Correio da Cidadania

Washington e as revoltas árabes: sacrificar ditadores para salvar o Estado

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Antecedentes históricos

 

A política externa dos EUA tem um longo histórico de instalação, financiamento, armamento e apoio a regimes ditatoriais, os quais suportam suas políticas e interesses imperiais ao mesmo tempo em que mantêm controle sobre o seu povo.

 

No passado, presidentes republicanos e democratas trabalharam em estreito contato durante mais de 30 anos com a ditadura Trujillo na República Dominicana; instalaram o autocrático regime Diem no Vietnã pré-revolucionário na década de 1950; colaboraram com duas gerações da família Somoza em regimes de terror na Nicarágua; financiaram e promoveram os golpes militares de Cuba em 1953, no Brasil em 1964, no Chile em 1973 e na Argentina em 1976, além dos subseqüentes regimes repressivos. Quando levantes populares desafiaram estas ditaduras apoiadas pelos EUA e uma revolução social e política parecia de provável êxito, Washington respondeu com uma política de três caminhos: publicamente, criticando as violações de direitos humanos e advogando reformas democráticas; privadamente, assinalando a continuidade de apoio ao governante; e em terceiro lugar, procurando uma alternativa de elite que pudesse substituir o dirigente e preservar o aparelho de Estado, o sistema econômico e apoiar os interesses imperiais estratégicos dos EUA.

 

Para os EUA não há relacionamentos estratégicos, apenas interesses imperiais permanentes, a preservação do Estado-cliente. As ditaduras assumem que o seu relacionamento com Washington é estratégico: daí o choque e horror quando são sacrificadas para salvar o aparelho de Estado. Temendo a revolução, Washington tem tido clientes déspotas relutantes, pouco desejosos de se afastarem, assassinados (Trujillo e Diem). Para alguns são proporcionados santuários no exterior (Somoza, Batista), outros são pressionados à partilha de poder (Pinochet) ou nomeados acadêmicos visitantes em Harvard, Georgetown ou algum outro posto acadêmico "prestigioso".

 

O cálculo de Washington sobre quando rearranjar o regime baseia-se numa estimativa da capacidade do ditador para agüentar o levante político, a força e lealdade das forças armadas e a disponibilidade de uma substituição acomodatícia. O risco de esperar demasiado, de colagem ao ditador, é que radicaliza a sublevação: a mudança decorrente varre para longe tanto o regime como o aparelho de Estado, transformando um levante político numa revolução social.

 

Tal "erro de cálculo" verificou-se em 1959 no avanço da revolução cubana, quando Washington ficou ao lado de Batista e não foi capaz de apresentar uma alternativa de coligação pró-EUA viável e ligada ao velho aparelho de Estado. Um erro de cálculo semelhante verificou-se na Nicarágua, quando o presidente Carter, enquanto criticava Somoza, manteve o curso e permaneceu passivo quando o regime era derrubado e as forças revolucionárias destruíam as forças militares treinadas pelos EUA e Israel, a polícia secreta e o aparelho de inteligência, avançando na nacionalização de propriedades dos EUA e desenvolvendo uma política externa independente.

 

Washington movimentou-se com maior iniciativa na América Latina da década de 1980. Promoveu transições eleitorais negociadas que substituíram ditadores por políticos neoliberais flexíveis, os quais se comprometeram a preservar o aparelho de Estado existente, defender as elites privilegiadas externas e internas e apoiar políticas regionais e internacionais dos EUA.

 

Lições do passado e políticas do presente

 

Obama tem sido extremamente hesitante na remoção de Mubarak por várias razões, mesmo quando o movimento cresce em números e o sentimento anti-Washington aprofunda-se. A Casa Branca tem muitos clientes por toda a parte do mundo – incluindo Honduras, México, Indonésia, Jordânia e Argélia – que acreditam terem um relacionamento estratégico com Washington e perderiam confiança no seu futuro se Mubarak fosse jogado fora.

 

Em segundo lugar, as altamente influentes organizações pró-Israel nos EUA (AIPAC, os presidentes das principais organizações judias americanas) e o seu exército de escribas mobilizaram líderes do Congresso para pressionar a Casa Branca a continuar a apoiar Mubarak, pois Israel é o primeiro beneficiário de um ditador que está na garganta dos egípcios (e palestinos) e aos pés do Estado judeu.

 

Em conseqüência, o regime Obama tem se movido vagarosamente, sob o temor e a pressão do crescente movimento popular egípcio. Ele procura uma fórmula política alternativa que não apenas remova Mubarak, mas retenha e fortaleça o poder político do aparelho de Estado e incorpore uma alternativa eleitoral civil como meio de desmobilizar e ‘des-radicalizar’ o vasto movimento popular.

 

O principal obstáculo para remover Mubarak era um sector importante do aparelho de Estado, especialmente os 325 mil membros das Forças Centrais de Segurança e os 60 mil da Guarda Nacional, diretamente sob a alçada do Ministério do Interior e, antes, de Mubarak. Em segundo lugar, os generais de topo do Exército (468.500 membros) sustentaram Mubarak durante 30 anos e enriqueceram-se através do seu controle sobre muitas companhias lucrativas num vasto conjunto de setores. Eles não apoiarão qualquer "coligação" civil que ponha em causa seus privilégios econômicos e o seu poder de estabelecer os parâmetros políticos de qualquer sistema eleitoral. O comandante supremo dos militares egípcios é um antigo cliente dos EUA e um colaborador aquiescente de Israel.

 

Obama é resolutamente favorável a colaborar e a assegurar a preservação destes corpos repressivos. Mas também precisou convencê-los não só a substituir Mubarak, levando em conta um novo regime que possa neutralizar o movimento de massa que cada vez mais se opõe à hegemonia dos EUA e à subserviência a Israel. Obama fará todo o necessário para manter a coesão do Estado e esvaziar quaisquer aberturas que possam levar a um movimento de massa – alianças de soldados que poderiam converter o levante numa revolução.

 

Washington abriu conversas com os setores liberais e clericais mais conservadores do movimento anti-Mubarak. A princípio tentou convencê-los a negociar com Mubarak – uma posição beco sem saída que foi rejeitada por todos os setores da oposição, desde o topo até a base. Obama tentou então vender uma falsa "promessa" de Mubarak, a de que não concorreria às eleições, daqui a nove meses.

 

O movimento e seus líderes também rejeitaram aquela proposta. Assim, Obama levantou a retórica de "mudanças imediatas", mas sem quaisquer medidas substantivas que a apoiassem. Para convencer Obama da sua contínua base de poder, Mubarak enviou a sua formidável polícia secreta de gangster-lumpens para tomar violentamente as ruas. Um teste de força: o Exército ficou ao lado, o assalto elevou a aposta de uma guerra civil, com conseqüências radicais. Washington e a UE pressionaram o regime Mubarak a recuar – por agora. Mas a imagem de militares pró-democracia foi empanada, pois mortos e feridos multiplicaram-se aos milhares.

 

À medida que a pressão do movimento se intensificava, Obama pressionava em sentidos opostos. Por um lado pelo lobby Mubarak-Israel e os seus apoiadores no Congresso; por outro, por conselheiros com discernimento, a apelarem para seguir as práticas do passado e movimentar-se decisivamente, sacrificando o regime, a fim de salvar o Estado enquanto a opção liberal-clerical ainda está sobre a mesa.

 

Mas Obama hesita e, como um crustáceo cauteloso, move-se de lado e para trás, acreditando que a sua própria retórica grandiloqüente substitui a ação... Esperando que mais cedo ou mais tarde o levante acabe por cessar com um mubarakismo sem Mubarak - um regime capaz de desmobilizar os movimentos populares e desejoso de promover eleições que resultem em responsáveis eleitos, que sigam a linha geral do seu antecessor.

 

No entanto, há muitas incertezas num rearranjo político: uma cidadania democrática, 83% desfavorável a Washington, possuirá a experiência de luta e liberdade para clamar por um realinhamento da política, especialmente para cessar de ser uma polícia impondo o bloqueio israelense de Gaza e dando apoio a fantoches dos EUA na África do Norte, Líbano, Iêmen, Jordânia e Arábia Saudita.

 

Em segundo lugar, eleições livres abrirão o debate e aumentarão a pressão por maior despesa social, a expropriação dos 70 bilhões de dólares do império do clã Mubarak e dos capitalistas de compadrio que pilham a economia. As massas exigirão uma redistribuição da despesa pública do super-inchado aparelho repressivo para as áreas de emprego produtivo.

 

Uma abertura política limitada pode levar a um segundo round, no qual novos conflitos sociais e políticos dividirão as forças anti-Mubarak, um conflito entre os advogados da social-democracia e os apoiadores de elite ao eleitoralismo neoliberal. O momento anti-ditatorial é apenas a primeira fase de uma luta prolongada rumo à emancipação definitiva, não apenas do Egito, como de todos os países árabes. O resultado depende da medida em que as massas desenvolverão a sua própria organização e líderes independentes.

 

James Petras é sociólogo, nascido em Boston, e publicou mais de sessenta livros de economia política e, no terreno da ficção, quatro coleções de contos.

Retirado do Diário Liberdade.

 

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Comentários   

0 #3 E os fundamentalistas?Leandro Altheman 20-02-2011 16:29
Brilhante análise. Só senti falta na analise da nova equação egípcia, de qual será o peso dos fundamentalistas nela.
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0 #2 O Essencial PetrasRaymundo Araujo Filho 17-02-2011 16:38
Já recomendei aqui no Correio e volto a fazê-lo, o livro Ensaios Contra Ordem, onde o mebro do Tribunal Russel para a América Latina, noa apresenta com grande intimidade os alvos e mecanismos de cooptação, exercida pelo Capital Internacional, muito mais em nome das corporações até do que de Estados, mesmo os EUA, muito mais sequestrados do que podemos imaginar.

Al ler este Ensaio, reconheci muitos personagens brasileiros ali descritos sob a ação de outros, até de países distantes, como Tailândia e Egito, or exemplo.

Penso que os agentes do capital devem estar tendo bastante trabalho, para amenizar para seus patrões, o novo cenário que desponta no Oriente Médio.

Mesmo sem ufanismos que apenas indicam a redução dos horizontes politicos de muitos, não deixo de ver com agrado o Povo nas Ruas protestando por melhores condições de vida e Liberdade. Seja onde for.
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0 #1 Demetrio 17-02-2011 08:57
Gosto de ler o Petras porque ele é sempre muito bem informado sobre a respeito da política externa estado-unidense. Bom vê-lo nas páginas do Correio.
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