Correio da Cidadania

Somália: “Atentado de outubro é desdobramento imediato de mais de 20 anos de guerra civil”

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Neste mês de outubro, dois atentados chacoalharam a Somália. No primeiro, no dia 14, um duplo atentado contra alvos civis na capital Mogadíscio deixou quase 400 mortos, foi o maior da história do país e atraiu alguma atenção da mídia internacional. O segundo, no último dia 28, visou alvos militares e deixou cerca de 50 mortos. O grupo jihadista Al-Shabbab assumiu a autoria do segundo atentado, embora boa parte da sociedade somali atribua a ele a autoria também do primeiro. O Governo Central prometeu uma ofensiva. Entrevistado pelo Correio da Cidadania, o sociólogo e pesquisador do continente africano Daniel Cunha atribui tamanha tragédia aos desdobramentos de mais de 20 anos de guerra civil, iniciada em 1991 após a queda do regime de Siad Barré.

“Este é um desdobramento imediato da crise gerada pela dissolução do regime de Siad Barre, que era em sua época considerado um regime forte por ser de grande apelo nacionalista e centralizador. Mas, acuados para um plano secundário, os setores muçulmanos puristas sobreviveram ou se adaptaram a essa época de unificação simbólica autoritária. Muitos foram perseguidos por um regime que se identificou com os regimes socialistas internacionais e pan-africanos, e que tentou a todo custo cortar os persistentes elos entre política e religião que já haviam no país. Por outro lado, a ascensão do Al-Shabaab é também o desdobramento de média e longa duração, nem sempre evidente, de uma história muito mais remota, uma vez que esses movimentos islâmicos “puritanos” estão presentes em todo o entorno geográfico do norte africano e do Chifre da África já há alguns séculos”, analisa Cunha.

Ao longo da entrevista, Daniel Cunha vai explicando detalhes da história política somali, a economia do país, sua importância geopolítica em tempos de guerra fria e atualmente – com a entrada de investimentos turcos e chineses. Ademais, desenha um importante panorama conjuntural das forças políticas que disputam o poder por lá, entre eles o Al-Shabbab, sempre apontando para as grandes contradições e problemas estruturais que permeiam a realidade somali.

“Muitos mercadores de Mogadício e arredores ainda solicitam proteção ao grupo e pagam por isso, enquanto outros habitantes recorrem às suas cortes de sharia para resolverem suas lides. Por quê? Porque as forças do governo federal também costumam agir de forma abusiva, muitas vezes com recurso aos abusos de poder sob a retaguarda da impunidade, do mesmo modo como ocorre no norte da Nigéria, na guerra suja entre o governo federal e o Boko Haram. Se o governo realmente quiser ‘libertar o país’, teria que começar dando o exemplo, negociando as demandas das administrações locais de modo efetivo, evitando ‘jogos de soma zero’, e conquistando a legitimidade popular. Infelizmente, não é isso o que acontece”, avaliou.

Leia abaixo a entrevista na íntegra.


Daniel Cunha. Arquivo pessoal

Correio da Cidadania: Como você recebeu o atentado do último dia 14 de outubro atribuído ao grupo Al-Shabaab que deixou ao menos 315 pessoas mortas, sendo considerado o maior da história do país? Como você interpreta as repercussões da mídia internacional sobre esse acontecimento?

Daniel Cunha: Eu soube da notícia pelo site BBC África, que acompanho quase todos os dias. Como foi um atentado que deixou um número muito expressivo de mortos, próximo ao número de vítimas do 11 de Setembro, imaginei que haveria uma atenção diferenciada por parte da mídia internacional, embora sem comparação com a comoção que costuma ser causada por atentados que ocorrem na Europa e nos Estados Unidos.

Talvez isso esteja mudando agora, já que as redes sociais também acabam por inspirar algum senso crítico entre aqueles que se predispõem a desenvolver o senso crítico. Por outro lado, a África, mais que o Oriente Médio, a Ásia e a América Latina, ainda continua a ser a maior vítima do desprezo geral. Um bom exemplo diz respeito aos referendos da Catalunha e de Bashûr, a parte do Curdistão localizada no Iraque, que receberam uma ampla cobertura da imprensa internacional.

Pois bem, no mesmo dia houve um terceiro referendo secessionista no Camarões, a parte “anglófona” da atual república (“francófona”) de Camarões. A reação truculenta do governo camaronês ao pleito resultou, no mesmo dia, em dezenas de mortes entre os votantes camaroneses. A mídia internacional ignorou solenemente esse verdadeiro massacre e preferiu se concentrar, acompanhada por indignação generalizada, nos narizes quebrados dos eleitores de Barcelona.

É evidente que narizes quebrados importam e devem ser relatados como atos de brutalidade desproporcional, mas retirar a vida das pessoas que apenas manifestavam seus pontos de vista é muito mais grave. Não há como negar que a opinião pública mundial, inclusive entre aqueles grupos supostamente bem-intencionados que se dizem de esquerda “socialista” ou “anarquista” têm se mostrado seletiva e racista, e não têm se preocupado muito com as tragédias que acometem as populações de pele mais escura e sem ideologias atraentes localizadas em países ou localidades desconhecidas, estejam elas do outro lado do planeta ou nas adjacências e mesmo no interior de nosso país.

O darwinismo social, essa aberração ideológica do século 19, ainda está gravado em nosso hardware cerebral. Já não é mais a distância espacial que serve como motivo e justificativa principal para o desdém pelas desgraças alheias, como gostavam de argumentar os filósofos do Iluminismo. A distância predominante, no mundo contemporâneo, é aquela demarcada pela barreira da cor da pele e da aparência física, sempre em combinação com outras barreiras discriminatórias complementares ou transversais, como a da classe social, a da confissão religiosa e a da confissão ideológica.

Correio da Cidadania: Este atentado, bem como as hostilidades entre o Al-Shabaab e o governo somali, é um desdobramento da guerra civil que já dura mais de 20 anos e começou após a queda do ditador Mohamed Siad Barre?

Daniel Cunha: Sim, este é um desdobramento imediato da crise gerada pela dissolução do regime de Siad Barre, que era em sua época considerado um regime “forte” por ser de grande apelo nacionalista e centralizador. Mas, acuados para um plano secundário, os setores muçulmanos “puristas” sobreviveram ou se adaptaram a essa época de unificação simbólica autoritária.

Muitos foram perseguidos por um regime que se identificou com os regimes socialistas internacionais e pan-africanos, e que tentou a todo custo cortar os persistentes elos entre política e religião que já haviam no país. Por outro lado, a ascensão do Al-Shabaab é também o desdobramento de média e longa duração, nem sempre evidente, de uma história muito mais remota, uma vez que esses movimentos islâmicos “puritanos” estão presentes em todo o entorno geográfico do norte africano e do Chifre da África já há alguns séculos.

Dois exemplos mais salientes são os mahdis, que se revoltaram contra a presença militar anglo-egípcia no Sudão, em fins do século 19, e os sanusi, que apareceram na Cirenaica, onde é o hoje o sul da Líbia. Olhando para a longa duração e para o entorno ainda mais ampliado, essa história de “purificação” religiosa é muito anterior, o que hoje chamamos de ondas de “fundamentalismo” se entrelaça dialeticamente com ciclos de “renascimento”, ou seja, de esplendor cultural, econômico, científico e tecnológico, desde as primeiras décadas de existência do Islã, assim como de outras civilizações.

Para quem quiser tomar contato com esse assunto, o antropólogo Jack Goody resumiu muito bem essa complexa história de 1400 anos, em um dos capítulos do livro Renascimentos. Este livro, inclusive, é um bom roteiro introdutório para quem ainda se dispuser a apagar de vez os resquícios de darwinismo social presentes em nosso subconsciente.

Correio da Cidadania: Por que o Al-Shabaab atacou alvos civis na capital Mogadíscio, próximos do Hotel Safari e do bairro Medina? O que estas regiões da capital representam para terem recebido um ataque desses?

Daniel Cunha: O distrito de Medina tem sido, nas últimas décadas, um enclave de presença ocidental na cidade de Mogadíscio, e por isso a área é muito visada como alvo preferencial pelos fundamentalistas que apelam para o terrorismo. A presença de um hotel chamado Safari é apenas a revelação um tanto caricata dessa “abertura para o mundo exterior”.

Em 1993, durante o episódio do filme “Black Hawk Down” (Falcão Negro em Perigo, na tradução brasileira), ali também se encontravam o quartel-general da Operação das Nações Unidas na Somália (UNOSOM), bem como as instalações milionárias e luxuosas de diversas agências da ONU, que foram completamente pilhadas em seguida ao fracasso das intervenções “humanitárias” do período.  

Tais instalações, na época, foram apelidadas pelos habitantes da cidade de “campo dos assassinos”, e seu simbolismo negativo nunca mais saiu da memória coletiva. Atualmente, uma parte dos civis que ali circulam tem um status social diferente em relação aos demais habitantes da cidade. É também em Medina que se encontram a Universidade Nacional da Somália, dois dos maiores hospitais do país e, até há pouco tempo, a embaixada dos Estados Unidos. Também estão ali instalados um contingente da Missão de Paz da União Africana (AMISOM) e um campo de refugiados mantido por recursos norte-americanos, por isso chamado localmente de “enclave americano”.

Historicamente, os comandantes da AMISOM e de sua antecessora, uma missão de paz coordenada pela Autoridade Intergovernamental de Desenvolvimento (IGAD), são todos eles oriundos da Etiópia, do Quênia e do Uganda, que são países hostis à filosofia do Al-Shabaab e apoiam o Governo Federal de Transição. A ofensiva da AMISOM contra o Al-Shabaab começou em 2007 e se intensificou em 2015, e foi bem-sucedida até certa altura, ao impor severas perdas territoriais ao grupo, o que inflama ainda mais os ânimos dos membros desse grupo, que já chegou a controlar a maior parte da cidade.

Embora tenha sido desde então acuado para o interior do território, o Al-Shabaab ainda mantém bolsões de atividade em um raio de ação no entorno da capital, principalmente nas proximidades da zona sul, bolsões estes que, dizem, estão voltando a se expandir de dois anos para cá. Assim, o distrito é uma área estratégica para ambos os lados do confronto, porque é a ligação com o sul do país, uma área estratégica fundamental para o Al-Shabaab.

Correio da Cidadania: É possível traçar um paralelo entre o Al-Shabaab e o Estado Islâmico, levando em consideração a hipótese de que após a queda do governo central em 1991 os tribunais baseados na Sharia tenham se tornado cada vez mais comuns no país?

Daniel Cunha: O Al-Shabaab e o Estado Islâmico são muito diferentes entre si, em termos de origens políticas, de legitimação popular, de mobilização armada e de riqueza acumulada, embora compartilhem ideias, símbolos e práticas semelhantes. Mais do que isso, são mesmo inimigos, e digo mais adiante o porquê.

Mas antes vamos às peculiaridades de cada um. O Estado Islâmico surgiu e talvez desapareça logo como uma organização de mercenários sem muito interesse em garantir uma legitimidade social, nem no Iraque, nem na Síria, onde se estabeleceram após se desdobrarem como uma dissidência radical da Al-Qaeda. Sua propaganda é internacional e se baseia não apenas no verniz de propaganda religiosa, mas nas promessas de enriquecimento rápido garantido pelas rendas bilionárias do petróleo. Quanto a essas expectativas mobilizadoras, basta ler os relatos de alguns de seus militantes e ex-militantes mais ou menos arrependidos.

Essa comunidade de mercenários atinge não apenas os países do Oriente Médio, mas a Europa e outras regiões geográficas, por meio de redes invisíveis de alistamento dirigidas a jovens profissional e pessoalmente frustrados, de hinos islâmicos remixados disponíveis no YouTube (com letras sofisticadas em árabe, diga-se), chamados Nasheed, e de publicações online com um primoroso design gráfico, a exemplo da revista Dabiq. Todo esse aparato é bancado pelas rendas do petróleo, pelo possível fomento velado de outros países interessados na geopolítica regional e, em menor escala, do saque de sítios arqueológicos.

A história que converge para o Al-Shabaab não envolve em princípio o imediatismo da captura de poços já disponíveis de petróleo (eu disse “em princípio”, e sobre isso vamos voltar mais adiante), nem a criação de um “califado” fantasioso e sem qualquer fundamento histórico, mas diz respeito às próprias dificuldades envolvidas no processo de formação e de consolidação de um Estado nacional.

A história do Al-Shabaab e dos movimentos que o precederam é uma história indiscutivelmente somali, feita pelos somalis e para os somalis. Esses movimentos foram e ainda são potencialmente expansionistas apenas até o limiar de onde esse povo estiver: o planalto do Ogaden, na Etiópia, o norte do Quênia e o Djibuti. Ou seja, trata-se de um fundamentalismo nacionalista, se bem que com precedentes mais nacionalistas e um futuro talvez mais fundamentalista. Neste ponto referente ao nacionalismo, o grupo somali tem muito mais semelhanças com o Hayat Tahrir al-Sham e o Ahrar al-Sham, que são grupos radicais armados eminentemente sírios, portanto nacionalistas, do que com o Estado Islâmico.

Os antecedentes do Al-Shabaab remontam à fundação da Liga Juvenil Somali, formada em 1943 por Haji Mohamed Hussein, e se tratava de um movimento reformista radical que aspirava a unificação de todos os somalis e a liquidação tanto da dominação colonial (italiana, britânica e francesa) quanto do divisionismo entre os clãs. No entanto, como muitos outros movimentos pelo mundo, a LJS se dividia entre uma ala tradicionalista e uma ala “modernizadora”, que convergiu para dois extremos: os tradicionalistas ligados a Hussein e os modernistas associados a Abdullahi Issa, tido pelos primeiros como “colaboracionista” e “frouxo” em relação à pauta da unificação política dos somalis.

Enquanto Issa foi desde o princípio favorável à proposta de escrita da língua somali em alfabeto latino modificado, Hussein, que havia estudado na tradicionalíssima Universidade Islâmica de al-Azhar, no Cairo, era favorável ao uso do alfabeto árabe, e esse é um debate ainda em aberto.

Os conflitos atuais no país são uma ressonância dessa disputa sem fim, e pode-se dizer que o Al-Shabaab é um epígono radical de Hussein, ao passo que o Governo Federal de Transição é tributário do “ocidentalismo” de Issa, embora também haja muito de moderno entre os primeiros e muito de tradicional entre os últimos.

Aparentemente, os “modernistas” têm levado a melhor, mas movimentos como o Al-Shabaab estão aí para contradizer essa assertiva, tanto com seu recurso retórico ao “tradicionalismo” quanto com sua economia política também “modernista”, porque concorrencialmente nacionalista, militarista e estatista.

Agora vamos ao Al-Shabaab em si. O grupo surgiu formalmente como um braço militar da União das Cortes Islâmicas, que por sua vez é um desdobramento do Al-Itihaad al-Islamiya (AIAI), isto é, “União Islâmica”, quando ninguém ainda ouvia falar de Al-Qaeda. O AIAI foi formado em 1992 para fazer frente ao já então chamado Governo Federal de Transição, em princípio, aparentemente um “governo fantoche” manipulado pela Etiópia e pelos Estados Unidos. Aos olhos de muitos somalis, o período de domínio da União das Cortes Islâmicas sobre a capital do país, em meados dos anos 2000, ainda é lembrado como um momento de relativa tranquilidade, se comparado ao período precedente, em que todo o território somali esteve controlado por warlords (senhores da guerra) locais.

Finalizando o contraste com o Estado Islâmico, é verdade que ambos tiveram alguma relação com a Al-Qaeda. A diferença é que o EI é um desdobramento radicalizado daquele grupo, ao passo que o Al-Shabaab é o resultado de uma aliança e relativa fusão de alguns elementos estrangeiros do grupo de Bin Laden, inclusive uma liderança nascida nos Estados Unidos, com uma ala predominante formada por elementos locais. Apenas para ilustrar a inimizade entre o EI e o al-Shabaab, em 2015, alguns elementos do EI tentaram desembarcar na costa de Puntlândia, no norte do país, mas foram violentamente repelidos pelo braço local do Al-Shabaab. Os invasores que foram capturados logo foram julgados e condenados à morte pelo Amniyat, que é o órgão de segurança interna do Al-Shabaab. Ou seja, não se pode parafrasear o presidente Bush nesses casos, e falar em um “eixo do mal” formado por uma hipotética coalizão internacional de movimentos fundamentalistas. A realidade desmente completamente tal tipo de suposição, pois envolve outras “variáveis” históricas, culturais, geográficas, ideológicas etc.

Apesar dessas diferenças, como eu havia adiantado, todos esses grupos compartilhem ideias, símbolos e práticas semelhantes. Todos eles apelam para flagelações, amputações e execuções públicas, por exemplo. Neste ponto, estão todos de acordo quanto ao espetáculo de horror, ditado pelo que eles interpretam como sharia, registrado por celulares e divulgado na internet.

Para finalizar, quanto à economia política do Al-Shabaab, eles também têm apelado para as rendas do petróleo, mas não dos poços de petróleo da Somalilândia, ao norte, que são ainda subexplorados, mas ao petróleo roubado pelos piratas, em ataques aos petroleiros que transitam em direção ao mar Vermelho. Mas é muito menos petróleo adquirido, se comparado com aquele volume que o Estado Islâmico chegou a controlar e a vender no Mashriq.

As rendas do carvão vegetal que o Al-Shabbab explora também são insuficientes para seus objetivos. De alguns meses para cá, por isso, o grupo somali voltou a se apoiar nos seus compatriotas que se dedicam à pirataria, que também voltaram à ofensiva depois de alguns anos sendo alvos de uma repressão bem-sucedida em alto-mar. Em todo caso, o Al-Shabaab é um grupo relativamente pobre, se comparado com outros movimentos terroristas, principalmente porque atualmente não interessa a quase ninguém investir neles. Resta saber seus esforços mais recentes de canalização de recursos vão fazer com que voltem à ofensiva contra o governo e a AMISOM. Em suma, se vão se demorar de modo arriscado na etapa da retração defensiva, ou se vão partir para a etapa da diversificação de frentes, espelhada em um esforço pela diversificação de fontes de renda.

Correio da Cidadania: Como a situação de calamidade que atinge cerca de 3 milhões de pessoas por meio da seca, da fome e de doenças como malária e cólera contribui com este estado permanente de caos social?

Daniel Cunha: Antes de tudo, vale lembrar que essas calamidades ambientais e sanitárias foram produzidas pelo próprio ser humano. Os somalis, que chegaram à região cerca de mil anos atrás, foram autossuficientes em alimentos durante a maior parte desse tempo. No cinturão fértil do Digil-Mirifleh, no sul da atual Somália, havia abundância, e a região era um celeiro agrícola também para os povos circunvizinhos. Do centro para o norte do território, o solo era mais pobre, mas era suficiente para o sustento geral das pessoas e de seu gado. As doenças não afetavam como afetam agora.

Também não havia casos sérios de caos social engendrado por razões políticas. As rixas entre as famílias e os clãs sempre existiram, mas havia mecanismos de controle, geridos pelos anciãos, para que a discórdia não saísse do controle. Como foi, portanto, que a fome e os efeitos colaterais chegaram ao país e adquiriram proporções incontroláveis? Uma das interpretações mais sólidas é a de que o pano de fundo para essa “descida ao inferno” foram os efeitos aceleradores das disputas da Guerra Fria. Os sistemas coloniais italiano e inglês não chegaram a produzir um “holocausto colonial” na região, embora essa constatação deva ser relativizada, pois a expansão da doença do sono por todo o Leste africano, segundo algumas pesquisas na área de medicina tropical, foi por culpa involuntária dos italianos.

Por outro lado, a produção agrícola na Somalilândia inglesa, e principalmente na italiana, chegou mesmo a crescer até a data da independência e da unificação, em 1960. Um dos problemas é que, apesar do aumento da produção agrícola, o atendimento da demanda nacional não seria sustentável no longo prazo. Naquela época, os dois territórios coloniais juntos não alcançavam os dois milhões de habitantes, e Mogadíscio tinha uma irrisória fração desse total, com apenas 75 mil moradores.

Acrescente-se que a grande maioria da população somali vivia no meio rural, e até então a fome não estava no horizonte. Mais de meio século depois, o país tem quase 15 milhões de habitantes, as zonas rurais estão às moscas e a capital inchou para mais de 2,5 milhões de habitantes. Ou seja, duas das causas imediatas e evidentes das calamidades foram a explosão demográfica e o êxodo rural acelerado. E o fator propulsor dessas causas imediatas foi exatamente a suspensão da ajuda estrangeira ao regime de Siyad Barre, principalmente pelos Estados Unidos e pela Itália, no final dos anos 80. Até então, para contrabalançarem o apoio financeiro e militar dos soviéticos ao arqui-inimigo de Siad, que era o regime “revolucionário” etíope de Hailé Mengitsu, aqueles governos haviam elevado o montante total da ajuda externa à Somália a nada menos que metade do produto interno bruto do país.

Em 1988, o crescimento da ajuda alimentar foi quatorze vezes mais elevado que o crescimento do consumo de alimentos, mas toda essa ajuda foi repentinamente cortada, o que gerou um efeito-cascata devastador para o conjunto da sociedade somali. Enquanto aqueles dólares serviram apenas para fomentar a corrupção e o enriquecimento dos líderes locais, que se tornaram armados até os dentes e passaram a tomar pela violência indiscriminada o lugar do que sobrou do regime de Siyad, o país se tornou totalmente dependente de comida importada. No interior, particularmente na região fértil do Digil-Mirifleh, os agricultores remanescentes rapidamente faliram, e de repente se viram no dilema entre morrerem de fome ou migrarem para as cidades maiores, que eram os locais onde havia alguma oferta daqueles alimentos importados e comercializados por agentes corruptos diretamente atrelados a algum dos líderes armados locais.

A própria região do Digil-Mirifleh se tornou um campo de batalha entre as forças leais a Siad e as milícias de Muhammed Farrah Aidid. Acrescente as secas e o avanço da desertificação, que atingiram grande parte do continente no período. A fragmentação política do país e o caos social são, portanto, um desdobramento direto de fatores externos e das derradeiras disputas geopolíticas do fim da Guerra Fria. Tais fatores externos, é claro, entraram em combinação explosiva com os fatores internos baseados em diversos outros problemas, como as rivalidades locais, e, desde então, a Somália raramente voltou a experimentar momentos de relativa paz. Terreno fértil para o afloramento do fundamentalismo.

Correio da Cidadania: Que outros problemas estruturais podem ser verificados na atualidade do país?

Daniel Cunha: Bom, já falamos da falência da autossuficiência alimentar no país, da explosão demográfica e do massivo êxodo rural. Podemos também falar de fatores estruturais em termos geopolíticos e geoeconômicos.

Durante o Choque do Petróleo de 1973, quase todos os países do continente africano entraram em colapso macroeconômico e em um consequente processo de desestabilização política, em razão de sua profunda dependência do petróleo e dos fertilizantes nitrogenados, derivados do petróleo, para seus programas agrícolas. Este foi o período em que a África mergulhou no que veio então a ser chamado de “Quarto Mundo”.

A Somália, assim como os outros países, procurou reagir a esse colapso como pôde, e aderiu à Liga Árabe precisamente em 1974, em uma manobra calculada do regime de Siyad para canalizar fundos dos países árabes exportadores de petróleo, principalmente da Arábia Saudita. O regime, até então vinha sendo apoiado pela União Soviética e por Cuba, em sentido não apenas militar, mas um pouco também financeiro.

A revolução etíope de 1974 reverteu esse quadro em favor do coronel Mengitsu, e Siad se viu obrigado a migrar da órbita pró-soviética para a órbita pró-saudita, e logo pró-estadunidense, como já havíamos adiantado. Sabemos que os sauditas têm fomentado, desde então, os movimentos sunitas ultraconservadores semelhantes ao wahabismo, como os salafistas. Esta também é uma das razões de fundo da virada fundamentalista na Somália, assim como em outros países norte-africanos e do Sahel. Defendo a relevância desse enfoque, que poderíamos chamar apropriadamente de “economia política da radicalização islâmica”, que envolve um processo dinâmico e com ressonâncias de média e longa duração.

Há ainda outro fator estrutural de ordem geopolítica e geoeconômica a ser mencionado. Todos os dias, passam em frente ao litoral da Somália e por entre o estreito de Bab-el-Mandeb, entre o Djibuti e o Iêmen, cerca de três milhões de barris de petróleo, carregados por milhares de cargueiros. Não por acaso, essa é a principal área geográfica do mundo em que aflora a chamada “radicalização da pirataria marítima”, que já mencionamos. Não há como negar que tem aumentado a cooperação entre os piratas e os grupos “terroristas” regionais. Mas por que os piratas, que antes se dedicavam às inofensivas atividades de pesca, decidiram partir para o ataque contra os petroleiros?

Entre 2008 e 2009, alguns artigos foram publicados na imprensa europeia, em jornais como o inglês The Independent e o alemão Der Spiegel, e sua denúncia era a de que os pescadores do litoral somali vinham sendo as principais vítimas de derramamento de lixo nuclear na região. Tudo atirado no oceano por misteriosos navios com bandeiras europeias. Desde então, os peixes escassearam, os pescadores começaram a ter crises de vômito e seus bebês começaram a nascer acefálicos.

Em 1963, quando a Organização da Unidade Africana foi criada, os governos da região já reclamavam dessa prática entre os países que já investiam em energia nuclear. O colapso do regime de Siyad Barre apenas acelerou a transformação do litoral da Somália em um enorme campo de despejo de lixo tóxico, com a impunidade garantida aos seus executores – ora, já que o Estado é “falido”, tudo é ali permitido, com alta probabilidade de impunidade. Apesar do impacto das denúncias, os piratas somalis ainda continuaram a ser tratados pela indústria cultural como os únicos vilões da história, principalmente após serem retratados pelo filme Captain Phillips, protagonizado por Tom Hanks. Como se vê tanto nesse filme como em Black Hawk Down, dirigido por Ridley Scott, Hollywood tem feito uma pintura muito distorcida do que se passa no Chifre da África.

Correio da Cidadania: Quais grupos ou facções são dominantes na Somália atualmente e como podemos avaliar a correlação entre essas forças políticas, especialmente após o atual presidente somali, Mohamed Abdullahi “Farmajo” convocar a população, em ato público, a alistar-se no exército para “libertar o país”?

Daniel Cunha: Boa pergunta. Em primeiro lugar, declarações públicas como essa do presidente somali costumam conter uma dose de teatralidade, daquilo que o sociólogo francês Georges Balandier chamou de “poder em cena”. Será um novo contingente de cadetes mal pagos e mal treinados que vai libertar o país? É importante também que se procure saber o que ocorre atrás das cortinas, nos bastidores.

Para termos uma noção mínima das forças em jogo no país e do peso político relativo de cada uma ao longo do tempo, temos que recorrer aos investigadores que conhecem o terreno e já se sentaram ao tapete com representantes dessas forças políticas, sejam elas institucionalizadas ou não, sem se lançarem de antemão a juízos de valor. Tem que ser necessariamente um pouco etnólogo, um pouco sociólogo e um pouco historiador, para responder a essa sua questão. Há poucos dias, um dos principais especialistas em Al-Shabaab, aliás, um excelente e corajoso investigador, o cientista político norueguês Stig Jarle Hansen, publicou com um colega um artigo na revista Foreign Affairs, em que se perguntam se o aparentemente enfraquecido Al-Shabaab teria forças para emergir novamente, após os atentados de Mogadíscio.

O que parece mais claro agora é que o Al-Shabaab retomou a iniciativa em Mogadíscio porque o Exército nacional havia recuado de algumas posições estratégicas no sul do país, alegadamente por falta de verbas e de capacitação adequada para exercícios de patrulhamento em um dos principais redutos remanescentes dos insurgentes. O Al-Shabaab aproveitou o recuo contingencial e partiu para a ofensiva em duas ocasiões mais recentes.

A primeira foi aquela que causou mais de trezentas vítimas civis, e o segundo, pouco noticiado, causou a morte de vários oficiais militares e eminentes figuras políticas. Outro fator de recalibragem do Al-Shabaab são os recentes desentendimentos entre o governo central e os governos regionais, referentes à espinhosa questão da parcela de poder que cabe a cada um. O governo autônomo da Somalilândia, por exemplo, ainda deseja que as rendas do petróleo que venha a ser explorado em seu litoral se destinem apenas para essa região, ao passo que o governo central pretende uma maior descentralização dessa riqueza.

Os “golden days” do Governo Federal de Transição, mais salientes entre 2009 e 2010, já se foram justamente por causa desses desentendimentos localizados entre as autoridades locais e centrais, e o Al-Shabaab tem mostrado uma enorme resiliência e capacidade de adaptação às vicissitudes e às mordidas do Exército somali e das tropas da AMISOM, da Etiópia e do Quênia. Nesse meio tempo, houve uma purga interna na estrutura do Al-Shabaab, e muitos de seus antigos fundadores e líderes foram eliminados a mando de líderes de outras facções. Isso, ao invés de enfraquecer o grupo como um todo, o tornou mais coeso e unificado. Ora, a retração tática também faz parte da guerra de guerrilhas, e nesse ínterim surgiram novas lideranças, enquanto a filosofia religiosa do grupo foi mantida.

Muitos mercadores de Mogadíscio e arredores ainda solicitam proteção ao grupo e pagam por isso, enquanto outros habitantes recorrem às suas cortes de sharia para resolverem suas lides. Por quê? Porque as forças do governo federal também costumam agir de forma abusiva, muitas vezes com recurso aos abusos de poder sob a retaguarda da impunidade, do mesmo modo como ocorre no norte da Nigéria, na guerra suja entre o governo federal e o Boko Haram. Se o governo realmente quiser “libertar o país”, teria de começar dando o exemplo, negociando as demandas das administrações locais de modo efetivo, evitando “jogos de soma zero” e conquistando a legitimidade popular. Infelizmente, não é o que acontece.

Correio da Cidadania: O que pensa a sociedade somali, de modo geral, em relação à guerra civil e aos problemas descritos nas questões anteriores?

Daniel Cunha: Essa é a questão-chave. Eu havia adiantado que muitos indivíduos da sociedade somali recorrem à estrutura institucional do Al-Shabaab para solicitarem segurança pessoal e resolverem suas controvérsias particulares. Para tal grupo, que não deixa de ser nacionalista à sua maneira, a conquista da legitimidade popular é uma questão de vida ou morte. Porém, atentados terroristas contra civis são, por definição, impopulares e geram uma condenação imediata e generalizada. Consciente disso, o Al-Shabaab não reivindicou a autoria do atentado de 14 de outubro, dirigido contra civis, ao passo que assumiu a autoria do outro atentado, de 28 de outubro, dirigido especificamente contra alvos políticos e militares.

Mas todos no país sabem que o responsável foi o Al-Shabaab em ambos os ataques. Ainda está vivo na memória coletiva o atentado de dezembro de 2009, em que um homem-bomba causou a morte de dezenas de estudantes de medicina, durante uma cerimônia de formatura. A princípio, o Al-Shabaab reivindicou os créditos pelo ataque, mas a condenação pública foi tão furiosa que o grupo logo retirou a reivindicação.

A população já conhece esses estratagemas, e novamente deve se voltar maciçamente contra o grupo. Agora, há uma nova oportunidade para o governo federal e as tropas da AMISOM partirem para um contra-ataque. O mandato da AMISOM deve expirar em 2018, mas pode ser que as novas circunstâncias geradas pelos ataques deste ano forcem a renovação de sua presença. Dado o impasse causado principalmente pela fragilidade do governo federal, o mais provável é que continuemos a ouvir falar do Al-Shabbab nos próximos anos.

Pode ser até mesmo que o movimento se expanda em direção ao norte do Quênia, onde há uma numerosa população muçulmana. Uma crise econômica mais séria ou uma onda maciça de desemprego entre os mais jovens criaria um terreno muito propício para a expansão da capilaridade do grupo. Temos de olhar para a sociedade somali em sua interação dinâmica com as outras sociedades de toda a região, tanto as da África como as da Península Arábica.

Não falamos do Iêmen até aqui, mas o povo iemenita, que hoje enfrenta uma guerra arrasadora fomentada por interesses geopolíticos regionais, é um povo irmão do povo somali há muitos séculos. Esse é um dilema que o Al-Shabaab deve estar enfrentando no momento: continuar a ser nacionalista ou ser algo mais amplo, eis a questão.

Correio da Cidadania: Como um pesquisador que também se atém a questões culturais, como você avalia a Somália pré-Siad Barré? O que foi rompido dentro da cultura do país após o assassinato do presidente Abdi Rachid Shermarke, o fim da República Democrática e a ascensão de Barre?

Daniel Cunha: O período pré-Siad Barre foi um período de experimentação democrática, em que o regime aparentemente estava dando certo. Mais do que Shermarke, outras duas figuras políticas desse período, o ex-presidente Aden Osman e o diplomata Adbirazak Hussen, eram tidos como os grandes patrocinadores da democracia no país.

Osman, por exemplo, cedeu o cargo para seu rival, Shermarke, sem contestar o resultado das eleições de 1967. Mas o que se viu no período, não só no continente africano, mas em todo o mundo, foi uma espiral de golpes de Estado, a maioria deles com derramamento de sangue. Em 1969, ano do assassinato de Shermarke, a cientista política sul-africana Ruth First, ela mesma depois uma vítima fatal do regime do apartheid, escreveu um notável livro em que fez o balanço dos golpes e das tentativas de golpe em todo o continente africano ao longo daquela década. Mal esperava ela que naquele mesmo ano viriam à cena Kadafi, na Líbia, e Barre, na Somália.

Ambos foram muito influenciados por Nasser, do Egito, que por sua vez fora influenciado por Atatürk, da Turquia, que por sua vez fora influenciado pelos japoneses, que por sua vez foram influenciados pela “via prussiana”. Ou seja, o espectro dos governos fortes, centralistas e autoritários já está há algum tempo disponível na paisagem, a ser reivindicado a qualquer momento, quando um regime de aparência democrática pareça não satisfatório para determinados setores da sociedade, particularmente os militares.

No curto prazo, eles empreendem realizações notáveis do ponto de vista econômico e social, mas, no longo prazo, ao custo de prisões superlotadas, de um número crescente de assassinatos políticos, de penetração da corrupção no tecido social, de ressentimento entre as classes e de um coro de hipócritas que fazem vista grossa aos abusos de poder e aos seus efeitos catastróficos. O que deve ser considerado, sem quaisquer juízos morais ou valorativos, é que os regimes autoritários tendem necessariamente à autofagia, à sua autodestruição. Mas a memória do autoritarismo ainda inspira muita gente que não consegue enxergar as terríveis contradições desse modelo político e dos riscos inerentes a seus desdobramentos. Dado o “espírito” de nossa época, entre os somalis, especialmente os da diáspora, certamente a lembrança de Siad Barre é muito mais cultivada que a de Shermarke e a de Aden Osman.

Correio da Cidadania: Como a interferência das potências ocidentais (e mais recentemente da China, na África como um todo) dialoga com estas questões? Como vê um possível apoio dos EUA ao governo somali em sua declaração guerra ao Al-Shabaab prometida em 20 de outubro?

Daniel Cunha: O apoio dos Estados Unidos ao Governo Federal de Transição existe desde que ele foi reconhecido como o governo legítimo do país. Aliás, todos os países envolvidos na política somali o apoiam resolutamente. Não há, por exemplo, praticamente nenhum país que esteja ao lado dos secessionistas da Somalilândia, que declararam formalmente sua independência em 1991, embora possuam representantes que mantêm representações informais na Etiópia, no Djibuti e na Turquia. Acredito que apenas a cidade de Cardiff, capital do País de Gales, tenha alguma simpatia aberta pela independência da Somalilândia, mas essa aliança anedótica não é relevante.

Em relação ao continente africano, a China veio para ficar, e a Somália também é um alvo em potencial para os investimentos chineses. Desde 2007, uma das três grandes petrolíferas semiestatais chinesas, a CNOOC, tem liderado os esforços de prospecção de petróleo no país, mas os investimentos chineses em infraestrutura no país ainda são tímidos, se comparados com os canteiros de obras empreendidos atualmente na Etiópia. Em todo caso, a  Somália ainda é promissora para os chineses, principalmente após a abertura de uma base naval no Djibuti, esta, aliás, a primeira base naval chinesa fora da Ásia do Leste, inaugurada dois meses atrás.

Esse seria claramente o interesse do Governo Federal de Transição, que terá à frente um relativo poder de barganha, pois os turcos anteciparam sua presença e foram muito bem recebidos. A Turquia está comemorando uma década de investimento na reconstrução do país, e agora sua influência sobre o Chifre da África não é apenas econômica, mas também política e militar.

Também há dois meses, em agosto de 2017, o regime de Recep Erdoğan começou a construção de sua segunda base militar no exterior (a primeira no Catar), precisamente na Somália. E os Estados Unidos? Em termos de “hard power”, até agora, ainda há uma grande resistência das potências regionais africanas à proposta estadunidense de instalação da US-AFRICOM diretamente no continente africano. Em 1992 e 1993, durante a vigência da Unitaf e da UNOSOM II, ambas lideradas de facto pelos Estados Unidos, a humilhação sofrida por suas tropas causou um verdadeiro trauma na opinião pública do país e no próprio governo.

Depois do fiasco, o governo Clinton promulgou uma diretiva presidencial, em que foi rejeitado qualquer novo envolvimento militar norte-americano em operações de imposição da paz. A chamada Guerra ao Terror de Bush, é claro, alterou o quadro, mas não tanto no contexto da África. Os Estados Unidos têm atuado no continente em colaboração estreita com a França, principalmente na região do Sahel, mas também na Líbia, pouco antes e depois da queda do regime de Muammar al-Kadafi. Após a eleição de Trump, há uma nova guinada geoestratégica em direção ao continente, que se verifica, por exemplo, nos choques recentes ocorridos no Níger, e nos ensaios de distensão com o regime de Omar al-Bashir, no Sudão.

Os interesses dos EUA na Somália, por enquanto, ainda seguem uma lógica predominantemente de ajuda externa e de fomento financeiro indireto ao Governo Federal de Transição, mais ou menos na linha do African Growth and Opportunity Act, que tem sido o principal meio de inserção norte-americana, de “soft power”, no continente africano, desde 2000. Ainda não é possível para a superpotência ser onipresente em todos os cantos do mundo. Mas, como os estadunidenses não podem se satisfazer apenas com “soft power”, nessa última reunião de dias atrás entre Trump e Xi Jinping, na China, esteve em pauta a questão das bases do Djibuti, uma das áreas mais militarizadas do mundo. A intenção é que a China e os Estados Unidos venham em breve a fazer exercícios militares conjuntos no Golfo de Áden. A justificativa, é claro, é a pirataria marítima. O que não se diz muito é que o petróleo da Somalilândia, a ser explorado futuramente, ainda é uma tentação de médio prazo para todo mundo.

Correio da Cidadania: Para finalizar, vê alguma perspectiva para o país de encerrar o conflito e construir algum tipo de normalidade política e institucional no futuro?

Daniel Cunha: Para não ser muito pessimista, acredito que a Somália, assim como qualquer outro país do mundo, possa se arriscar a experimentar alguma forma de “anormalidade democrática”, ainda mais em vista dessa tendência atual em direção a regimes populistas autoritários.

É necessária uma nova forma de democracia, que rechace os interesses geoestratégicos estrangeiros e procure superar as próprias contradições da sociedade, que tenha reais condições de sobreviver a ameaças internas e externas e, quem sabe, de superá-las.

Vamos ver o que vai acontecer no norte da Síria (onde as ameaças internas e externas também chegaram a proporções dramáticas), e se vão aparecer outros experimentos também africanos que possam ir além das malogradas experiências de “self-reliance” antes testadas na Tanzânia e no Burkina Faso. Não se fechou aos africanos a possibilidade de retomarem a iniciativa, uma iniciativa que aponte para uma interação dinâmica e crítica com os experimentos de seu próprio passado e de outros lugares do mundo.

No caso da Somália, a consciência democrática já existe há muito tempo, e vai muito além do que entendemos por “institucionalidade” ou o que você chama de “normalidade democrática”, isto é, da malograda experiência democrática formal de Osman, Hussen e Shermarke. Essa percepção democrática, no entanto, depende também da predisposição dos vizinhos em se democratizarem e fomentarem a cultura do convívio, da boa vizinhança.

Tenho lido em alguns autores mais críticos dos anos 60 que a única solução para os conflitos latentes ou abertos entre os países do Chifre da África teria sido a formação de uma federação em larga escala que pudesse impedir o choque devastador de nacionalismos em conflito. Dos anos 70 para cá, tais choques vieram a se confirmar, com consequências de fato devastadoras, e o espírito de fragmentação logo se sobrepôs ao de conciliação e de comunhão. Muitas alternativas para a superação dessa tendência à “balcanização”, como se dizia, foram postas à mesa desde a independência da Somália.

Prevendo a inevitabilidade dos embates, principalmente com os cristãos da Etiópia, até mesmo os ingleses chegaram a cogitar o potencial pacificador de uma “Grande Somália”, em que todas as cinco partes da área habitada pelo povo somali se tornassem unificadas e servissem de contrapeso às aspirações etíopes de hegemonia regional. Em 1974, quando Fidel Castro se viu no impasse entre apoiar Siad ou Mengitsu, ele também apoiou aquela proposta de uma confederação de Estados, e até mesmo sugeriu a adesão do Iêmen do Sul, então sob um regime socialista.

Depois, cogitou-se a atração do Sudão para esse malabarismo hipotético, pois a população sudanesa era tão populosa quanto a etíope e suas economias eram mais parecidas em termos de infraestrutura instalada. O problema é quanto à exequibilidade de um tipo de projeto assim tão amplo, audacioso, arriscado e cheio de dissensões e de contradições. Mesmo que se empreendesse uma tentativa dessa magnitude, o primeiro risco a que se incorreria seria o da amplificação das suspeitas mútuas entre as elites nacionais e locais. Por outro lado, sem importar muito a polêmica da dimensão exata ou das definições fronteiriças, uma potencial confederação de povos da região poderia tomar consistência não por iniciativa das elites, como já propuseram, entre outros, o escritor somali Said Samatar e o historiador etíope Bahru Zewde, mas por iniciativa local, com a formação e a salvaguarda daquilo que Amartya Sen chamou de “social safety nets”, ou seja, redes locais de segurança social.

Certamente essa ideia interessaria aos pastores do Ogaden e aos pescadores somalis que desgraçadamente se viram obrigados a apelar para a pirataria. Mais que a formação, o retorno e a inspiração baseada em algumas experiências do passado local. As notáveis coletividades musicais que já tiveram um peso na vida cultural da Somália poderiam servir de modelo. Um deles, chamado Waaberi, é um grupo coral que vinha reunindo algumas dezenas de pessoas durante algumas décadas, por coincidência, também na zona sul de Mogadíscio, no bairro de Waaberi. No encarte de uma coleção de discos recentemente lançada, que eu lhe apresentei, chamada “Sweet as broken dates”, está escrito que o objetivo da coleção é encorajar os somalis a retomarem essa brilhante tradição musical, que caiu em relativo ostracismo nesses últimos e turbulentos anos. Há outras formas de coletividade, e tudo é uma questão de complementação, de acréscimo e de reciprocidade. Uma democracia efetiva pode ser retomada a partir daí: de sua própria história e tradição cultural.


Escute:

Sweet as broken dates – música somali dos anos 60/70

Xadrez Verbal #116 Mogadíscio – podcast da parceira Central3 em edição sobre a Somália

Leia também:

Uma breve história política da Somália


Raphael Sanz é jornalista e editor-adjunto do Correio da Cidadania.

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