Correio da Cidadania

Projeto curdo: “Todos devem ter acesso à democracia”

0
0
0
s2sdefault

 

 

 

 

 

Diante de um contexto global de turbulência, o Oriente Médio assiste a ascensão do Estado Islâmico (EI) na Síria e no Iraque, que somada à desintegração desses Estados contribui para que milhões de pessoas fujam da região e gerem o que o Ocidente chama de “crise de refugiados”. Paralelamente, dois fortes aliados dos EUA e União Europeia (UE) na região, Israel e Arábia Saudita, promovem guerras, mandos e desmandos em suas respectivas áreas de influência, assim como a Turquia, que na última sexta-feira sofreu uma tentativa de golpe militar contra o governo do presidente Erdogan. Este, é visto por muitos como principal algoz da causa curda que, por sua vez, está implantando um projeto democrático nas áreas que controla. Também no Irã há tensões e setores curdos vivendo dentro das fronteiras nacionais.

 

Enquanto nosso imaginário sobre o Oriente Médio vem sendo construído a partir de notícias de guerras, opressões, fundamentalismos e tiranias, há também um horizonte de luta por democracia e autodeterminação. Na região autônoma de Rojava, no Curdistão Sírio, fronteira com a Turquia, existe um projeto de autonomia popular sendo posto em prática pelo PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), contrapondo-se a conjuntura aterrorizante da região. Para falar sobre essa alternativa curda, bem como fazer uma análise da situação no Oriente Médio, entrevistamos Yilmaz Orkan, representante do Comitê de Relações Internacionais do Congresso Nacional do Curdistão.

 

Durante a conversa, Orkan se orgulha e descreve em detalhes o projeto político intitulado Confederalismo Democrático, construído a partir de uma reciclagem de velhas ideias do PKK promovida pelo líder encarcerado Abdullah Ocalan e pelo qual setores autoritários do Oriente Médio e da Turquia nutrem temor. “Por termos o projeto mais progressista, alguns países apoiam o EI, de forma velada ou aberta, por terem em comum uma tradição conservadora e também para atacar o projeto de autonomia democrática de Rojava. Este projeto é um perigo para a monarquia, para o fundamentalismo religioso, para o autointitulado Estado Islâmico e para todos os ditadores que vivem no Oriente Médio”, declara.

 

Exilado de seu país e após rápida detenção na Espanha, acusado de participar de um aparato de extorsão do PKK, Orkan prefere falar sobre as ideias que dão combustível ao projeto político de seu povo, além de entrar em mais detalhes relativos à história dos curdos, sua resistência e defesa da cultura e do território, convidando-nos a voltar a caminhar na direção da utopia.

 

“Hoje em um dos cantões temos dois presidentes: um árabe e uma curda. Se em um comitê chamam-se dois ou três sírios, tem de ser chamado o mesmo número de árabes e curdos. Valorizamos a diferença. Todos devem representar suas opiniões na administração da sociedade. E sempre ponderando que vivemos com a utopia de um dia acabar com esse Estado”.

 

Confira abaixo a entrevista na íntegra.

 

 

Correio da Cidadania: É notável a diferença na filosofia adotada pelo PKK e pelo projeto curdo em relação à boa parte dos projetos populares ao longo do planeta, especialmente na região. Como você explica e avalia tal diferença?

 

Yilmaz Orkan: Muitos curdos não querem um Estado-Nação. Não querem independência, nem separatismo, mas convivência e autonomia democrática. Não só pelo povo curdo, mas em todo o Oriente Médio. Chamamos “confederalismo democrático sem fronteiras”.

 

Há cinco povos que são fundamentais atores no Oriente Médio: árabes, persas, turcos, hebreus e curdos. Por isso acreditamos no Confederalismo Democrático. Observamos que os outros quatros povos têm um Estado-Nação e sua independência. Nós, curdos, não temos um Estado-Nação, e também não fazemos questão de ter, porque pensamos que a formação de um não necessariamente nos trará a autodeterminação e a sonhada independência, vide o que se vê nos vizinhos. Em aproximadamente um século, os outros povos da nossa região conquistaram seus Estados-Nação; já a autodeterminação pode demorar sei lá quantos séculos para vir.

 

Isso contradiz a fórmula oficial de que um Estado-Nação pode trazer autodeterminação, o que ainda confunde muitas cabeças em todo o mundo, especialmente no Ocidente. Hoje, o Estado-Nação é um problema não só para o Oriente Médio, mas todo o mundo, pois separa os povos e as culturas como um todo. Separa irmãos.

 

Quando acabou o Império Otomano, houve um tratado firmado após a Primeira Guerra Mundial que aceitou a formação de uma série de Estados-Nação, como Síria, Irã, Líbano, Jordânia, Arábia Saudita, Kuwait, depois Israel, assim como todos os países do Golfo. E o Curdistão está no meio de tudo. Um curdo na Turquia pode ter dois irmãos e um viver na Síria, enquanto o outro vive no Iraque. No nosso caso, literalmente separa irmãos. Levando isso em conta, a nossa autodeterminação não pensa só na divisão da terra, mas na cultura, na família, na relação com a terra, com o meio ambiente... Tentamos pensar em tudo.

 

Ademais, Estados-Nação competem entre si e devem usar como argumento o nacionalismo. Por exemplo, se queremos criar um Estado-Nação chamado Curdistão, devemos nos utilizar do nacionalismo curdo. “Somos curdos, somos fortes, somos únicos, somos os melhores”, o que não cria amizade nem convivência. Queremos a convivência pacífica e a autonomia democrática para todo o Oriente Médio. Este ideal requer, antes de mais nada, um projeto de mentalidade, novos homens e mulheres que tragam paz para a região.

 

Temos dois grandes conflitos hoje. Um é o conflito curdo, com Iraque, Turquia e Síria. Outro é a questão palestina. É a mesma coisa em diferentes lugares. Ignorância e desinformação ainda agravam a situação, tanto dentro quanto fora. O projeto que apoiamos está sendo praticado em Rojava (Curdistão Sírio ou Curdistão do Oeste – Rojava significa “oeste” em curdo). Uma luta política e ideológica que pode ser vista pelos meios de comunicação ocidentais toda vez que barramos os avanços do Daesh (uma das denominações do Estado Islâmico).

 

Correio da Cidadania: Pode explicar um pouco melhor como funciona o sistema de Confederalismo Democrático nos cantões de Rojava?

 

Yilmaz Orkan: Há a autonomia democrática de Rojava nos três cantões que compõem a região, Kobane, Cizire e Afrim, que são regiões criadas pelo projeto do Confederalismo Democrático para descentralizar o poder e dar mais autonomia às pequenas localidades.

 

Assim, a ideia da liberdade, tanto econômica quanto social, política e religiosa, é acessível a todos os grupos. Por exemplo, uma comunidade religiosa pode criar seu órgão representante e participar da vida política do cantão, assim como outras organizações dos povos. Com esse sistema, é possível chegar a um clima de respeito que evite cenas como as que vemos ao redor do planeta e foram desculpas para guerras civis e golpes de Estado em tantos outros países.

 

Tal projeto não pode ser rotulado como socialismo ou comunismo, tampouco capitalismo. A questão é que a democracia tem de ser compartilhada com todos. Não pode ter nenhum recorte político, nem econômico. Maioria e minoria também não são importantes uma vez que todos devem ter acesso à democracia. No Curdistão, 80% da população é curda, outros 20% vêm de outras raízes. Todos têm os mesmos direitos à educação, direitos sociais, de cidadania, de participação e por aí vai.

 

Hoje em um dos cantões temos dois presidentes: um árabe e uma curda. Se em um comitê chama-se dois ou três sírios, tem de ser chamado o mesmo número de árabes e curdos. Valorizamos a diferença. Todos devem representar suas opiniões na administração da sociedade. E sempre ponderando que vivemos com a utopia de um dia acabar com esse Estado. Vemos que o poder emana do Estado, que chega a ser um deus. Queremos um dia não precisar desse deus, não queremos tal força, que pressiona a população para sempre.  Por isso é importante termos em mente a questão cultural e fortalecer a participação em Conselhos Populares.

 

Os Conselhos não possuem força militar ou administrativa. A força popular é uma força política que vem da base. E as decisões feitas em assembleia são as decisões que vão vigorar para aquele grupo, seja ele uma categoria de trabalhadores, habitantes de um bairro ou comunidade religiosa. E é preciso que o governo do cantão garanta autonomia do conselho popular que, por sua vez, garanta a autonomia democrática.

 

As assembleias populares têm poder para denunciar e cassar mandatos dos administradores do cantão. Por corrupção, desrespeito a direitos humanos e às mulheres ou outros motivos. Ou seja, é o contrário do Estado ocidental capitalista, onde as organizações populares garantem a soberania do Estado; no Curdistão é exatamente o contrário, o Estado é obrigado a garantir que as demandas dos conselhos e assembleias sejam atendidas.

 

O principal desafio para o Confederalismo Democrático incide na cultura política do Oriente Médio. Muitos povos da região ainda vivem em sistemas semifeudais, com monarcas absolutos. Por tal razão, agora queremos nos integrar ainda mais com os povos. E com a integração mostrar que a vida não se resume somente àquilo. Temos grandes exemplos nas questões militar e de gênero especialmente, que mostram que não somos ditadores e queremos o mesmo que eles: paz.

 

Correio da Cidadania: Parece muito com a teoria do municipalismo libertário. Como foi construído todo o ideário aqui exposto? Há alguma relação com os zapatistas, anarquistas ou mesmo marxistas de práticas heterodoxas?

 

Yilmaz Orkan: Em todo o mundo, o movimento anarquista apoia nosso projeto, pois valorizamos a emancipação das municipalidades e isso é muito importante, ou seja, a participação direta. Pensamos em uma democracia real e direta, palavras que vocês podem ter tido contato pelos Ocuppy de Wall Street ou mesmo com jovens aqui no Brasil que fizeram as ocupações das escolas e movimentos contra aumentos no transporte.

 

Temos o apoio de muitos grupos diferentes em um momento em que muitos partidos tradicionais de esquerda sofrem uma crise de representatividade. Ao contrário deles, temos a simpatia dos anarquistas, o apoio de grupos de mulheres, de religiosos e temos também o apoio de movimentos sociais de esquerda, já que muitos nos consideram progressistas.

 

Nesse momento, os partidos de esquerda também sofrem uma crise ideológica, de identidade. Alguns deles buscam entender melhor os fundamentos do nosso projeto, próximos de suas ideias, a fim de rever seus conceitos. E para nós é excelente, pois mostra que não somos donos da ideia, mas a humanidade o é como um todo.

 

Por outro lado, como citei na resposta anterior, não é simples mudar o paradigma de toda uma civilização. Ainda há muita desinformação e muitos povos que vivem sob um grau extremo de opressão e falta de liberdade. Todo cidadão deve ter a consciência e a mentalidade e, para isso, precisamos de mais tempo para completar o quadro desejado. Teoria e prática devem caminhar juntas.

 

Correio da Cidadania: Como foi a mudança de paradigma dentro do PKK?

 

Yilmaz Orkan: O PKK era um partido marxista leninista clássico, de trabalhadores e independentistas, até o fim de 2002. Mas foi a partir de 1993 que se começou a rediscutir a fórmula do partido, pois já havia uma insatisfação e uma crise de identidade com o formato clássico de partido comunista. Portanto, deveria mudar ou se reinventar, se não o próprio partido poderia se extinguir. E até 2002 se discutiu muito, ao passo que iam sendo feitas algumas reformas.

 

Em 2002, quando Abdullah Öcalan começa a falar do Confederalismo Democrático com o início de seu contato com ideias de um grupo da América do Norte, ocorre uma divisão no PKK e parte da militância, incluindo muitos setores de mulheres, se interessa. Alguns por não vislumbrarem outra perspectiva. Podemos dizer que o líder do grupo (Öcalan) trabalha as ideias que vêm da América, interseccionado ao governo regional e à realidade do Curdistão.

 

Em 2005, o partido foi ficando ideologicamente mais forte com a aderência a tais ideias por parte de mais pessoas, principalmente mais mulheres. Dez anos depois, em 2015, começa um novo vento de participação com os jovens e estudantes a consolidar sua presença, o partido vai ficando maior e ganha novos militantes. Assim, vai surgindo uma nova geração que apresenta diversas mentalidades e formas de ver o mundo, de modo que podemos observar uma primeira atualização do Confederalismo Democrático.

 

Esse processo traz o partido mais para dentro do guarda-chuva do KCK (União das Comunidades do Curdistão ou Koma Civakên Kurdista, em curdo), tendo hoje cerca de 150 mil guerrilheiros no total, dos quais 40 mil mulheres. Sem contar a rede política formada com muitos partidos novos e movimentos sociais por liberdade religiosa.

 

Correio da Cidadania: Como se dá a diferença de relação entre os curdos em cada um dos quatro países que os dividiram?

 

Yilmaz Orkan: De 1923, quando os Estados dos quatro países se formam, até 2015 são 92 anos em que os curdos se encontram na separação. Uma parte do povo curdo já tem outra cultura, seja a cultura turca, a iraniana, a síria ou a iraquiana. Por exemplo, na Turquia não temos o fumo árabe (o narguilé). No Irã também não temos o hábito, mas os curdos que estão na Síria e no Iraque o têm porque é uma cultura hegemônica de árabes.

 

No Irã tem outra coisa: uma perda contínua no sentido cultural, como também na Turquia, onde são obrigados a falar simultaneamente duas línguas, o curdo e o turco; o curdo iraniano tem de falar o persa e assim por diante. Temos cinco dialetos: kurmânji, sorâni, zazaki, gorâni e quelúri. Dos cinco, eu posso compreender 60% ou só 40%, porque apesar de termos alguma literatura oficial escrita, a maioria das línguas vem da tradição oral. Agora, temos problemas no alfabeto. Na Turquia usamos o latim, na Síria e no Iraque o latim e o árabe. Isso é um problema para a integração de dialetos no idioma. Mas importa é que, apesar disso, temos pensado juntos politicamente.

 

Correio da Cidadania: Conte um pouco mais da sua prisão que depois o levou para o exílio?

 

Yilmaz Orkan: Estou exilado desde 2002. Eu estava dirigindo um partido popular que se chama Hadep. Tínhamos criado o partido em 93, mas em 2003 foi fechado por ter sido considerado inconstitucional.

Minha prisão só foi possível graças à informação facilitada pela polícia espanhola, a mesma que em 12 de fevereiro de 2015 acabou prendendo 6 pessoas em diferentes pontos do país e declarou a desarticulação do “aparato de extorsão do PKK na Espanha”. No marco dessa operação, também foram presas outras 17 pessoas na França e uma na Bélgica.

O Hadep não era um partido comunista, era um partido curdo. Tivemos muitos problemas sérios. Havia um grupo paramilitar, cujo nome significa “soldados de Deus”, que matou 13 dos 67 políticos curdos do Hadep na Turquia, e os corpos apareciam depois na rua.

 

Na Turquia teve muito dirigente político que foi se exilar na Europa. Por tal motivo também passei dois anos na Itália, e desde 2002 tenho a documentação de refugiado político. Sempre trabalhei com as confederações, as associações curdas e também com o Congresso Nacional Curdo (KNK). Sou do Curdistão turco, da província de Rovan, ao norte da região.

 

Correio da Cidadania: Como avalia o atual momento do projeto do Confederalismo Democrático na Turquia?

 

Yilmaz Orkan: Muito mal, porque apenas em algumas cidades há o Confederalismo Democrático: Cizre, Diyarbakir-Sur, Silvan, Nusaybin, Dargecit, Silopi, Yüsekova, entre outras. Mas em Silvan o governo mata civis mesmo quando é feito o aviso de cessar fogo. De julho até dezembro, mais de 260 civis foram mortos pela polícia do governo turco. Hoje, temos um conflito político e estrangeiros não entram porque o governo turco está matando os civis.

 

O governo turco apoia o Estado Islâmico, mas diz que é contra eles e apoia o PKK, sendo que na verdade chamam o partido de terrorista. A YPG, a YPJ (Unidade de Proteção do Povo e Unidade de Proteção das Mulheres) e o PKK estão nas montanhas curdas, logo, se o governo turco os ataca, acaba assim por ajudar o EI, que quer entrar na região.

 

O PKK hoje vai além de um partido político; ele é um partido político ideológico sob o sistema guarda chuva do KCK – do qual Öcalan é o presidente. Três anos após a prisão dele (em 1999) foram feitas negociações com a Turquia para uma solução política pacífica, mas quando a Turquia iniciou seu isolamento na ilha-prisão de Imrali, em 5 de abril daquele ano, definiu que ele não poderia ver nem mesmo a própria família. Aí vemos o nível de negociação e diálogo com a Turquia.

 

Recentemente, presenciamos a segunda eleição com repressão ao povo curdo. Em 7 de junho de 2015, houve eleições gerais na Turquia. Tais eleições tinham pela primeira vez a proposta do projeto de autonomia democrática junto ao HDP, que superou a margem de 10% dos votos para poder entrar no parlamento – o que significa, só na Turquia, 5 milhões de pessoas. O presidente Erdogan (do AKP, Partido da Justiça e Desenvolvimento) tem uma força de liderança criada pelo seu próprio governo e ele não quer criar nenhuma coalizão. A eleição de 7 de junho era uma eleição normal, já a de novembro foi um golpe contra o povo curdo, contra o Estado laico e os movimentos sociais. Eles mataram muitas pessoas para trazer o medo psicológico e assim seu partido está sempre se superando. O HDP teve apenas 13% dos votos totais.

 

Correio da Cidadania: No início da entrevista você comentou que os dois grandes conflitos de mais força atual no Oriente Médio são os que envolvem os curdos e os palestinos. O que você pode falar a respeito do conflito entre Israel e Palestina? Há algum paralelo com a questão curda?

 

Yilmaz Orkan: Não podemos comparar porque o Curdistão todo está dividido em quatro partes. Outra coisa é a questão cultural e religiosa. O que quero dizer é que a luta do povo da palestina é política e contra os judeus sionistas. Já nosso caso, parte dos nossos opressores são muçulmanos assim como grandes setores do povo curdo. No Oriente Médio temos três problemas: sionismo, jihadismo e nacionalismo.

 

O nacionalismo árabe é um problema, igual ao nacionalismo turco e da mesma forma do persa. Por exemplo, no Irã temos três classes sociais. Se uma pessoa é curda, não pode ser militar, não pode ser presidente de um tribunal, não pode ser presidente de uma região, ministro do país, nada disso é possível. Os cidadãos de primeira classe são os farsi persa. A segunda classe são os azerbaijanos, que são quase 25 milhões. Todo o resto é a terceira classe: curdos, baluchis e árabes. O sistema de classes funciona no Irã, mas também na Turquia, onde acontece algo similar.

 

Na Turquia, quando uma família tem um guerrilheiro do PKK já não pode participar de mais nada social e politicamente. Na Síria, por exemplo, em Rojava, temos 500.000 pessoas sem cidadania, vivendo como nômades. Têm um cartão vermelho, não podem trabalhar na esfera pública, não podem comprar um carro ou uma casa, nem estudar, não podem fazer nada. Assim, quando começou a guerra civil na Síria, Bashar Al-Assad disse que todos que vivem na Síria são cidadãos da Síria, para que os curdos não façam parte da oposição contra seu governo.

 

Outra coisa: o povo da Palestina tem alguns direitos, ainda que ameaçados constantemente. Em Gaza tem um governo, em Ramallah tem um governo, onde vivem alguma autonomia, porém querem mais, querem independência. E eles têm sua razão. Mas questiono: como pode nascer um Estado como Gaza, isolado? Como sobreviveria, como cuidaria da economia e do social? A criação de Estados como Gaza me parece ser de um separatismo bruto para o povo da Palestina também.

 

Já nós, curdos na Turquia, não temos direito à educação, muito menos o direito de estudar em nossa língua mãe. Com a autonomia e o Confederalismo Democrático, queremos a gestão de nossa região, da língua e da identidade política; não queremos um Estado-Nação próprio à sombra da Turquia, a ditar nosso modo de viver.

 

Correio da Cidadania: A Turquia é muito violenta nesse sentido?

 

Yilmaz Orkan: A própria polícia turca picha nas paredes das casas em nossa terra que “somos felizes por ser turcos”. Em todas as montanhas dos curdos eles gritam isso. É uma enorme falta de respeito. Sem contar abusos e violência física que praticam.

 

Correio da Cidadania: Para contextualizar o público brasileiro, pode explicar qual é a origem do povo curdo?

 

Yilmaz Orkan: Kurti (“Curdo”, no idioma original) significa “filho da montanha”. A origem remonta à Mesopotâmia, assim como os assírios e outros povos históricos.

 

A história dos curdos começa com os sumérios, por Gilgamesh, depois passa pelos hurritas, depois uma parte dos curdos compõe o Império Persa e outra parte o Império Otomano. Muitos impérios passaram pela Mesopotâmia. Já os turcos, porém, são um povo do Cáucaso e de origem mongol. Em 1071, os turcos entram na Anatólia, onde estava presente o Império Romano e depois o Império Bizantino. Nessa época, nós estávamos um pouco ao lado dos bizantinos e um pouco ao lado dos persas, ou seja, dos atuais iranianos. Quando os turcos entram naquela região, em 1071, pela Batalha de Manziquerta contra os bizantinos, pouco a pouco chegam a Istambul, em 1453. Depois, todo o Curdistão fica sob controle iraniano/persa.

 

Houve depois a guerra de Chaldiran entre os impérios iraniano e otomano sobre a região curda, e a seguir o tratado chamado Qasr-e Shirin (também conhecido como Zuhab), em 1637, que divide o Curdistão em dois, para finalmente, depois da primeira Guerra Mundial, nos dividirem em quatro.

 

Somos praticamente os povos nativos da velha Mesopotâmia. Somos ao todo 45 milhões de pessoas: na Turquia entre 20 e 22 milhões, na Síria 3 milhões, no Irã 13 milhões e no Iraque 7 milhões. Além de toda essa gente, ainda há mais cerca de 10 milhões que migraram, uma parte para a Europa e outra parte a ex-países soviéticos – especialmente os curdos yazidi.

 

Temos oito religiões: sunita, xiita, alavita, iarsani, yazidi, zoroastrismo, cristianismo e judaísmo. E todas as religiões existem por causa da Mesopotâmia. São 200 mil judeus curdos, porém quase todos vivem em Israel, em Telavive e Jerusalém. Outro povo bastante presente são os yazidi. Uma grande parte vive no Iraque, próximo a cidade de Laliş, onde eles entram uma vez por ano durante uma semana para realizar seu jubileu. São cerca de 1 milhão no Iraque.

 

Todos são curdos: judeus, cristãos, yazides e também alavitas, escapam da tortura e da pressão de países como a Turquia, o Iraque, a Síria e o Irã. Yazidis, alavitas e iarsanis são versões do zoroastro. Por exemplo, um yazidi reza com flauta e com tambor. Os alavitas com guitarra curda. Esses instrumentos são proibidos no Islã. Temos quase 10 milhões de pessoas que vêm da tradição do zoroastrismo. Curdos xiitas estavam no Irã e no Iraque também, há muitos anos nós somos aceitos no Irã devido ao fato de a religião do Estado Iraniano ser xiita.

 

Correio da Cidadania: Como anda a resistência contra o Estado Islâmico e onde eles pretendem entrar?

 

Yilmaz Orkan: Por termos o projeto mais progressista do Oriente Médio, alguns países apoiam o Estado Islâmico, por terem em comum uma tradição conservadora e também para atacar o projeto de autonomia democrática de Rojava. Este projeto é um perigo para a monarquia, para o fundamentalismo religioso, para o EI e para todos os ditadores que vivem no Oriente Médio. Por tal motivo, os países mais conservadores apoiam o Daesh, ainda que de forma velada, para que se possa destruir a Autonomia Democrática de Rojava. Até agora vamos bem, porque o povo crê no nosso projeto, e assim o defende e combate como inimigos os ditadores que usam da religião para se autopromoverem.

 

Agora temos três forças externas no Curdistão. Uma é a força imperial: dos EUA, da União Europeia e da Rússia. Eles querem organizar o Oriente Médio e o Curdistão de acordo com seus interesses. A segunda é a força colonial como a da Turquia, do Irã, da Síria e do Iraque que já estão no controle desta terra há anos. A terceira força é a dos grupos jihadistas, como o Daesh.

 

Temos uma luta contra todos eles, porém, há alguns meses e de forma tática temos uma relação com os Estados Unidos, uma vez que também querem eliminar o avanço do EI. Mas só porque atacam a todos, como fizeram recentemente na França e em outros países do Ocidente, além do estrago regional. Não podemos dizer para os impérios ocidentais que não bombardeiem o Estado Islâmico, pois apenas nós poderíamos fazê-lo. Não seria lógico da nossa parte.

 

Contra os colonialistas temos uma luta muito forte, porque no Curdistão não temos apenas a luta física, mas duas lutas: uma física e outra político-ideológica. Na forma política e ideológica estamos contra o neoliberalismo e contra o imperialismo capitalista porque não pensamos que um imperialista é melhor do que o outro, que a Rússia é melhor que os EUA, que a União Europeia é melhor que a Rússia e assim por diante. Cada um pode usar isso de uma maneira mais forte que o outro, mas a ideia ainda é a mesma. Pois especialmente na Síria estamos em uma luta na qual muitos povos e Estados nos apoiam, porém, não nos interessamos nesse sentido.

 

Correio da Cidadania: E após uma eventual vitória sobre o Estado Islâmico, o que acontecerá com as forças de defesa curdas (YPG/YPJ)?

 

Yilmaz Orkan: Na nossa terra são dois atores lutando, de um lado nós curdos e do outro o EI, que quer estabelecer o califado e a sharia (lei islâmica ancestral).

 

Indiretamente, muitas forças, como por exemplo a Turquia, apoiam o EI, assim como a Arábia Saudita, o Catar e algumas vezes até o Irã, de forma velada. Muitos países do Oriente Médio não querem a mudança democrática que promovemos; para eles somos um problema.

 

Nossa crítica aos países ocidentais se dá justamente no questionamento de por que não apoiarem abertamente a luta do povo curdo. Por que não estão em solidariedade e apoio aos curdos – um dos poucos que podem combater o fascismo na região? Por que algumas pessoas e alguns partidos de esquerda fazem a teoria dos complôs do tipo “foram os EUA que criaram tal e tal acontecimento”? Quem criou e porque criou é outro discurso, mas a vida real e o avanço do EI estão na nossa porta.

 

O autointitulado Estado Islâmico é a personificação grosseira do fascismo na região. Quando prendem um ocidental e matam, dão a entender que o fazem em nome da religião, mas na verdade eles querem o dinheiro de quem mataram. Dois japoneses, que não tinham nada a ver com o EI, nem nada com o Islã: por que os mataram? Ñorte-americanos, por razões distintas das nossas e também do nosso povo, estão contra esse movimento fundamentalista, contra esse “Estado Islâmico”, e se não podemos lutar juntos, vamos perder. Hoje é o Curdistão, ontem atacaram a França e amanhã podem até atacar o Brasil. Não pensem que por estarem mais distantes eles não possam chegar.

 

Correio da Cidadania: Lendo um relatório da situação agrícola da região, muitas pessoas não conseguem voltar para suas fazendas porque os campos estão cheios de minas que o EI deixou. Até que ponto os cantões curdos conseguem ser autônomos tendo de lidar com um conflito desta proporção?

 

Yilmaz Orkan: Especialmente em Kobane (Rojava) quando o EI vê que não pode ocupar, escapa. Mas em muitas propriedades de camponeses escondem minas para poder matar os que voltam, por isso dizemos que é uma mentalidade fascista, entende?

 

Por exemplo, na luta contra guerrilheiras curdas usam minas, mas por que esconder minas na terra de um camponês, em uma casa ou no campo onde é feito cultivo? Pelo puro prazer de matar e causar dor em gente trabalhadora?

 

Após retomar a cidade, quando os cidadãos de Kobane voltavam, morreram quase 20 pessoas por causa das minas. Depois, a administração de Kobane proibiu que entrassem em propriedades rurais por quase três meses, até o grupo especial realizar uma varredura de minas.

 

Correio da Cidadania: E sobre a questão da mulher ouvimos relatos de que os soldados do Estado Islâmico tem medo de serem mortos por mulheres, pois assim não iriam para o céu. Procede a informação?

 

Yilmaz Orkan: Sim. Primeiro dizem que ao fazer guerra e morrerem vão diretamente ao paraíso, porém, quando são mortos por mulheres, não podem ir ao paraíso. Quando vão ao paraíso, Deus os dá tantas virgens, é uma vida tão melhor (em tom irônico). Assim, quando são mortos por mulheres não têm permissão de fazer a festa no além (risos). Nossas guerrilheiras chegam ao campo de batalha cantando hinos a plenos pulmões, deixando-os desesperados. Como pessoa tenho respeito a todas religiões, mas religião é uma coisa bruta a depender da interpretação. Todas elas, nenhuma é melhor que a outra.

 

Uma outra coisa é uma propaganda de que todo comandante do EI é um príncipe enviado por Deus e são imortais. Isso porque “Deus os mandou para combater por Ele”. Assim, os comandantes não podem ser mortos por outra pessoa. Isso dava uma moral pra eles – ainda que de forma estranha aos nossos olhos. Agora, eles já sabem que todos são mortais, porque o PKK começou a matar todos. O YPG e YPJ diariamente matam de 50 a 100 adeptos do EI. E eles o que fazem? Tomam muitas drogas e vão em frente gritando “Allah, Allah!” e se não morrem ficam doentes pela droga, todos drogados.

 

Alguns companheiros me contaram que podemos estar em somente cinco, a proteger uma pequena área. Daí cem deles nos atacam e nós matamos todos com certa facilidade. Eles querem ir o mais rápido para o paraíso com as virgens. E nós queremos mais é ajudá-los a se encontrarem com seu Deus.

 

 

Leia também:


José Arbex Jr: “há uma linguagem de ódio e intolerância que foi legitimada pelo Brexit”


Acordos de Paz da Colômbia: “desativar uma guerrilha de 50 anos implica atender demandas sociais históricas”

 

 

Raphael Sanz é jornalista do Correio da Cidadania.

Annelise Csapo e Guilherme Land estudam o tema com o Comitê de Solidariedade à Resistência Popular Curda, de São Paulo.

0
0
0
s2sdefault