Correio da Cidadania

Doutrina Obama e a guerra na Síria (2)

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A política de terra arrasada


O objetivo imediato das operações da CIA junto com as dissidências (CNS e ELS) é destruir a viabilidade nacional síria. Para além do declarado “fim da ditadura de Bashar Al Assad e pela democracia”, o que se planeja é a balcanização do território, construção de governos fantoches em pequenos estados étnico-religiosos. Tal medida pavimentaria objetivos estratégicos de governos pró-ocidentais no Oriente Médio.

 

Para Israel, o plano de fragmentação da região do Levante em uma miríade de estados fracos é uma doutrina geopolítica antiga, de ideologia sionista, e ganhou força na década de 80 sob o nome de Plano Yinon. As diretrizes apontadas pelo artigo A Strategy for Israel in the Nineteen Eighties (1982), de autoria de Oded Yinon, defendem que a autoafirmação do Estado de Israel depende da divisão da Síria e do Iraque em microestados religiosos, confessionais e étnicos.

 

Já para as monarquias sunitas wahhabitas, como Arábia Saudita, Qatar, Emirados Árabes Unidos e Bahrein, bem como a Jordânia, a desagregação da Síria significa um golpe mortal no inimigo político-ideológico antigo, o republicanismo pan-árabe, que vigora em Damasco desde a década de 60. Além de ser, na dimensão religiosa, uma manobra de isolamento do xiismo.

 

A Turquia, além de colaborar com os esforços norte-americanos, por ser parte do seu condomínio de poder (OTAN), tem objetivos próprios e complexos, principalmente em relação à questão curda. Apoia a criação de um Estado Curdo dentro das áreas do Curdistão Iraquiano e Sírio, exceto naquela fração que está dentro do seu próprio território. Mantêm relações diplomáticas com o governo Regional do Curdistão (Iraque), sem passar por qualquer mediação com o governo central em Bagdá. Mas o principal problema de Ancara é com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão, uma organização revolucionária que percebeu a manobra do imperialismo e apoia o governo de Damasco, e, além disso, tem ganhado expressiva força nas áreas curdas dentro do território turco. O governo turco tem sido um dos atores principais da guerra na Síria, é a principal retaguarda estratégica do Conselho Nacional Sírio (CNS) e do Exército Livre da Síria (ELS), a cabeça de ponte do imperialismo no conflito.

 

Desde 4 de outubro, a situação militar entre Turquia e Síria se agrava diuturnamente, logo depois que o Parlamento turco votou pela autorização ao Exército de realizar operações em território do país vizinho. O estopim desta medida teria sido a morte de cinco pessoas em uma aldeia turca de Akçakale, na região fronteiriça (03/10), em consequência de disparos de artilharia do Exército da Síria. Fato extremamente controverso, pois tais disparos aparecem como uma agressão de Damasco, mas outras possibilidades não são levantadas. Há indícios de acidente uma vez que os combates entre os dissidentes armados e o Exército Sírio se dão perto dali, em território da Síria. Outra possibilidade é que os próprios rebeldes (em conjunto com seus apoiadores) tenham criado um ataque de provocação, gerando uma justificativa para a Turquia entrar formalmente na guerra. O governo de Bashar Al Assad é cauteloso; em resposta oficial, declara que estão sendo investigadas as circunstâncias dos disparos. No entanto, independentemente dos autores dos disparos e suas razões, este fato foi extremamente benéfico para a dissidência e para a aliança pró-ocidental que a apoia. Até o momento, tanto a Síria quanto a Turquia disparam morteiros de retaliação, conforme o protocolo dos tratados internacionais. A situação se degrada e a guerra entre os dois países é cada vez mais próxima. A suposta agressão colabora para com os objetivos do primeiro-ministro turco, Tayyip Erdogan, que já há algum tempo vem procurando motivos, “reais ou artificiais”, para justificar uma guerra aberta contra a Síria. Exemplo disso é a tentativa da Turquia de provocar um conflito aberto por meio da invasão do seu espaço aéreo e a retaguarda que oferece aos efetivos e equipamentos militares dos rebeldes antigoverno de Assad.

 

É necessário considerar outra dimensão do conflito, a barbárie contra a população e os símbolos nacionais, culturais e religiosos do povo sírio. Além da tentativa de fragmentar o Estado e seu território, é fundamental que os dissidentes e seus parceiros, para que atinjam seus objetivos, promovam a destruição das bases de manifestação de um sentimento nacional. A demolição do patrimônio histórico – cultural, como ataque a mesquitas, igrejas, locais sagrados de peregrinação, sítios arqueológicos, obras arquitetônicas de milênios, como acontecem nas cidades de Aleppo e Homs -, é uma prova de que a subjetividade dos sírios é também um alvo militar. A destruição dos monumentos vem acontecendo de forma sistemática, criando um impacto psicológico de massas, com grande alcance e prolongado efeito. Aliado a isso, franco-atiradores disparam contra manifestantes e espectadores de atos públicos contra ou a favor do governo, disseminando o terror no seio do povo.  Não é sem propósito que o Conselho Nacional Sírio utiliza outra bandeira, diferente do pavilhão oficial da República Árabe Síria. Dividir o território, soterrar a história, profanar os símbolos, violar a memória individual e coletiva são também expressões da estratégia ocidental, a dimensão psicológica (disseminar o terror ou guerra psicológica) é também um instrumento militar.

 

Portanto, para destruir a viabilidade nacional síria, a dissidência executa a política de terra arrasada. Opera no sentido de dilacerar a capacidade econômica, política, militar, diplomática e simbólica do Estado, mas também age psicologicamente sobre a população, subtraindo-lhe parcelas de sua subjetividade, de sua trajetória individual, comunitária e social. É uma guerra total, não se trata de remover um governante ou mudar um regime, trata-se de destruir a Síria e seu povo, em sua dimensão de projeto pan-árabe, como povo soberano e autodeterminado, como fração singular da humanidade.

 

A resistência do governo e do povo sírios


Mesmo com todo o aparato midiático, a chamada dissidência síria não consolidou um amplo movimento de massas contra o governo do Bashar al Assad. A força dos rebeldes está diretamente relacionada ao apoio estrangeiro em armamentos, suprimentos, informações e mercenários. Enquanto isso, a população se unifica em torno da defesa da Síria, realizando manifestações contundentes contra a Guerra Civil e em apoio a regime. Voluntariamente, milhares de jovens se alistam no Exército Árabe da Síria, contrariando a informação sobre as deserções em massa.

 

Têm se tornado mais claras as intenções da dissidência entre a população síria; mesmo a parcela que se opõe ao governo de Bashar Al Assad, que existe e se organiza em partidos de oposição ao regime, não admite a solução pró-ocidente, nem tampouco a decomposição da unidade territorial. Este fato constrange o desenvolvimento de uma opinião pública interna antirregime.

 

No campo internacional, o governo sírio conta com a colaboração ativa da Rússia, China, Índia e Irã nas disputas diplomáticas. Grupos como o Hizbollah (Líbano) e Hamas (Palestina) também participam do movimento internacional de apoio ao governo sírio, principalmente denunciando os interesses de Israel na decomposição do quadro militar e político do país vizinho. Na ONU, a cada dia mais países transitam da situação de apoiadores dos rebeldes para uma posição abstencionista, o que melhora significativamente o quadro diplomático e a capacidade de Damasco de solidificar um campo de disputa e defesa mais amplo no cenário internacional. Exemplo disso foram os resultados da Conferência do Movimento dos Países Não Alinhados que aconteceu no Teerã, em agosto, cúpula que fortaleceu a posição de solução política e a rejeição veemente da intervenção das potências ocidentais no conflito.

 

No teatro de guerra, o Estado Sírio tem alcançando êxitos significativos. Primeiro, porque logrou desenvolver uma estratégia de combate de alto rendimento. Conseguiu isolar substancialmente a linha de abastecimento logístico dos rebeldes, bloqueando as principais rotas de acesso à Turquia – e, sem esta oferta de suprimentos, os grupos armados perdem capacidade operacional significativamente. No terreno da inteligência, agentes do governo sírio estão infiltrados no interior das fileiras rebeldes e já lograram desmantelar um grande número de grupos armados e destruir depósitos de armas, suprimentos e equipamentos de comunicação. A vitória nos combates na região de Aleppo teve uma forte repercussão no moral da dissidência, que começa a recuar das posições que havia conquistado no noroeste do país, principal área de contato com os apoiadores estabelecidos na fronteira da Turquia. O grande eixo estratégico do conflito está ao norte do país (fronteira turca), que vai de Latakia a Al Hasakah. Latakia é um reduto alauíta, pró-governo; mais ao leste fica Aleppo, região mais quente do conflito; e na província de Al Hasakah, o governo conta com a colaboração das guerrilhas do Partido dos Trabalhadores do Curdistão, que isolam parte considerável da fronteira nordeste, que, segundo informações não oficiais, é a linha de comunicação dos apoios ao governo provenientes do Irã.

 

Por fim, o povo sírio entrou na resistência contra o golpe, o governo construiu um sistema de comunicação direto com a população, esta informa às autoridades a movimentação dos rebeldes, locais de esconderijo e a localização de contrabandistas e agentes estrangeiros em operação no país.

 

A consciência nacional síria parece entender que os problemas sírios devem ser resolvidos pela população, e não por estrangeiros ou grupos antinacionais. Este fator tem sido menosprezado pelo Ocidente. A solução militar está longe de ser uma estratégia vitoriosa para os dissidentes, porém, pode ser prolongada pela colaboração ativa de seus patrocinadores ocidentais e pró-ocidentais.

 

Disjuntiva estratégica do ‘Mundo Árabe’


Os resultados do conflito em curso na Síria definem em grande parte o destino do Oriente Médio.

 

A vitória do governo da Síria implica na sobrevivência do nacionalismo árabe e na elevação do prestígio político dessa corrente de pensamento que tem em Damasco o seu principal polo de difusão. Antes de tudo, por ser uma ideologia das classes subalternas do mundo árabe, que tem uma cultura política permeável às posições de confronto ao imperialismo e defesa do republicanismo e da laicidade das instituições públicas. O projeto pan-árabe, que vislumbra a criação de um único Estado para os povos árabes, permanecerá vivo enquanto o regime sírio resistir. O vigor deste projeto reside principalmente na capacidade da intelectualidade síria de perceber que a Questão Nacional Árabe passa pela criação de um único Estado que compreenda a Síria, Líbano, Jordânia e Palestina inicialmente, com possibilidades de expansão para o Iraque e Península Arábica. Um Estado viável nacionalmente e capaz de ter uma posição mais favorável nas relações internacionais.

 

O destino do Irã está imbricado com a guerra no Levante. De alguma maneira, a ofensiva imperialista sobre o povo iraniano já começou e os combates acontecem nas ruas da Síria. Israel já admitiu que “poderá” realizar operações de sabotagem contra instalações nucleares iranianas. As monarquias pró-estadunidenses se armam e afinam o discurso com Washington - “o ataque a Teerã passa por Damasco” é o mote condutor da estratégia norte-americana.

 

Tanto a causa palestina quanto a estabilidade no Líbano são influenciadas diretamente pela situação na Síria. Por isso o Hamas e o Hizbollah estão atuando no sentido de construir, na medida das suas possibilidades, uma linha de apoio ao governo sírio. O Hizbollah inclusive tem participado enviando combatentes para as linhas de defesa do governo. Estas posições são provas de um grande amadurecimento político das duas organizações, inclusive criando laços de cooperação política que transcendem a posição religiosa.

 

A disjuntiva história e estratégica no Oriente Médio não cabe na contradição entre democracia e ditadura, como anuncia o ocidente desde a chamada “Primavera Árabe”. As reivindicações de liberdade e democracia são legítimas, mas não estão isoladas do contexto social e internacional do ‘Mundo Árabe’. O curso dos acontecimentos tem mostrado que a contradição principal se situa na consolidação de uma trajetória soberana para os povos árabes em contraposição ao aprofundamento do sistema neocolonial pró-ocidente. Autodeterminação versus subordinação imperialista.

 

Os setores socialistas, revolucionários, populares e democráticos caminham para o rumo político adequado na Síria, colaboram com o governo e engrossam as fileiras contra o fundamentalismo e o imperialismo. Neste processo, ampliam sua presença política junto às massas, consolidam bases populares e acumulam força social e autoridade política para pleitear reformas, mudanças e aprimoramento no regime, necessários para este momento histórico. O resultado desta linha de ação pode vir a inaugurar novos patamares de disputa na sociedade síria, dentro de um ambiente de soberania e unidade nacional.

 

A vitória encontra-se nas mãos do povo sírio e na solidariedade de todos os oprimidos do mundo. Por isso é necessário combater as ilusões em relação ao caráter da dissidência na Síria, e perceber a realidade existente para além deste terrível jogo de sombras.

 

Notas

Nota 1 – A complexa configuração política e religiosa presente no Oriente Médio, tratada de uma maneira mais geral e sintética, pode ser entendida tomando em consideração dois grandes campos.

 

O campo formado por correntes fundamentalistas do sunismo, que com suas diferenças internas converge em uma visão ortodoxa do Islã, na qual se inserem o wahhabismo e o salafismo. O wahhabismo originou-se no século XVIII na Arábia Saudita com Muhammad bin Abd al Wahhab, seu pensamento prevê o juramento de lealdade do muçulmano ao seu governo e a adoção da sharia – lei religiosa proveniente do Islã ortodoxo, que determina as bases do Estado, do governo e a organização da sociedade partir de uma visão teocrática. A Arábia Saudita, Qatar, Emirados Árabes e Bahrein, todas monarquias sunitas, sendo as duas primeiras monarquias absolutistas, adotam e procuram difundir o wahhabismo, promovendo a perseguição de muçulmanos xiitas e de correntes islâmicas com influência sufi (considerada uma corrente herética, principalmente por não adotarem a sharia) dentro e fora de suas fronteiras. São aliadas estratégicas dos EUA no Oriente Médio, tendo relações comerciais importantes no ramo petrolífero e bélico. A Al Qaeda é a organização wahhabita mais conhecida. Financiada pela CIA nas décadas de 70 e 80 para combater os soviéticos no Afeganistão, orientou-se na década de 90 para uma visão antiocidental, sem desprezar, no entanto, alianças táticas com o Ocidente para combater regimes e organizações políticas laicas ou religiosas de orientação xiita. Os salafitas, por sua vez, proveniente da radicalização do wahhabismo, são uma corrente minoritária dentro do islamismo sunita. Tem crescido fortemente na Líbia, Tunísia, Egito e Iraque após a chamada “Primavera Árabe”, empreendendo ataque contra cristãos e muçulmanos xiitas ou sunitas moderados. A Irmandade Muçulmana, organização internacional fundada no Egito em 1928, é a maior expoente do salafismo.

 

Um segundo campo é formado pelo pensamento pan-árabe, que conta com a convergência de setores modernizadores, nacionalistas, socialistas, republicanos e antiimperialistas, com ampla capilaridade na população de orientação muçulmana xiita e sunita moderada, além das minorias não islâmicas do Oriente Médio. Este campo originou-se do desmembramento do Império Otomano, no início do século XX, e ganhou força após o fim da II Guerra Mundial, impulsionado pelo anticolonialismo terceiro-mundista. Tem como fundamento a criação de um único Estado para o povo árabe, ideal alimentado por Nasser, no Egito, e pelo Partido Baath, na Síria, com as tentativas de unificação destes dois países entre 1958-1961, vindo a formar a República Árabe Unida. A Síria atual continua sendo um polo de irradiação deste pensamento, tendo perdido terreno na região em consequência da proliferação de governos de orientação pró-estadunidense.

 

Nota 2 – O panorama religioso conta com 74% de muçulmanos sunitas, cerca de 15% de xiitas (entre eles alauítas e drusos) e outros 10% de cristãos. Em relação às etnias, 85% são árabes e a principal minoria são os curdos, que chegam a aproximadamente 13% da população. Os alauítas, mesmo não sendo considerados como islâmicos pelos demais muçulmanos, se auto-identificam como xiitas. Bashar al Assad (atual presidente) pertence a este setor. Devido à natureza popular do xiismo, grande parte dos alauítas é partidária do Baath. Os drusos, seita islâmica de orientação xiita, considerada herege pelos sunitas, também são apoiadores do governo sírio. Grande parte da etnia curda é de muçulmanos sunitas – no entanto, são combatidos pelos sunitas wahhabitas por possuírem uma teologia mais sincrética, que reúne elementos do lazdaismo (antiga religião da etnia) e influências sufi. O Partido dos Trabalhadores do Curdistão apoia o governo sírio.

 

Nota 3 – “(...) Dissolução total do Líbano em cinco províncias serve como um precedente para todo o mundo árabe, incluindo o Egito, Síria, Iraque, e a Península Arábica já está seguindo essa trilha. A dissolução da Síria e do Iraque, mais tarde, em áreas etnicamente e religiosamente definidas, como no Líbano, é alvo primário de Israel na frente oriental, a longo prazo, enquanto a dissolução do poder militar dos Estados serve como o destino de curto prazo. A Síria vai desmoronar, de acordo com a sua estrutura étnica e religiosa, em vários Estados, como no atual Líbano, de modo que haverá um Estado xiita Alauíta, ao longo de sua costa, um Estado sunita na área de Aleppo, outro Estado sunita em Damasco, hostil ao seu vizinho do norte, e os drusos, que irão criar um Estado, talvez até mesmo em nossa Golã (Israel), e certamente em Hauran e no norte da Jordânia. Este estado de coisas vai ser a garantia de paz e segurança na região a longo prazo, e o objetivo já está ao nosso alcance hoje”. YINON, Oded, A Strategy for Israel in the Nineteen Eighties, 1982. Publicado no Jornal KIVUNIM, sob responsabilidade do Departamento de Publicidade da The World Zionist Organization, Jerusalém. Origem: http://members.tripod.com/alabasters_archive/zionist_plan.html


Leia Também Doutrina Obama e a guerra na Síria (1)


Pedro Otoni é cientista político, membro do Cedebras e do Conselho Editorial da Revista Bandung. É militante das Brigadas Populares.

Contato: pedrootoni(0)gmail.com

Comentários   

0 #1 RE: Doutrina Obama e a guerra na Síria (2)fusca do bairro 22-10-2012 18:22
A IMPRENSA MUNDIAL é próprio imperialismo.
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