“Revoluções” ou contra-revoluções?

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Milton Temer
04/05/2011

 

Alguma coisa está fora da ordem nessa história de "Revolução Árabe", se consideramos a categoria revolução como o ato de transformar qualitativamente o status quo; o ato de mudança de regime; o momento em que o velho não pode continuar mais a prevalecer e o novo cria condições orgânicas de impor a ruptura.

 

É isto por acaso que está se passando no Magreb e no Oriente Médio? Certamente que não. Pois, se fosse, França, Inglaterra e Estados Unidos não estariam mergulhados na empreitada, tomando partido claro de insurretos desde que contra governos nos quais não têm confiança – Síria e Líbia na linha de fogo atual.

 

Afinal, são três dos países com maior passivo na questão de desrespeito a direitos humanos em áreas conflagradas onde seus exércitos circulam. Ou vamos esquecer do comando do Exército francês na Argélia ocupada a tentar convencer os correspondentes dos jornais da metrópole que, ou bem aceitavam a instituição da tortura contra prisioneiros do FLN argelino, ou bem aceitavam a idéia de não haver como manter a Argélia como colônia da França? Ou vamos esquecer de Guantánamo e das bases pelo mundo onde ingleses e americanos, juntos, torturaram e assassinaram inocentes em nome do "combate ao terror"?

 

São precedentes incontestáveis, comprovando que a atual participação nos bombardeios da Líbia e nas ameaças políticas de sanções à Síria representam tudo, menos algum interesse na preservação física de civis ameaçados. Aliás, e para quem tem dúvidas, basta fazer uma avaliação sobre as decisões dos governos francês e inglês com respeito aos refugiados provenientes das áreas em conflito no norte da África: barrados em fronteiras, devolvidos ao mar, impedidos de qualquer proteção humanitária.

 

Ou, mais ainda, sobre a total leniência, em cumplicidade com o Departamento de Estado americano, com que tratam ditadores aliados – muros de proteção dos interesses do imperialismo na região – diante de atos de repressão brutais contra dissidentes em seus países

 

Estão bombardeando Trípoli porque sabem que, derrubado Kadafi, quem o sucederá não vai substituí-lo para fazer da Líbia uma democracia de modelo ocidental burguês, mas sim transformá-la em protetorado da potência que se imponha na disputa de território que França e Inglaterra fazem no primeiro plano, com EUA e Itália olhando do fundo do cenário.

 

Por outro lado, no campo árabe, quem começa a se distinguir na hegemonia desses movimentos? Na Líbia, já está evidente. Já é público e notório que uma das lideranças em Benghazi, Abu Sufian bin Qumu, esteve encarcerado em Guantánamo por anos, em função da participação ativa na Al Qaeda, para onde se transferiu de armas e bagagens, após ser condenado na Líbia até por tráfico de drogas.

 

O simbolismo dessa liderança é confirmar que, lamentavelmente, não só na Líbia, como também no Egito e na Síria, começa a se registrar uma influência crescente dos movimentos fundamentalistas – reacionários e de direita, em sua essência, e prontos para se aliar com o Ocidente quando se trata de barrar o progresso social interno. Movimentos que se tornaram organicamente significativos pelo pesado financiamento inicial que potências capitalistas lhes proporcionaram a fim de que se aliassem à repressão aos movimentos de libertação com tendência laica ou marxista.

 

Que bandeira, por exemplo, pode ser vista em mãos dos rebeldes de Benghazi, para além da bandeira da monarquia retrógrada e entreguista que Kadafi derrubou em 69, no bojo de um movimento, à época e por um significativo período posterior, revolucionário? Além da tricolor com o crescente no centro, só duas apareceram por conta da crise atual: a da França, de Sarkozy – herói do movimento (isso mesmo, herói) - e a dos Estados Unidos, por ocasião da visita do candidato republicano derrotado por Obama, pregando, em Benghazi, que os EUA reconhecessem os rebeldes como legítimo governo líbio.

 

A ninguém pode ocorrer a hipótese de defender Kadafi – e família – nos dias atuais. Mas muito menos deve ocorrer a passiva aceitação de que sua substituição se dê por algo pior do que ele – um governo de direita monárquica, a serviço das potências imperialistas e aliado a Israel na questão palestina.

 

O mesmo ocorre na Síria. Assad é um alauíta – segmento majoritário nas camadas mais pobres dos xiitas, mas em minoria na população síria. Seu governo é um governo de partido laico – o Baath, de origem nacionalista árabe e antiimperialista. O pai de Assad e Nasser estava na sua origem, com a perspectiva da unificação de Síria, Egito e Iraque numa República Árabe Unida; atualmente, e em função das transformações do mundo, limitado a um processo reformista que fazia da Síria um dos mais estáveis e socialmente justos países do Oriente Médio. Não por acaso, portanto, entrou no eixo do mal do governo Bush, cuja família era assalariada da monarquia saudita antes de chegar à presidência dos EUA.

 

Contra ele, com apoio financiado de longa data – o que se comprova por documentos recentemente vazados pelo WikiLeaks –, se coloca uma maioria sunita, para além de cristãos maronitas que sempre se aliaram a Israel, e no fundo se consideram europeus, descendentes diretos dos Cruzados. Um balaio de caranguejos.

 

Nesse contexto, e diante do bombardeio de uma mídia que não hesita em assumir partido em sua "isenção", que papel cabe às esquerdas que (na defensiva, é verdade, mas por toda parte) acreditam num outro mundo possível?

 

No meu modo de ver, e antes de tudo, tomar imenso cuidado com emissão de documentos de solidariedade. O eixo é condenar a intervenção imperialista, e exigir transparência no que propõem os movimentos rebeldes da Líbia e da Síria. Tarefa difícil para quem mitifica movimento de massa. Mas que deve levar em conta uma constatação histórica: nem todos, por serem de massas, são obrigatoriamente progressistas ou pró-democratas.

 

Se a história é um instrumento útil para a elaboração de estratégias futuras, nunca é demais recordar quão multitudinárias eram as manifestações de ruas que no Brasil, antes e logo a seguir de abril de 64, apoiavam o golpe militar contra o governo popular e democrático de João Goulart.

 

Milton Temer é jornalista.

 

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