Correio da Cidadania

Neoliberalismo: começar pela palavra

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Um passo fundamental para que não nos enganemos quanto à natureza do capitalismo contemporâneo e o significado das políticas empreendidas pelos países centrais para enfrentar a recente crise econômica é problematizarmos, com cuidado, o termo neoliberalismo: "começar pelas palavras talvez não seja coisa vã", escreve Alfredo Bosi em Dialética da Colonização.

 

A partir da década de 1980, buscando exprimir a natureza do capitalismo contemporâneo, muitos, principalmente os críticos, utilizaram esta palavra que, por fim, se generalizou. Mas o que, de fato, significa? O prefixo neo quer dizer novo; portanto, novo liberalismo. Ora, durante o século XIX deu-se a construção de um liberalismo que viria encontrar a sua crise definitiva na I Guerra Mundial em 1914 e na crise de 1929. Mas desde o período do entre guerras e, sobretudo, depois, com o término da II Guerra Mundial, em 1945, tomou corpo um novo modelo, principalmente na Europa, que de certa forma se contrapunha ao velho liberalismo: era o mundo da social-democracia, da presença do Estado na vida econômica, das ações políticas inspiradas na reflexão teórica do economista britânico John Keynes, um crítico do liberalismo econômico clássico que viveu na primeira metade do século XX. Quando esse modelo também entrou em crise, no princípio da década de 1970, surgiu a perspectiva de reconstrução da ordem liberal. Por isso, novo liberalismo, neoliberalismo.

 

A idéia de liberalismo sugere uma sociedade estruturada sobre a base do livre-mercado. Na visão dos liberais, o livre-mercado seria o espaço em que o confronto de interesses privados produziria, por meio dos próprios mecanismos econômicos de oferta, procura e preços, uma tendência à harmonia social. Sob esse prisma, o mercado – e não mais a força direta do Estado – passaria a ser o fundamento da coesão e da harmonia social; ao Estado caberia simplesmente garantir o funcionamento do mercado. Ou seja, a idéia de liberalismo sugere ausência do Estado na economia. No entanto, a rigor, mesmo o liberalismo clássico do século XIX sempre escondeu que o papel decisivo do Estado era agir em função e a favor dos endinheirados: os capitalistas da Inglaterra – berço do liberalismo – jamais deixaram de utilizar a força direta do Estado, por exemplo, para colonizar a Índia.

 

Quanto ao liberalismo no capitalismo contemporâneo, é verdade que a crise da social-democracia, ou do "keynesianismo", na década de 1970 levou à desconstrução de um conjunto de mecanismos que, desde a II Guerra, garantiram uma presença forte do Estado na economia.

 

De fato, o chamado neoliberalismo significou: 1) uma diluição das barreiras postas ao comércio e ao movimento de capitais no espaço internacional; 2) o fim dos controles políticos sobre as moedas nacionais; 3) o desmonte das formas diretas ou indiretas de intervenção do Estado na produção e no consumo – por exemplo, com as privatizações ou os cortes de gastos públicos; 4) a destruição das políticas de bem-estar social – por exemplo, com os ataques aos direitos dos trabalhadores. Aqui reside a novidade do neoliberalismo, ou seja, a crítica ao Estado social-democrata, às empresas estatais e à proteção social, identificadas como causa principal do déficit público e da inflação, eixo do debate sobre a crise mundial de meados da década de 1970, momento em que o neoliberalismo se revigorou como projeto político e chegou ao poder; na Inglaterra, com Thatcher, e nos EUA com Reagan.

 

Mas será que, nessas últimas décadas, o Estado esteve completamente ausente da vida econômica nesses países? Será que esse mundo, em parte liberal, foi completamente liberal? Vejamos.

 

Em primeiro lugar, se é certo que as mercadorias e os capitais – o dinheiro – passaram a circular quase livremente pelo espaço mundial, o mesmo não se pode dizer dos trabalhadores – das pessoas. Ao contrário, as pressões contra imigrantes nos países centrais nunca deixaram de existir, desde a I Guerra, e são cada vez maiores. De outro lado, mesmo antes da "Era Bush", as intervenções militares do Estado foram um suporte fundamental para os lucros dos grandes capitalistas. Quando, por exemplo, o exército estadunidense avança sobre o Oriente Médio por conta dos lucros do petróleo – e, além disso, grandes especuladores ganham muito dinheiro nas bolsas fazendo negócio com ações de empresas do complexo industrial-militar, as fabricantes de aviões, tanques e bombas –, isso não deixa de ser uma profunda conexão entre o Estado e a economia.

 

Se considerarmos o metabolismo das dívidas públicas, isso fica bastante claro. Desde a década de 1980, o empréstimo de dinheiro aos Estados endividados é um excelente negócio para grandes especuladores. A liberalização financeira, ou seja, a liberdade de o dinheiro circular entre os diferentes países, ofertou ao capital financeiro poder de chantagem sobre os Estados nacionais. Para atraí-lo, estes tendem a oferecer remunerações (taxas de juros) bem elevadas; para remunerá-lo, aumentam a carga de impostos, cortam gastos públicos e destroem velhos direitos sociais.

 

No Brasil, por exemplo, na média dos últimos 15 anos, a carga tributária foi de 30,8% do PIB e os juros consumiram 7,5% do PIB, pagos ao capital financeiro. Nesse aspecto específico, pode-se dizer que não só o Estado está presente na economia, como funciona como uma alavanca poderosíssima da acumulação de capital; uma bomba de sucção da riqueza do povo pobre para os ricos.

 

Mais do que isso: quando chega a crise, ou seja, quando, em meio à alta especulação, o capital financeiro vê despencar o valor de sua riqueza fictícia, quem lhe socorre? O Estado! Foi assim nas crises da década de 1990, no México, na Rússia, na Ásia, no Brasil – lembremos do socorro aos bancos – e, enfim, nos Estados Unidos. Os cálculos do FMI demonstram que os Estados dos países centrais (sobretudo, os Estados Unidos) transferiram, no início de 2009, cerca de 9 trilhões de dólares ao sistema financeiro internacional (o equivalente a 2,5 PIBs latino-americanos). Quem vai pagar essa conta?

 

Na crise atual, o Estado entrou com força na economia. Um uso inadvertido do termo neoliberalismo poderia sugerir que essas intervenções representam o fim das chamadas "políticas liberais" das últimas décadas. Mas, na verdade, representam não uma ruptura do modelo, mas a sua exacerbação. Distingue-se das políticas precedentes somente por sua magnitude absurda – justamente, por se tratar de uma crise que explodiu não na periferia, mas no centro do sistema capitalista.

 

Esse entendimento nos permite questionar a idéia de que a crise esteja definitivamente superada. Se o capitalismo contemporâneo continua reproduzindo o mesmo modelo, nada garante que uma acomodação temporária, nos mesmos termos das acomodações precedentes, não possa produzir, mais adiante, a explosão de outra crise ainda mais grave – e de conseqüências imprevisíveis.

 

Carlos Alberto Cordovano Vieira, Andrea Paes Alberico, Elisa Helena Rocha de Carvalho, Guga Dorea, José Juliano de Carvalho Filho e Thomaz Ferreira Jensen, do Grupo de São Paulo. Colaboração: Carlos Alberto Bello. O Grupo de São Paulo é um grupo de pessoas que se revezam na redação e revisão coletiva dos artigos de análise de Contexto Internacional do Boletim Rede, editado pelo Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade, de Petrópolis, RJ.

Contato: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 

Artigo publicado na edição de setembro de 2010 do Boletim Rede.

 

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