fato presidente de uma comissão legislativa deste porte, Berlusconi irá trabalhar em causa própria, para se proteger de seus inúmeros problemas com a Justiça, com destaque para a grande corrupção. É lícito se perguntar o que ele pediu em troca para dar o seu apoio ao novo governo, entrando em uma aliança governamental negada pelos PDL e PD, durante toda a campanha eleitoral.

 

O  frenesi provocado pelo governo recém-empossado pode acabar logo, exigindo novas eleições que poderiam constituir mais um fracasso.

 

Enfim, com a manobra da reeleição do presidente da República Napolitano e a nomeação, por este último, do novo primeiro-ministro, Enrico Letta, o impasse italiano foi apenas postergado. Sem resolver os problemas fundamentais – criminalidade difusa, corrupção política, contínua diminuição da atividade produtiva, com o consequente aumento do desemprego, sobretudo entre os jovens e as mulheres, estado precário da escola e da saúde, questão das aposentadorias etc. –, haverá muitos outros momentos ainda mais embaralhados.

 

A capa do último número da revista semanal Internazionale traz, ao lado de uma foto de Enrico Letta, o título ‘O governo do nosso desagrado’. Governo que o poder pode, por enquanto, manter em pé. Por quanto tempo, não sabemos.

 

Tiziano Tussi é historiador italiano, residente em Milão.

Tradução de Florence Carboni.

Comentários   

0 #1 Se?josé marques vieira 07-05-2013 03:23
Se fosse na Venezuela tudo seria normal, mas não foi. O que me preocupa é o terceiro mandato de Angela Merkel, e ninguém questiona, à direita ou à esquerda. E a Europa submissa a um homeless de Wasghinton. Lembrando que depois da reeleição de Angela Merkel os franceses farão mais sacrifícios. Tudo pra manter esse Euro!
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