O que não se sabe sobre o Egito

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Vicenç Navarro
01/03/2011

 

A queda do ditador Mubarak como resultado da mobilização popular é um motivo de alegria para qualquer pessoa com sensibilidade democrática. Mas esta mesma sensibilidade democrática deveria conscientizar-nos de que a versão do ocorrido que apareceu nos meios de informação de maior difusão internacional (desde a Al Jazira ao The New York Times e à CNN) é incompleta ou enviesada, pois responde aos interesses que os financiam.

 

Assim, a imagem geral promovida por aqueles meios é que tal evento se deve à mobilização dos jovens, predominantemente estudantes e profissionais das classes médias, que utilizaram com muito êxito as novas técnicas de comunicação (Facebook e Twitter, entre outros) para se organizar e liderar tal processo, iniciado, por certo, pela indignação popular contra a morte em prisão, como conseqüência das torturas sofridas, de um destes jovens.

 

Esta explicação é extremamente incompleta. Na realidade, a suposta revolução não se iniciou há três semanas e não foi iniciada por estudantes e jovens profissionais. O passado recente do Egito caracteriza-se por lutas operárias brutalmente reprimidas que aumentaram nestes últimos anos. Segundo o Egypt's Center of Economic and Labor Studies, só em 2009 existiram 478 greves claramente políticas, não autorizadas, que provocaram a demissão de 126.000 trabalhadores, 58 dos quais se suicidaram.

 

Como também ocorreu na Espanha durante a ditadura, a resistência operária democrática infiltrou-se nos sindicatos oficiais (cujos dirigentes eram nomeados pelo partido governista, que surpreendentemente tinha sido aceito no seio da Internacional Socialista), jogando um papel chave naquelas mobilizações. Milhares e milhares de trabalhadores deixaram de trabalhar, incluídos os da poderosa indústria do armamento, propriedade do Exército.

 

Juntaram-se também os trabalhadores do Canal do Suez (6.000 trabalhadores) e, por fim, os empregados da Administração Pública, incluindo médicos e enfermeiras (que desfilaram com os seus uniformes brancos) e os advogados do Estado (que desfilaram com as suas togas negras). Um dos setores que teve maior impacto na mobilização foi o dos trabalhadores de comunicações e correios, além daqueles do transporte público.

 

Os centros industriais de Asyut e Sohag, pólos da indústria farmacêutica, de energia e gás, também deixaram de trabalhar. As empresas em Sharm El-Sheikh, El-Mahalla Al Kubra, Dumyat e Damanhour, centros das indústrias têxtil, mobiliária, madeireira e alimentícia, também pararam a sua produção. O ponto culminante da mobilização operária foi quando a direção clandestina do movimento operário convocou uma greve geral.

 

Os meios de informação internacionais centraram-se no que ocorria na praça Tahrir do Cairo, ignorando que tal concentração era a ponta do iceberg espalhado por todo o país e centrado nos locais de trabalho – fundamentais para a continuação da atividade econômica – e nas ruas das maiores cidades do Egito. O Exército, que era, e é, o Exército de Mubarak, não as tinha todas consigo. Na verdade, além da paralisação da economia, tinham temor a uma rebelião interna, pois a maioria dos soldados procedia de famílias muito pobres de bairros operários cujos vizinhos estavam na rua.

 

Comandos intermediários do Exército simpatizavam também com a mobilização popular, e a cúpula do Exército (próxima a Mubarak) sentiu a necessidade de se separar dele para salvarem a eles mesmos. Mais, a Administração Obama, que no início tinha ficado contra a deposição de Mubarak, mudou e pressionou para que este saísse. O governo federal subvencionou com uma quantia de 1,3 bilhão de dólares por ano o Exército daquele país, que não podia ignorar o que o secretário de Defesa dos EUA, Robert Gates, exigia. Daí que o diretor da CIA anunciasse que Mubarak renunciaria; e ainda que se tenha atrasado umas horas, Mubarak renunciou.

 

Nem vale a pena dizer que os jovens profissionais que fizeram uso das novas técnicas de comunicação (só 22% da população têm acesso à Internet) desempenharam um papel importante, mas é um erro apresentar aquelas mobilizações como conseqüência de um determinismo tecnológico que considera a utilização de tecnologia como o fator decisivo.

 

Na verdade, o desaparecimento de ditaduras num período de tempo relativamente curto, como resultado das mobilizações populares, ocorreu constantemente. O Irã (com a queda do xá), o Muro de Berlim, a queda das ditaduras da Europa do Leste, entre outros casos, caíram, uma atrás da outra, através de mobilizações populares sem que existisse Internet. E o mesmo ocorreu em Túnis, onde, na verdade, a resistência da classe trabalhadora também desempenhou um papel fundamental na queda do ditador, cujo partido foi também surpreendentemente admitido na Internacional Socialista.

 

O futuro, no entanto, começa agora. É improvável que o Exército permita uma transição democrática. Permitirá estabelecer um sistema multipartidário, muito limitado e supervisionado pelo próprio Exército, para o qual o inimigo número 1 não é o fundamentalismo islâmico (embora assim o apresente, com o fim de conseguir o apoio do governo federal dos EUA e da União Européia), mas a classe trabalhadora e as esquerdas, que são as únicas que eliminariam os seus privilégios.

 

Não esqueçamos que as classes dominantes do Irã, do Iraque e do Afeganistão apoiaram o radicalismo muçulmano (com o apoio do governo federal dos EUA e da Arábia Saudita) como forma de travar as esquerdas. Uma das primeiras medidas que a Junta Militar tomou foi proibir as greves e as reuniões dos sindicalistas. No entanto, esta mobilização operária mal apareceu nos maiores meios de informação.

 

Vicenç Navarro é sociólogo e economista, nascido na Catalunha.

 

Fonte: http://www.vnavarro.org/.

Traduzido pelo site Fundação Lauro Campos - http://socialismo.org.br/

 

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