Correio da Cidadania

Trump: os frutos amargos da globalização

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A eleição de Donald Trump marca uma grande virada na situação mundial, condensa fortes contradições que se acumulam desde a crise de 2008, bem como repercute politicamente, com impacto sobre o tecido social de décadas de orientação neoliberal no capitalismo. 

 

No primeiro final de semana de dezembro, as eleições na Itália e na Áustria confirmaram que o eleitorado europeu não está com um humor tão diferente do estadunidense, previamente polarizado pelo Tea Party e pelo movimento encabeçado por Bernie Sanders. Embora na Áustria Alexander Van der Bellen, um independente verde, tenha ganho as eleições presidenciais, Norbert Hofer do neofascista Partido da Liberdade, obteve 46%, no remake de uma eleição em que, em maio, ele obteve 49,65%; metade do país continua polarizado por propostas xenófobas e racistas. 

 

No referendo sobre a reforma do sistema eleitoral na Itália, o primeiro-ministro democrata Matteo Renzi foi derrotado pela oposição tanto da esquerda, com destaque para o progressista Movimento 5 Estrelas de Beppe Grilo, de um lado, quanto pela Liga Norte, de outro, uma formação de extrema-direita cujo líder, Matteo Salvini, saudou o resultado eleitoral da seguinte forma:  “Viva Trump, viva Putin, viva la Le Pen e viva la Lega!”. Abriu-se um período de forte instabilidade no país.

 

Analogias preocupantes

 

Quando analisamos a eleição de Trump, a analogia mais próxima é a eleição, em 1980, de Reagan, quando Thatcher já era primeira-ministra da Inglaterra – conjunção que alavancou a globalização neoliberal. Agora, os ingleses aprovaram, no plebiscito de junho de 2016, o Brexit, a saída do país da União Europeia, o que levou à substituição de David Cameron por Theresa May como primeira-ministra do Reino Unido. Se Reagan e Thatcher representaram a vitória da liberalização e das políticas econômicas antikeynesianas e antissociais nos dois polos imperiais, Trump agora representa a vitória de uma reação antiglobalização xenófoba e racista, em sintonia com o Brexit, que leva para Washington perigos desconhecidos.

 

Pode-se afirmar que o Brexit tinha um marco ideológico mais ambíguo, porém, o mesmo não acontece com a chegada de Trump à presidência – imprecisamente chamado pela mídia de populista de direita. Ele foi eleito com base em um discurso de ódio, misógino e xenófobo, alimentando todo tipo de preconceito e impulsionando o supremacismo branco nos EUA, com grupos oprimidos sendo responsabilizados pelo empobrecimento de camadas da classe trabalhadora que colhem os frutos amargos da globalização neoliberal. Ao mesmo tempo, setores até agora minoritários no seio da classe dominante catalisam esses sentimentos de revolta para defenderem posições frágeis frente aos setores globalizados e financeirizados do capital. Aqui, as analogias mais próximas são com o cenário trágico dos anos 1930, quando a crise social pós-1929 foi capitalizada pelo nacionalismo conservador de direita, em especial pelas correntes fascistas e, na Alemanha, pelo nazismo.

 

Essas mudanças aceleram o quadro que Pierre Rousset definiu como de “caos geopolítico”. Ele afirma que, frente à crise, a novos “(proto)imperialismos” e à emancipação das burguesias imperialistas da política (que potencializam a crise ambiental e guerras permanentes), temos um ambiente favorável a fenômenos regressivos, inclusive à criação de novos movimentos fascistas. Estamos vendo o fortalecimento de movimentos desse tipo por toda parte: o Tea Party nos Estados Unidos, o Aurora Dourada na Grécia, a Frente Nacional na França, o Ukip na Inglaterra, o Partido da Liberdade na Holanda, o Alternativa para a Alemanha etc. A eles se somam movimentos totalitários com referências religiosas, como o Estado Islâmico e outros em várias fés e regiões do mundo.

 

Rousset completa: “pode-se discutir a definição do conceito de fascismo. Esses movimentos não estão organicamente ligados ao ‘grande capital', como na Alemanha nazista, mas eles exalam um terror de tipo fascista, inclusive na vida cotidiana. Onde existem, eles ocupam o 'nicho político' do fascismo – e colocam novos problemas políticos (para nossa geração) de resistência antifascista em larga escala”. Essa é, sem dúvida, uma preocupação de vários setores da população estadunidense depois da eleição de Trump.

 

Crise da globalização neoliberal

 

Os ventos globalizantes já vinham refluindo desde a crise de 2008. O comércio internacional era equivalente a 25% da economia nos anos 1960, 32% nos 1970, 38% nos 1980, 43% nos 1990, 55% nos 2000 e 60% na primeira década de 2010. Mas desde 2012 o comércio internacional tem crescido “apenas” 3% ao ano, menos da metade da taxa dos trinta anos anteriores. E, em 2016, ele deve crescer menos que a economia mundial (1,7% ante 2,2%), o que significa uma tendência desglobalizante no bojo de um quadro geral de estagnação estrutural e duradoura da economia mundial, que segue tão financeirizada, especulativa e volátil como antes da falência do Lehmann Brothers em setembro de 2008. Para os setores que apostaram todas as suas fichas em processos e instituições liberalizantes (avanços dos tratados de livre-comércio, OMC, euro e União Europeia...) o horizonte se torna problemático.

 

A contrapartida da globalização econômica e da financeirização foi o crescimento inédito das desigualdades e diferenças no acesso a direitos e riquezas. O relatório da Oxfam “Uma economia para o 1%” informa que, desde 2015, o 1% mais rico da população mundial tem mais riquezas do que os 99% restantes. “Em 2015, apenas 62 indivíduos detinham a mesma riqueza que 3,6 bilhões de pessoas – a metade mais afetada pela pobreza da humanidade. Esse número representa uma queda em relação aos 388 indivíduos que se enquadravam nessa categoria há bem pouco tempo, em 2010. A riqueza das 62 pessoas mais ricas do mundo aumentou em 44% nos cinco anos decorridos desde 2010 – o que representa um aumento de mais de meio trilhão de dólares (US$ 542 bilhões) nessa riqueza, que saltou para US$ 1,76 trilhão. Ao mesmo tempo, a riqueza da metade mais pobre caiu em pouco mais de um trilhão de dólares no mesmo período – uma queda de 41%”. A globalização neoliberal tornou-se, após a crise de 2008, um fenômeno inequívoco e insuportavelmente regressivo, acelerando a concentração de renda nas mãos da elite financeira global.

 

A prosperidade se concentrou, nas últimas décadas, nas sedes do capital financeirizado, as grandes metrópoles globais, com o campo e as pequenas cidades – os territórios – sendo deixadas para trás. Desde 2007, a maioria da população do mundo vive nas cidades; 40 metrópoles com mais de dez milhões de habitantes concentram grande parte do poder econômico e político no mundo. O abismo de riquezas é acompanhado do abismo de valores e perspectivas – como revelaram o Brexit inglês e a eleição norte-americana. E, na periferia do capitalismo, enormes metrópoles conformam o “planeta favela” (Davis), com legiões de precarizados expulsos do mundo rural, um terreno fértil para demagogos conservadores.

 

Mas a globalização avançou também no terreno social e cultural. Em 1970, 5% da população dos EUA tinham nascido fora do país; em 2015, 13% da população tinham nascido em outros países. Cifras similares podem ser encontradas na Europa, oscilando entre um topo de 15% na Áustria e 14% na Espanha e Suécia a 9% na Dinamarca e 8% na Itália. Parte desse deslocamento é consequência do fluxo de refugiados devido a guerras e desastres ambientais, mas a maioria são migrações econômicas em busca de melhores condições de vida de gente sem perspectiva do mundo globalizado. Uma pequena minoria se desloca como funcionários de corporações, mas a imensa maioria o faz em condições precaríssimas, arriscando suas vidas como clandestinos. Ao mesmo tempo, as novas tecnologias da informação e da comunicação elevaram para patamares inéditos as interconexões e trocas culturais, impulsionando um multiculturalismo cosmopolita modulado em parte pela indústria cultural corporativa, em parte pela vivência mais plural das populações, em parte pelos fluxos de informações e saberes pelas redes sociais. Essa convivência positiva com a diversidade étnica, cultural e sexual, bem como com a emancipação das mulheres gera fortes resistências em setores reacionários, fundamentalistas ou que perderam sua primazia e seus privilégios.

 

Temos, em consequência, não apenas uma rebelião contra o desemprego e a falta de perspectivas econômicas de setores pauperizados, mas também uma revolta de populações brancas racistas contra negros, latinos, asiáticos ou simplesmente estrangeiros. Há uma revolta masculina e/ou religiosa contra os avanços na libertação das mulheres e dos homossexuais. Há uma revolta contra os elementos progressistas e subversivos que o convívio pacífico entre diferentes carrega – de forma insuportável – para conservadores e reacionários de todos os matizes. Como destaca Paul Mason, trata-se de uma revolta contra os impactos do neoliberalismo – tanto negativos como positivos.

 

Na ausência do horizonte de progresso, oferecido pelo nacionalismo desenvolvimentista, pela socialdemocracia e pelo comunismo, os derrotados pela globalização e os conservadores estão, gradativamente, forjando novas alianças, alicerçadas no fundamentalismo religioso e no nacionalismo xenófobo. O fenômeno já era visível, antes, no mundo árabe, onde o salafismo se radicalizava e catalisava as esperanças dos órfãos do desenvolvimentismo pan-árabe. Ele crescia, porém, em todas as religiões e em muita partes, como uma reação ao avanço das desigualdades, do secularismo e dos valores progressistas da vida urbana vinculados ao multiculturalismo e ao cosmopolitismo de setores afluentes das grandes metrópoles.

 

É verdade que o projeto Trump tem raízes estadunidenses, profundamente ancoradas no nativismo, no nacionalismo econômico e no neoisolacionismo de uma certa tradição republicana, aliada do racismo sulista e do antissemitismo do meio-oeste – corrente que Pat Buchanan procurou manter viva e que Mike Davis chamou de “morto-vivo” (lembrando inclusive que “América Primeiro” foi o lema do movimento isolacionista de 1939-41, que incluía os nazistas norte-americanos). A diferença é que, atualmente, com a ausência de uma oposição de esquerda ou progressista consequente ao neoliberalismo (partidos reformistas de todos os matizes terminaram por aderir a ele...), projetos antiliberais conservadores crescem sem barreiras. Eles se contrapõem não só à livre circulação de mercadorias, mas também de pessoas pelo mundo, embora nunca se proponham a controlar os fluxos de capitais. Abarcando de Duterte nas Filipinas e Modi na Índia, à Marine Le Pen na França e Nigel Farage na Inglaterra, eles ressuscitam a xenofobia e o nacionalismo de extrema-direita, que se pensava enterrados sob os escombros da Segunda Guerra Mundial.

 

A classe de Davos: financeirização, mídia e crise da democracia liberal

 

A globalização neoliberal representou uma concentração inédita de riqueza e de poderes no que Naomi Klein chama “a classe de Davos”, isto é, os segmentos financeirizados e mundializados da classe capitalista, hegemônicos em praticamente todos os países do mundo e fortemente entrelaçados. Para Pierre Rousset “a relação com o território muda; e assim o Estado. Os governos já não são, por exemplo, copilotos dos maiores projetos industriais (como foi o desenvolvimento das usinas nucleares por uma década na França) ou das infraestruturas sociais (educação, saúde e assim por diante). Eles devem contribuir para estabelecer as regras de universalização da mobilidade do capital, abertura de todos os setores aos apetites do capital (educação, saúde, previdência e assim por diante), destruir o direito social e manter a população passiva. Um chefe de Estado é um simples mordomo”. 

 

Enquanto os países empobrecem, as corporações não param de crescer. Em 2001, das 100 maiores economias do mundo, 51 eram corporações e 49 países (considerando as vendas das empresas e o PIB dos países). Em 2014, os dados mostravam 63 corporações e 37 governos. E em 2015, segundo a Global Justice Now, este número subiu para 69 corporações e 31 países.

 

Ao contrário dos países, as fronteiras entre as corporações estão longe de serem evidentes. Um estudo do Instituto Federal de Tecnologia de Zurich das 43.060 corporações transnacionais mostrou, em 2011, um núcleo de 147 superempresas que controlavam 40% da riqueza total da rede. As vinte maiores incluíam – então – o Barclays Bank, JP Morgan Chase e Goldman Sachs, cuja sanha especulativa foi responsável pela crise de 2008. Quatro grupos também controlam as empresas de rating (McGraw-Hill, dona da Standard & Poor’s, Northwestern Mutual, proprietária da Russell Investments, CME Group dona de 90% of Dow Jones Indexes, e o Barclay’s, que controla o Lehmann Aggregate Bond Index). Juntas, estas empresas tomam as decisões que ritmam o fluxo de capitais no cassino global e propagam as crises.

 

Ao mesmo tempo, sete corporações de mídia controlam boa parte da produção cultural e da comunicação no mundo, operando em escala planetária: GE, News Corporation, Disney, Viacom, Time Warnes e CBS, todas norte-americanas, as quais se soma a Bertellsman alemã. Elas operam em estreita associação com as quatro gigantes de tecnologia digital: Microsoft, Apple, Google e Facebook. Abaixo delas, um grupo de vinte conglomerados regionais e nacionais (como a Televisa na América Latina e a Globo e a Abril no Brasil) desdobram a visão de mundo e os valores neoliberais para as culturas locais.

 

A fusão do capital financeiro globalizado com os grupos formadores de opinião – a classe de Davos – esvaziou a democracia liberal de qualquer sentido forte de escolha, retirando-lhe legitimidade aos olhos de boa parte do povo. Ela transformou as eleições em simples mudança dos gestores das populações e das condições de reprodução do sistema; os grupos políticos que chegam aos governos estão aderidos ao projeto globalitário ou tem que negociar isso com seus agentes como condição para ascender ao núcleo do Estado (a “Carta aos Brasileiros”, apresentada por Lula em 2002, é emblemática dessa prática). Ela inclusive constrange os processos eleitorais desde fora dos países, como mostrou o recente caso grego. O “déficit democrático” da União Europeia é tema de debate há já uma década, a destacar a erosão da democracia liberal e afastar as populações de uma instituição que não aceita submeter a livre circulação de capitais e mercadorias a nenhum escrutínio democrático. E os legislativos e judiciários também são sequestrados pelo poder do dinheiro, como vemos exemplarmente nos casos brasileiro e norte-americano (onde a Suprema Corte aprovou, em 2010, o financiamento empresarial de campanha virtualmente ilimitado).

 

A transformação das eleições em alternância de “mordomos”, alimentada pela promiscuidade entre políticos e empresários, parecia afastar qualquer processo de mudança radical que constrangesse o capital financeiro globalizado. Como afirmou em 2011 Dani Rodrik, democracia, soberania nacional e hiperglobalização são fenômenos incompatíveis entre si. E se a esquerda moderada aceitou as regras perversas desse jogo, a direita se preparou para subvertê-las. O Brexit e Trump podem ser só os primeiros momentos de uma bola de neve que arraste consigo não apenas a globalização neoliberal, mas também o multiculturalismo e a extensão de direitos. A democracia liberal é limitada, mas ela pode ser superada pela esquerda, ampliando direitos, ou pela direita, negando-os.

 

A crise do cuidado e da reprodução social

 

A globalização ampliou horizontalmente o mercado mundial com a incorporação da China e do antigo “bloco soviético, bem como com a relocalização da atividade produtiva antes concentrada nos países centrais. Ao mesmo tempo, o mercado cresceu verticalmente, criando necessidades artificiais de todo o tipo, além de avançar sobre todo tipo de territórios e bens comuns. Com isso, o mundo daqueles que vivem do trabalho tornou-se mais proletarizado, numeroso e urbanizado do que nunca, tanto em termos relativos como absolutos. 

 

Mas tivemos não o fortalecimento do peso social dos trabalhadores e, sim, seu enfraquecimento: as novas tecnologias da comunicação e da informação permitem descentralizar os processos de trabalho e manter o comando da produção centralizado nas grandes corporações. Isso é uma reversão do processo histórico de concentração de trabalhadores em grandes unidades fabris, pela primeira vez descrito por Marx em 1848 e reforçado pelo fordismo. As novas tecnologias permitem agora que uma mesma cadeia produtiva globalizada incorpore o trabalho escravo e o trabalho em equipe pós-fordista altamente qualificado, o trabalho doméstico e a linha de montagem fordista, e dirigir os ganhos para uma corporação global sediada em qualquer parte do mundo e seus acionistas, territorialmente dispersos mas politicamente coesos.

 

A conectividade permanente recém-adquirida pela humanidade é uma bênção e uma maldição, um elemento de integração, exclusão e fragmentação. Dos sete bilhões de pessoas no mundo, 2,1 bilhões usam telefones celulares (embora o número de aparelhos vendidos tenha passado dos sete bilhões) e 1,8 bilhão de pessoas estão no Facebook. O mundo digital abarca menos de um terço da humanidade, excluindo o restante, e tendo efeitos muito contraditórios nos incluídos – por exemplo, superexploração ou deslocamento barato, se você é motorista ou usuário do Uber, conforto ou marginalização, se você é um turista que se utiliza do Airbnb ou um clandestino que tenta cruzar uma fronteira vigiada por câmeras. 

 

Nesse grande mercado, a fragmentação e o aumento da heterogeneidade estrutural do mundo do trabalho têm sido descritos como a transformação do proletariado fordista em um precariado, cuja consciência e organização de classe recua por toda parte. As antigas formas de pertencimento e construção de identidades de classe são, na ausência de grandes experiências de lutas, subvertidas pelo trabalho de sapa cotidiano da sociabilidade mercantil e do consumismo, das mídias corporativas e das redes sociais. O senso comum que emerge dessa experiência é o das pessoas transformadas em consumidores atomizados em um mercado infinito e sempre mutável, que busca dissolver todos os vínculos.

 

Mas os seres humanos demandam vínculos significativos; eles investem energia libidinal em identidades sociais e laços associativos. A reprodução social não se dá apenas como relações de interesses, exigindo apoio mútuo e cuidado, que pode ser suprido pela comunidade, pela família ou pelo Estado – com um papel central sendo sempre atribuído principalmente às mulheres. O neoliberalismo, buscando mercantilizar todas as relações, cria um quadro de terra arrasada, que joga bilhões de pessoas na atomização e no desamparo – o mesmo cenário que Hannah Arendt descreveu como aquele que gerou o fascismo na conclusão do seu “Origens do totalitarismo”. Todos aqueles que não podem comprar no mercado habitação, transporte, educação, saúde, previdência ou cultura estão condenados a vegetar na marginalidade e não há redes sociais, “realities shows” e realidades virtuais que supram suas carências.

 

Se o diagnóstico de Nancy Fraser estiver correto – de que vivemos não só uma crise econômica duradoura da dita economia real e das finanças, mas também nos aproximamos de um colapso da reprodução social análogo ao que se coloca na relação da humanidade com a natureza –, o quadro pode se tornar tão explosivo como aquele enfrentado nos anos 1930. O horizonte global de uma estagnação decenal exigirá uma mudança profunda da organização social da humanidade, em um cenário em que o neoliberalismo destruiu as alternativas antes postas.

 

Nas lutas adiante, tudo indica que as mulheres, os setores oprimidos e as comunidades serão chamados a jogar um papel tão decisivo quanto os trabalhadores. As classes são heterogêneas e perpassadas pelas opressões de gênero e raça/etnia. A questão da xenofobia, mais evidente na Europa e EUA, é, em essência, uma questão de racismo – cujo combate vem se tornando central na vida política recente dos Estados Unidos, em especial desde a formação do Black Lives Matter, e dos países europeus, em função do fluxo de refugiados para a região, consequência de intervenções imperialistas no Oriente Médio e Magreb (norte da África). 

 

O ressurgimento das lutas feministas e em defesa dos direitos das mulheres à sobrevivência e mesmo à existência é marcante. Da revolução na Tunísia aos movimentos contra o estupro na Índia, passando pelo Ni Una Menos na Argentina e a Primavera Feminista no Brasil, as mulheres assumem um peso central na luta de classes. Os setores mais afetados pela crise da produção e da reprodução são as mulheres, negras e negros, indígenas e outros povos/etnias não brancos.

 

Por uma desglobalização da economia mundial

 

A etapa histórica em que entramos exige um posicionamento inequívoco perante a globalização em curso. 

 

A globalização neoliberal é apenas a mais recente vaga de integração mundial da economia capitalista. O liberalismo clássico do século 19, que se deu sob a hegemonia do imperialismo inglês, produziu uma divisão internacional do trabalho com diversas economias regionais fornecendo insumos e matérias primas à indústria inglesa. Economias nacionais que se industrializaram nesse período, como a norte-americana, alemã ou japonesa, tiveram de proteger seus mercados para incentivar suas indústrias nacionais.

 

A Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e, depois, a crise de 1929 levaram à crise dessa globalização e deram origem a outra forma de regulação do modo de produção capitalista; a desglobalização dos anos 1930 produziu a regulação dita fordista. Nela coexistiam economias nacionais reguladas a partir de diferentes formas de intervenção estatal, organizadas como estados do bem-estar nos países centrais (o primeiro mundo), estados desenvolvimentistas em países da periferia capitalista que lutavam para se industrializar (o terceiro mundo) e ainda economias de comando do chamado “comunismo soviético” (o segundo mundo). Esta regulação política do capitalismo, estabelecida para enfrentar os desafios das guerras mundiais e a ameaça da revolução socialista, permitiu – por algumas décadas – uma certa domesticação das ondas de “destruição criativa” (Schumpeter) que sempre caracterizaram o capitalismo. 

 

Foi o desmonte da regulação política, protegida pelas barreiras alfandegárias erguidas por países ou blocos de países, que marcou a passagem para a globalização neoliberal nos anos 1980. A economia capitalista voltou a escapar do controle das economias nacionais com a dominância financeira espraiando-se novamente, ligada desta vez principalmente a Wall Street e não à City – o que produziria o desmonte dos estados do bem-estar, dos estados desenvolvimentistas e das economias de comando. Nesse contexto, mas ainda ecoando os debates da época histórica anterior – sobre a ação do imperialismo e dos monopólios, as articulações terceiro-mundistas, a troca desigual, a operação da lei do valor no terreno internacional, Samir Amin defendeu em 1986, em A desconexão, a necessidade, para um desenvolvimento real dos países dependentes, de um grau razoável de autonomia frente ao mercado mundial capitalista, sem recair em um socialismo “de quartel” autárquico. Mas o colapso da União Soviética, em 1991, e a nova unipolaridade econômica e militar estadunidense, seguida, em 1995, da formação da Organização Mundial de Comércio, enterraria momentaneamente este debate. 

 

Assistimos, então, ao auge do “pensamento único” neoliberal, cuja expressão teórica é a ideia do fim da história de Fukuyama: a globalização neoliberal e a democracia liberal seriam o horizonte insuperável da história.

 

Depois de quase duas décadas de globalização neoliberal nos países centrais, emergiu, em 1999, uma primeira onde, vaga, de manifestações contra as instituições de gestão mundial da economia sob dominância financeira, a OMC, o FMI e o Banco Mundial – que protestavam contra o aprofundamento do livre comércio durante a reunião da OMC em Seattle. Surgiu, então, uma nova corrente política que recompunha e perfilava parcelas da esquerda destroçada por duas décadas defensivas, definida quer como movimento contra a globalização, quer por uma outra globalização (ou altermundialista, do francês). Foi nesse contexto que Walden Bello retomou e reformulou, em 2001, ideias levantadas por Amin, dando-lhe uma nova atualidade, no seu livro Desglobalização: ideias para uma nova economia (lançado entre nós, em 2003, pela editora Vozes – um resumo de suas teses pode ser encontrado online). O contraponto a Bello foi feito, de forma crítica, por Joseph Stiglitz em 2002 e, apologética da globalização, por Jagdish Bhagwati em 2004.

 

Mas o altermundialismo esgotou seu empuxo antes de equacionar suas divergências teóricas e políticas e confrontou-se com um novo ciclo de guerras de intervenção imperialista, cuja expressão maior foi a invasão do Iraque em 2003. Ao mesmo tempo, um novo ciclo econômico curto (os chamados ciclos industriais) alimentava a expansão da economia mundial e alavancava o crescimento industrial da Ásia e principalmente da China, transformada na “fábrica do mundo”. Nem mesmo o esgotamento das virtualidades econômicas da globalização neoliberal – evidente com o estouro da bolha imobiliária em 2008 – e o mergulho da economia mundial em um ciclo longo depressivo (os chamados ciclos de Kondratieff) foram suficientes para recolocar o debate de alternativas. 

 

As reações sociais ao novo “crack da bolsa” de 2008, como os Indignados, os Ocuppies e a Primavera Árabe, miraram a desigualdade e a falta de democracia, mas não pareceram questionar o horizonte da globalização. Olhando retrospectivamente, esta agenda descuidou um aspecto fundamental do cenário político, que terminou por ser ocupado pela extrema-direita nacionalista – embora os porta-vozes das finanças globais jamais descuidassem de sua defesa  (e o The Economist mais do que qualquer outro) e, desde a crise de 2010, o tema fosse discutido com seriedade na economia mainstream. Atualmente seu debate foi retomado, de um ponto de vista progressista, pelo Focus on the Global South e pelo grupo Systemic Alternatives.

 

Revisitando a trajetória da questão, parece evidente que temos, desde um ponto de vista de esquerda, que contrapor ao caos da globalização neoliberal um processo que permita às comunidades políticas reconstituídas empreenderem uma desglobalização econômica e política controlada. Isso não significa autarquia ou fechamento cultural ou à circulação de pessoas, mas uma regulação do fluxo de mercadorias, capitais e investimentos. Esse processo deve estar centrado no estabelecimento de cláusulas (isto é, regras, sobretaxas e mecanismos de proteção) sociais (isto é, estabelecimento de igualdade de condições trabalhistas e previdenciárias entre os exportadores e os importadores) e ambientais (internalização dos custas ambientais que o mercado externaliza e socializa). 

 

A economia terá que ser reapropriada pela política em uma escala que permita o controle humano sobre ela, seja através dos estados nacionais, seja através de entidades de integração regional. Terá também que falar um novo vocabulário, o do decrescimento e da sustentabilidade – rompendo com aquele do crescimento, do crédito, da dívida, da obsolescência planejada e da descartabilidade. Mas nada disso está garantido a priori e terá de ser obtido a partir da ação política; e a perplexidade das correntes progressistas já se expressa em um forte debate de orientação estratégica, na Europa e nos Estados Unidos.

 

Talvez a melhor síntese da situação histórica em que nos encontramos seja, paradoxalmente, aquela feita por um físico, Stephen Hawking, que, impactado pelo Brexit e pela eleição de Trump e constatando as consequências políticas das desigualdades sociais e da crise ambiental, afirma que “estamos no mais perigoso momento no desenvolvimento da humanidade”. 

 

 

José Corrêa Leite é cientista político.

 

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