Correio da Cidadania

Os planos do Brasil para a Saúde no G-20

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Experiente, o diplomata Alexandre Ghisleni viu de perto o isolamento internacional do Brasil nos anos Bolsonaro, quando ocupou a chefia do departamento de Promoção do Agronegócio do Ministério das Relações Exteriores, enquanto um chanceler não se assombrava em avisar ao mundo que o país se dispunha a se tornar pária global. Agora, Ghisleni observa as oportunidades que se reabrem com a ascensão de um governo saudado pela comunidade internacional. Está em outro posto. Agora, comanda a Assessoria Especial de Assuntos Internacionais (Aisa) do Ministério da Saúde. Não tem dúvidas em afirmar que 2024 é um ano em que o Brasil tem oportunidades decisivas diante de si.

A presidência rotativa do G20, que significará um calendário de reuniões internacionais em solo brasileiro ao longo de todo o ano, é o gatilho que pode impulsionar avanços no multilateralismo e na inserção do país na economia global. No âmbito da saúde, o assessor especial afirma que o Brasil tem clareza total de seus propósitos.

“Vamos discutir questões como recursos humanos, síndrome pós-pandêmica, telessaúde, inteligência artificial… Mas o ponto fundamental, a grande proposta que está sendo apresentada, o principal deliverable, como se diz em inglês, é a criação de uma aliança internacional para a produção regional e inovação — uma proposta voltada para fomentar a pesquisa e desenvolvimento de medicamentos, vacinas e material de diagnóstico para doenças com uma forte determinação social”.

Ou seja, o diplomata sinaliza que o Brasil usará de seu papel no G20 para avançar em sua nova agenda de industrialização, recém-apresentada pelo governo, e parcerias com países do sul global, a exemplo dos BRICS, bloco alternativo à hegemonia ocidental, cujas necessidades de desenvolvimento guardam notáveis semelhanças.

“O que nós estamos propondo no G20 é o fortalecimento de produção regional e de inovação na área de saúde, o que é totalmente convergente com as nossas prioridades nacionais. O que pudermos avançar em favor do mundo, no sentido de se criar esquemas que permitam a ampliação da produção regional na América Latina e na África, certamente vai ser útil para o Brasil. Poderemos nos inserir em esquemas regionais de pesquisa, desenvolvimento e produção”, sintetizou.

No entanto, além dos projetos de longo prazo que tais parcerias e investimentos significariam, há questões mais imediatas a serem resolvidas pelos organismos internacionais. E a saúde mais uma vez se coloca no centro de impasses gerais do multilateralismo, como se viu na OMS e sua dificuldade em avançar em um novo pacto antipandemias. Ghisleni reconhece que este gargalo precisa ser tratado por fóruns como o G20.

“Em especial em relação à questão da preparação para uma próxima pandemia, o que existe é um movimento, que até em certa medida é bastante natural, de mudança de agenda, no sentido de que a Covid-19 deixou de estar entre as prioridades máximas dos governos. Agora estamos trabalhando com outras, e precisamos aproveitar o momento de atenção remanescente à questão da pandemia para estabelecer um marco que nos deixe mais bem preparados para a eventualidade de uma próxima pandemia. Isso é muito importante porque as razões estruturais que levaram à disseminação da Covid-19 continuam. E o fato é que se surgisse um novo patógeno com potencial pandêmico, o mundo estaria em grande medida tão despreparado para enfrentá-lo quanto esteve no surgimento da Covid-19”, analisou.

Ghisleni é otimista com relação ao papel jogado pelo Brasil, cujas posições a respeito da necessidade de busca de soberania sanitária e produção nacional de insumos de saúde foram demarcadas pela ministra Nísia Trindade em suas viagens internacionais. Na presidência do G20, o Brasil terá a oportunidade de carimbar este novo momento do multilateralismo, num contexto global de múltiplas crises e confrontações.

“Temos de fortalecer a vigilância sanitária, toda a cadeia de suprimentos, de estímulos estratégicos para a saúde, é o sistema como um todo que tem de ser fortalecido. E é isso que está em jogo. Enfim, continuamos aqui no ministério da Saúde apostando nossas fichas na possibilidade de que seja concluído um acordo. A expectativa é que isso se dê em maio, e torcemos para que isso aconteça na Assembleia Mundial da Saúde. Estamos trabalhando nesse sentido, envolvidos na negociação com o objetivo de concluir e chegar a um marco internacional que seja sólido e nos ajude a enfrentar desafios futuros”.

Leia a entrevista completa com Alexandre Ghisleni.

Primeiramente, que oportunidades a presidência do G20 abre ao Brasil no âmbito da saúde?

Na área de saúde, temos uma oportunidade importante no seguinte sentido: as linhas gerais da agenda internacional da área são mais ou menos compartilhadas. Existe um consenso a respeito de quais são os temas prioritários para a totalidade da comunidade internacional. A vantagem que temos na presidência do G20 é poder apresentar o nosso enfoque, as nossas propostas para o debate. E poder encaminhar soluções para questões que, estando dentro dessas prioridades da comunidade internacional, falam mais de perto com as necessidades de países como o Brasil, de países em desenvolvimento e, sobretudo, aqueles países tropicais que têm uma situação sanitária similar à do Brasil.

O que você poderia mencionar a respeito das bandeiras que o Brasil pretende levantar nessas discussões de saúde, especificamente no G20?

Nossos temas prioritários são cuidados em saúde, preparação para a próxima pandemia, saúde digital e mudanças climáticas e sua relação com saúde. O Brasil está propondo eventos e tem propostas mais concretas para cada uma dessas áreas, que comporão as prioridades do grupo de trabalho de saúde do G20. Dentro do marco dessas prioridades, teremos várias propostas, vamos discutir questões como recursos humanos, síndrome pós-pandêmica, telessaúde, inteligência artificial…

Mas o ponto fundamental, a grande proposta que está sendo apresentada, o principal deliverable, como se diz em inglês, é a criação de uma aliança internacional para a produção regional e inovação, uma proposta voltada para fomentar a pesquisa e desenvolvimento de medicamentos, vacinas e material de diagnóstico para doenças com uma forte determinação social.

Temos muito em mente as chamadas doenças negligenciadas, mas não só elas. Por exemplo, entra malária, entra também dengue, chikungunya, zika, doença de chagas, enfim, uma lista de doenças que são problemas reais. Estamos em meio a uma epidemia de dengue. A ideia seria fomentar a viabilização de soluções para as falhas de mercado. Por exemplo, para a dengue nós já temos uma vacina, mas não tem remédio e não tem material de diagnóstico. Como poderíamos auxiliar o desenvolvimento de instrumentos nessas duas áreas? Assim, o propósito dessa aliança seria juntar atores da cena internacional. Eu estou falando aqui de centros de pesquisa e desenvolvimento, de governos, setor privado, organizações internacionais, para ajudar a encontrar soluções para esses temas.

Como analisa a discussão sobre novos pactos globais em saúde, em especial sobre futuras pandemias? Estamos diante de impasses que refletem uma crise do multilateralismo?

Essa é uma reflexão um pouco mais ampla. Fala-se muito na crise do multilateralismo por causa da sua incapacidade de dar soluções rápidas, mas a razão pela qual temos um sistema multilateral é porque precisa se mediar entre todos os atores internacionais, principalmente governos, para a busca de soluções conjuntas, o que naturalmente é muito difícil e leva tempo. Às vezes um tempo maior do que gostaríamos. Mas isso é simplesmente o funcionamento normal, esperado, do multilateralismo. Eu não falaria de crise no caso relativo à saúde.

Em especial em relação à questão da preparação para uma próxima pandemia, o que existe é um movimento, que até em certa medida é bastante natural, de mudança de agenda, no sentido de que a Covid-19 deixou de estar entre as prioridades máximas dos governos. Agora estamos trabalhando com outras, e precisamos aproveitar o momento de atenção remanescente à questão da pandemia para estabelecer um marco que nos deixe mais bem preparados para a eventualidade de uma próxima pandemia.

Isso é muito importante porque as razões estruturais que levaram à disseminação da Covid-19 continuam. E o fato é que se surgisse um novo patógeno com potencial pandêmico, o mundo estaria em grande medida tão despreparado para enfrentá-lo quanto esteve no surgimento da Covid-19. Assim, fortalecer os sistemas de saúde e aumentar seu grau de resiliência é uma questão fundamental para que nós não tenhamos de passar o mesmo grau de dificuldade, e digo isso não apenas em relação ao Brasil, mas olhando o cenário internacional. O mundo inteiro passou pela mesma situação. O desafio atual na OMS, de discutir questões como preparação da próxima pandemia e os acordos necessários para poder viabilizá-la, é conseguir aproveitar esse resto de momento que ainda existe, em que o tema da pandemia ainda está vivo na memória da comunidade internacional, para conseguir dar o passo adiante de fortalecer os sistemas de saúde.

Claro que para tanto também temos de fortalecer a vigilância, toda a cadeia de suprimentos, de inputs estratégicos para a saúde, é o sistema como um todo que tem de ser fortalecido. E é isso que está em jogo. Enfim, continuamos aqui no Ministério da Saúde apostando nossas fichas na possibilidade de que seja concluído um acordo, a expectativa é que seja concluído em maio, e torcemos para que isso aconteça na Assembleia Mundial da Saúde. Estamos trabalhando nesse sentido, envolvidos na negociação com o objetivo de concluir e chegar a um marco internacional que seja sólido e nos ajude a enfrentar desafios futuros.

Como a nova política de industrialização proposta pelo governo Lula incidirá na saúde? 2024 será um ano decisivo para avançar o chamado Complexo Econômico Industrial em Saúde?

São duas coisas convergentes, porque no G20 nós não estamos pensando em situações nacionais. Estamos pensando em qual a contribuição os países mais ricos do planeta podem dar para resolver as questões globais. Pois bem, o que nós estamos propondo no G20 é o fortalecimento de produção regional e de inovação na área de saúde, o que é totalmente convergente com as nossas prioridades nacionais.

Assim, o que pudermos avançar em favor do mundo, no sentido de se criar esquemas que permitam a ampliação da produção regional na América Latina e na África, certamente vai ser útil para o Brasil e o Brasil vai poder ser útil para isso. Poderemos nos inserir em esquemas regionais de produção e desenvolvimento, de pesquisa e desenvolvimento também, que podem ser úteis para os países da nossa região e do resto do mundo.

Em linhas gerais, quais seriam as principais vantagens que o CEIS ofereceria à população brasileira, tanto sociais como econômicas?

Com toda certeza, há vantagens nos dois lados. Acho que é um consenso na sociedade brasileira de que o Brasil precisa se reindustrializar. E mais do que voltar à indústria que o Brasil já teve no passado, precisamos avançar na industrialização de coisas que digam mais respeito à realidade contemporânea. E uma das áreas em que o Brasil mais tem potência para se desenvolver industrialmente é a área da saúde, onde já temos um trabalho acumulado, capacidade de pesquisa e produção, e a possibilidade de uma expansão ordenada, enfim, é muito importante.

Do ponto de vista social, faz uma diferença muito grande, porque se você puder ter esquemas regionais de produção, como estamos falando no G20, e um fortalecimento da indústria nacional mais especificamente, isso significa garantir o suprimento, significa que a gente não vai passar pela situação que passamos ao longo da pandemia de Covid-19, em que o fornecimento de alguns produtos estratégicos foi suspenso por decisão dos países produtores, e depois o resto do mundo tinha que se virar.

Portanto, temos garantia de suprimento e também de acesso econômico às pessoas. Podemos garantir o preço mais acessível para o sistema de saúde, no caso do Brasil para o SUS, que garantirão que tais produtos cheguem efetivamente à população, quando eles forem mais necessários. O que significa uma solução que atinge dois lados ao mesmo tempo. E para exemplificar, apresentar um exemplo perfeito de desenvolvimento sustentável dentro desta chamada neoindustrialização, tem de ser pensada de maneira que seja ambientalmente sustentável, a fim de completar o tripé do desenvolvimento sustentável: econômico, social e ambiental.

Essa é a ideia de uma visão de desenvolvimento econômico vinculada não apenas à questão do PIB, de crescimento de produção, mas também à atenção às necessidades da população e uma relação mais sustentável com a natureza.

Depois de um um primeiro ano de reorganização de políticas públicas e elaboração de novas, como a debatida industrialização, 2024 se apresenta como um ano mais decisivo do que possa parecer em termos de direcionamento de um novo modelo de desenvolvimento econômico e inserção internacional do Brasil?

Gostaria de sublinhar para as pessoas a importância do momento que vivemos no G20. Mantidas as regras atuais, a próxima vez que o Brasil vai assumir a presidência do G20 será em 2044. Estaremos vivendo em um país já diferente. Essa é uma oportunidade para uma geração tentar direcionar o debate internacional para coisas que sejam úteis a uma larga parte da humanidade, da comunidade internacional, mas particularmente para a nossa própria população também. É essa oportunidade que queremos aproveitar. Não devemos deixar passar.

Gabriel Brito é jornalista, editor do Correio da Cidadania e repórter do Outra Saúde, onde esta matéria foi originalmente publicada.

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